Fórmula 1, MotoGP, Rali Dakar, circuito próprio de golfe, craques do futebol, Mundial2034, Taça Asiática 2027, Supertaças Italiana e Espanhola... A Arábia Saudita mudou o mundo do desporto, ao atrair para si a organização de grandes eventos nos últimos anos. O país está em transformação e a abrir-se ao mundo através do desporto.
No futebol, foi à Europa buscar grandes craques para fortalecer a liga local, como Cristiano Ronaldo, Neymar, Sadio Mané. Além disso, recebe e organiza as supertaças de futebol de Espanha (desde 2020) e Itália (por seis anos, a partir de 2024) para que os adeptos locais possam ter contacto com os jogadores que costumam acompanhar pela TV. O país vai ainda organizar o Mundial de futebol em 2034 e a Taça Asiática de futebol 2027.
Para gerir toda essa aposta, o governo criou o Fundo Público de Investimento (PIF) em 2021, que tem investido de forma massiva no desporto desde esse ano. O PIF passou para o Estado os cinco principais clubes - Al-Ittihad, Al-Ahli, Al-Nassr e Al-Hilal - e ainda adquiriu o Newcastle, de Inglaterra.
Desde 2018 que o país tem vindo a abrir-se ao mundo, como estratégia de diversificação da sua economia. O Governo não quer estar dependente do petróleo (responsável por 80 por cento da sua economia), por isso está a apostar forte no turismo. Berço do islamismo, a Arábia Saudita vai aproximando-se do ocidente, deixando, aos poucos, a rigidez das suas tradições.
Os reforços de renome no futebol são a face mais visível dos planos de Riade para subir o nível, as receitas e a visibilidade do campeonato local, tornando o desporto num dos alicerces do 'Visão 2030', programa de diversificação económica de um país dependente do petróleo, que vai organizar o Mundial de futebol de 20234 e quer organizar os Jogos Olímpicos já na próxima década.
Foi para mostrar o trabalho feito no futebol que a Saudi Pro League convidou uma comitiva de jornalistas portugueses, onde se incluía o SAPO Desporto, para que pudessem testemunhar o trabalho feito e deixar contributos para melhorias no futuro.
Durante seis dias, estivemos nos centros de treinos do Al Nassr e do Al Shabab, ambos de Riade, acompanhamos dois jogos nos estádios (Al Shabab-Al Nassr e Al Ettifaq-Al Hilal), falámos com os técnicos portugueses Jorge Jesus (Al Hilal) e Vítor Pereira (Al Shabab), além de entrevistas com jogadores lusos (Otávio), brasileiros que passaram por Portugal (Talisca, Alex Telles, Iago Santos, Carlos Júnuior) e alguns craques que se mudaram para a Liga Saudita, como Yannick Ferreira Carrasco e Rakitic.
Veja o vídeo da entrevista de Jorge Jesus
Primeiro impacto: segurança e trânsito caótico
No primeiro impacto ao aterrar no Aeroporto Internacional Rei Khalid em Riade, destaca-se a segurança, mas também a organização. São recolhidos os dados biométricos de toda a gente, é-nos perguntado o motivo da nossa visita antes de deixarmos o aeroporto.
Da viagem do aeroporto até ao nosso hotel em Riade, salta à vista um país a preparar-se para o futuro. Há obras em todo o lado, construções em grande escala, ou não fosse a cidade o centro administrativo, cultural e financeiro do reino.
Foi apenas no dia seguinte que pudemos ver o pulsar de Riade, uma cidade que não dorme. Um trânsito difícil, onde as regras do Código da Estrada nem sempre são aplicadas por quem quer chegar ao destino o mais rápido possível. Por aqui também se justifica o porquê de a Arábia Saudita ser dos países com maior sinistralidade rodoviária por mil habitantes.
Acompanhados de dois assessores de imprensa da Liga Saudita, chegamos ao centro de treinos do Al Nassr, ao início da tarde. Alia, egípcia, e Faysal, iraquiano, trabalham há muito com a Liga Saudita. Sempre prestáveis e muito disponíveis, tentam arranjar os últimos pormenores com o assessor de imprensa do Al Nassr para que tudo corra bem. Apenas lamentamos o pouco tempo que nos foi disponibilizado para falar com os jogadores.
No dia seguinte, à tarde, repetiu-se o cenário, agora no Al Shabab. Pouco habituados à presença de jornalistas estrangeiros, Alia e Faysal acabaram por convencer o assessor de imprensa dos leões de Riade a abrir-nos as portas do clube. Mostrou-nos a sala de troféus, falou-nos do passado do emblema que é um dos históricos de Riade. O brasileiro Carlos Júnior, antigo jogador do Santa Clara, foi dos primeiros a ser avistados à chegada, antes do treino da tarde. Combinámos com ele uma pequena conversa depois do treino.
Depois veio Iago Santos, brasileiro que jogou na Académica e no Moreirense. Estavam ambos felizes por ver a imprensa portuguesa no centro de treinos do Al Shabab. Tal como parte da equipa técnica de Vitor Pereira, que passou por nós e fez questão de nos cumprimentar, quando ouviram a língua de Camões. Numa cidade tão grande, não é todos os dias que se encontra alguém a falar português.
O que seria uma visita ao clube e possivelmente uma pequena conversa com Vitor Pereira, acabou numa pequena zona de entrevistas rápidas onde pudemos trocar ideias com Iago Santos, Rakitic, Yannick Ferreira Carrasco, além de Vítor Pereira. No final, disponibilizam-nos uma sala para trabalhar.
Apesar do pouco tempo e do muito trabalho, conseguimos visitar Al Diriyah, nos arredores de Riade. A pequena cidade, e primeira capital do país, destaca-se pela sua arquitetura tradicional com tijolos de argila, um labirinto pedonal de ruelas estreitas, com restaurantes tradicionais, cafés e lojas. Mais tarde passámos pelo KAFD (King Abdullah Financial District), o centro financeiro do país, imponente pela sua arquitetura moderna e pelas suas torres.
O Boulevard City, nos arredores de Riade, chama a atenção pela sua diversidade de ofertas e pela sua dimensão. É lá que está situado o Museu itinerante Cristiano Ronaldo, uma das suas atrações. As réplicas de todos os troféus coletivos e individuais do craque português do Al Nassr fazem as delícias dos visitantes, principalmente dos mais novos. No exterior do museu, são projetados imagens que mostram a história de CR7, da Madeira até ao Al Nassr.
Conta-nos Faysal que aos fins de semana (sextas e sábados), a organização costuma barrar a entrada no Museu, tal é a procura.
Nas nove zonas do Boulevard há restaurantes, cinema, área de jogos, cafés, salas de espetáculos, espaço para concertos ao ar livre, uma réplica de 'Times Square' de Nova Iorque, e muito mais, espalhados pelos seus 900 mil metros quadrados. Um mundo à parte. Difícil foi chegar e sair de lá, tal era o trânsito. À entrada, todos são revistados e não são permitidas câmaras fotográficas. Apenas telemóveis.
Claques, cânticos e muitas crianças, num mundo onde as mulheres já vão à bola
O ambiente no dia de jogos não difere muito de Portugal. Não há roulotes de bifanas, cachorros-quentes e cervejas mas aqui e ali foi possível ver algumas bancas a vender água, refrigerantes (não há nada com álcool) e sandes. Em Dammam, mais do que em Riade, a capital.
Algumas horas antes do apito inicial do Al Shabab-Al Hilal, já foi possível ver muitos adeptos em redor do Estádio Príncipe Faisal bin Fahd, na sua maioria jovens, muitos deles com as camisolas dos respetivos clubes.
Antes de lá chegarmos, passamos por algumas barreiras de segurança, mas sem exageros de maior. Feita a comunicação - éramos jornalistas estrangeiros convidados pela Saudi Pro League - foi-nos dado passagem para o parque de estacionamento do estádio. Depois, mais uma barreira de segurança, à porta do estádio, antes de entrarmos para a zona de imprensa. O trabalho de comunicação com os seguranças e com os responsáveis dos clubes era feito por Alia e Faysal. Só tínhamos de os seguir.
Os adeptos chegam cedo para se aglomerarem nas grades que formam um corredor por onde passam os jogadores, antes de entrarem no estádio. Gritam pelos nomes dos craques, pedem autógrafos e selfies. Nenhum teve sorte. Alguns jogadores acenam, outros, entram em passe acelerado.
Os estádios dos clubes pequenos não diferem muito uns dos outros. O Estádio Príncipe Faisal bin Fahd, em Riade, casa do Al Shabab, não é muito diferente do Estádio Príncipe Mohamed bin Fahd, em Dammam, onde joga o Al Ettifaq: capacidade para 15 mil pessoas, relvado em excelentes condições mas ainda algum caminho a fazer na parte da imprensa.
Em ambos, a sala de imprensa para os jornalistas - onde também ficam os fotógrafos e repórteres de imagem antes dos jogos - é pequena, mas com internet com velocidade suficiente para se trabalhar, sem problemas de maior. As tribunas de imprensas também são iguais, até na falta de uma rede de internet para os jornalistas e na falta de fichas de eletricidade para se ligar os computadores. Um pormenor a corrigir no futuro. Verdade seja dita, ninguém estava com computadores ligados na hora do jogo, exceto a reportagem do SAPO Desporto.
Nos dois jogos - Al Shabab vs Al Nassr e Al Ettifaq vs Al Hilal - casa cheia. Muitas crianças e jovens, mas também muitas mulheres. As bancadas também eram o espelho da abertura faseada da Arábia Saudita ao mundo.
No meio dos quase 14 mil adeptos presentes em cada um dos jogos, na sua maioria homens, havia mulheres, algumas vestidas com os trajes tradicionais (nijab, com apenas os olhos à mostra), outras com as camisolas dos seus clubes por baixo das ''abayas' (vestido islâmico), outras, com a cara destapada, à vontade nas bancadas, principalmente as mais jovens. Sinais dos tempos de mudança num país que era muito fechado em si até há bem pouco tempo.
As claques do Al Nassr e do Al Hilal ficaram colocados em locais semelhantes nos dois recintos, num dos topos por detrás de uma das balizas. Entre eles, muitas semelhanças mas algumas diferenças. No caso do Al Nassr, é uma claque formada por pessoas pagas para apoiarem a equipa. Há os líderes que recrutam pessoas e pagam-lhes entradas, dão-lhes bandeiras, camisolas e outros materiais de claques. A do Al Hilal parecia mais organizada e tinha um leque alargado de músicas de apoio.
As claques davam o mote, os adeptos acompanhavam. O Al Hilal conseguiu levar milhares de adeptos para o duelo com o Al Ettifaq (são quatro horas de carro de Raide até Dammam, uma hora de avião) e estes deram um colorido especial às bancadas. Jovens com as camisolas dos craques do maior clube da Arábia Saudita (Neymar, Ruben Neves, Koulibaly, Milinkovic-Savic, Bono) acompanhavam a claque.
Além dos cânticos, saltou à vista uma imagem dos tempos modernos. A maior parte dos adeptos de telemóveis de última geração nas mãos, captando imagens dos craques e do jogo e partilhando instantaneamente nas redes sociais.
Apesar de haver mais adeptos forasteiros nos dois jogos que assistimos, reinava o fair-play nas bancadas. Havia amigos de clubes diferentes, sentados lado a lado, partilhando as emoções da partida, cada um com a camisola da sua equipa. No final, saíram juntos, uns felizes pela vitória, outros tristes por terem perdido.
Após o apito final, muitos voltaram a correr para perto das grades que faziam os corredores entre os balneários e os autocarros, na esperança de conseguirem um autógrafo ou uma selfie com os jogadores. Desta vez, houve quem tivesse sorte.
Igualdade de géneros: há abertura mas é preciso tempo
Um dos grandes saltos do país nos últimos anos verificou-se na questão dos direitos humanos, mais precisamente dos diretos das mulheres. Hoje em dia já não têm de estarem atrás dos maridos quando andam na rua. Foram autorizadas a fazer a carta de condução e a conduzirem. O 'nijab' (véu que cobre o rosto, os cabelos mas mostra os olhos) deixou de ser obrigatório, pelo que muitas mulheres optam por usar apenas 'hijab' (véu que cobre o cabelo mas mostra a cara toda).
As mulheres foram autorizadas a trabalhar fora de casa, pelo que é normal vê-las em diversos postos de trabalho, na sua maioria a respeitarem os costumes. No Aeroporto internacional de Riade, a maior parte dos funcionários que faziam o controle de entrada no país eram do sexo feminino, todas elas de cara tapada. Em várias lojas, nos centros comerciais, o mesmo cenário. Nos postos de turismo, quase todas as mulheres que vimos usavam apenas o 'hijab', ou seja, tinham a cara destapada.
Essa abertura ao Mundo parece mais visível longe de Riade. Em Dammam, por exemplo, cruzamo-nos com mais mulheres de cara descoberta do que em Riade. E também vimos mais a conduzir e a passearem sozinhas.
Se dantes precisavam da companhia de um homem para andarem na rua, hoje em dia tal não é necessário. No Boulevard, por exemplo, vimos grupos de adolescentes sozinhas, algumas delas misturadas com rapazes da mesma idade, a passearem, sem a a supervisão de um homem, como acontecia antes.
A seleção feminina de futebol foi mais um passo na massificação do desporto. Recentemente foi criada a liga feminina de futebol, que tenta replicar o modelo aplicado na liga masculina. Os oito clubes que disputam o campeonato feminino podem contratar até sete futebolistas estrangeiras, num sistema em que quatro podem jogar de início, no sentido de trazer qualidade, mas também para passarem conhecimento.
Acusações de 'Sportswashing' não preocupam. Desporto é ferramenta de paz
Tornar-se uma potência no futebol faz parte do projeto 'Saudi Vision 2030', lançado pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salman. O investimento no futebol é visto como uma forma de atrair turismo e afastar o estigma dos abusos dos direitos humanos num país onde a homossexualidade é crime, há pouca liberdade de expressão e as mulheres ainda não tem os mesmos direitos que os homens.
As acusações de 'sportswashing' (termo que designa a prática de indivíduos, grupos, corporações, ou governos, de usar o desporto para construir uma imagem internacional positiva e desviar o foco dos abusos de direitos humanos) parecem não preocupar o reino da Arábia Saudita.
"Se a lavagem de imagem incrementar o PIB da Arábia Saudita 1% que seja, então vou continuar a fazê-lo. Não me importa o que digam. Tenho um crescimento de 1% no PIB graças ao desporto, depois disso vou atrás do 1,5%. Podem dizer o que quiserem, vamos chegar a esses 1,5%", disse o líder do país, numa entrevista à 'Fox News'.
O país pretende usar o desporto também para entreter os mais jovens. Dos 32,2 milhões de habitantes do da Arábia Saudita, (cerca de 42% são estrangeiras), 51% por cento tem menos de 30 anos, de acordo com o último censo. Segundo o governo saudita, mais de 80% desta população joga, frequenta ou acompanha o futebol, o desporto nacional por eleição.
Simon Chadwick, professor de desporto e economia geopolítica na SKEMA Business School, disse à CNN que o governo da Arábia Saudita está preocupado com a perspectiva de os mais jovens da sociedade se radicalizarem ou de surgir um sentimento antigovernamental como o da primavera Árabe. Assim, o futebol poderá ajudar a manter a paz.
"O que estamos a começar a ver na Arábia Saudita neste momento é a emergência de um novo contrato social. E o contrato social está essencialmente a dar resposta às necessidades da população da Geração Z. Querem o Ronaldo? Têm-no. Querem algumas das melhores equipas de futebol do mundo? Tem-nas. Querem que o Campeonato do Mundo venha para a Arábia Saudita? É isso mesmo... Mas não nos questionem", explicou Chadwick.
A primavera Árabe foi uma onda de protestos pró-democracia que assolou o Médio Oriente e o Norte de África em 2011. Quatro líderes árabes na Líbia, Iémen, Egipto e Tunísia foram depostos. Houve também revoltas falhadas no Bahrein e no leste da Arábia Saudita, seguidas de repressões que duraram anos, como acontece na Líbia, com uma guerra civil contínua há vários anos.
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