Ponto prévio: este texto pode não ser aconselhado a quem sofre de vertigens. Saltar de uma plataforma de 27 metros (21 no caso das senhoras), atingindo velocidades de 85 km/h em apenas três segundos, impõe respeito a qualquer um. Até mesmo aos atletas que todos os anos fazem com que pareça fácil desafiar as leis da gravidade.
“Claro que temos medo. Não há outra forma. Faz parte do respeito que sentimos por este desporto e por este lugar”, revela Jonathan Paredes, que travou uma luta intensa com Gary Hunt até ao último salto no ihéu de Vila Franca do Campo, em São Miguel, palco da quarta etapa do Red Bull Cliff Diving World Series.
Depois de El Nido, nas Filipinas, Dublin, na Irlanda, e Polignano al Mare, em Itália, a mítica prova de saltos de grande altura voltou a passar pelos Açores pelo oitavo ano consecutivo, o que faz da etapa portuguesa a mais antiga do circuito. E a continuidade para 2020 já foi assegurada por Marta Guerreiro, Secretária Regional da Energia, Ambiente e Turismo.
Açores, o paraíso dos ‘cliff divers’
Mas, afinal, o que têm os Açores de tão especial para atrair, ano após ano, estes atletas? “Deve haver alguma coisa na água daqui”, diz, bem-disposta, Rhiannan Iffland, referindo-se ao facto de conseguir boas pontuações sempre que salta em Vila Franca do Campo.
E a verdade é que a australiana voltou a vencer, pela segunda vez consecutiva, a etapa açoriana. Iffland alcançou ainda um feito inédito ao vencer pela quarta vez seguida em outras tantas etapas da presente temporada, estabelecendo um novo recorde na categoria feminina. A atleta dominou do início ao fim, vencendo por uma impressionante margem de 22 pontos sobre a segunda classificada, Jessica Macaulay.
Apesar do registo impressionante, a australiana diz que não se sente uma lenda do ‘cliff diving’. "Uma lenda não diria, mas claro que estou orgulhosa da minha prestação”, garante a atleta, que acrescenta que até ao último salto na final procurou não pensar na possibilidade de fazer história na modalidade. Aliás, quando questionada pelo SAPO Desporto sobre o que um atleta sente momentos antes de se atirar para a água, Rhiannan respondeu:
- Aqueles cinco minutos antes de saltar é a pior parte do salto. Toda aquela antecipação e adrenalina, em que tens tantas emoções a percorrerem-te o corpo…Tento que nada passe na minha cabeça nesse momento. Ao longo do tempo vamos aprendendo a controlar essas emoções, e quando chego à plataforma a única coisa em que penso é no salto e no que devo fazer para que tudo corra de forma segura e perfeita.
Gary Hunt, vencedor na categoria masculina, corrobora. “O salto em si acaba por ser relativamente fácil quando comparado com a coragem que é preciso para nos atirarmos. Antes de saltar, as dúvidas são tantas, começas a questionar-te sobre o que estás ali a fazer, mas a partir do momento em que deixas a plataforma tudo se torna mais fácil e o teu corpo faz o que tem a fazer”, nota.
O atleta inglês, de 35 anos, está na competição desde 2009, tendo levado o troféu de campeão mundial para casa de 2010 a 2012, de 2014 a 2016 e no ano passado. “Tenho a oportunidade de fazer o que gosto perante milhares de pessoas. Seria doido se não saltasse de uma plataforma a 27 metros de altura”, diz.
Conhecido por ‘Anel da Princesa’, devido ao seu formato, o ilhéu de Vila Franca do Campo, situado a meio quilómetro da costa da primeira capital da ilha de São Miguel, é classificado como reserva natural desde 1983. Longe de ser um local turístico - só pode receber 400 pessoas a cada visita – esta pequena formação vulcânica esconde uma espécie de piscina gigante, com uma pequena praia de areia, que se descobre quando a maré está baixa. Do lado oposto, a sul, erguem-se dois estreitos rochedos, que formam o canal para onde os atletas mergulham.
Na primeira e na segunda ronda é dada a possibilidade de saltar diretamente dos penhascos, algo que não acontece em mais nenhuma etapa. Esta é uma homenagem às origens do ‘cliff diving’, no Havai, e representa o contacto com a natureza no seu estado mais puro.
"É o paraíso dos ‘cliff divers", começa por dizer Rhiannan Iffland. “Todos os dias sonhamos em mergulhar em sítios como este. Olhar para o horizonte e não ver mais nada além do mar deixa-me feliz e tranquila. É, sem dúvida, um lugar especial”, confidencia.
Para Adriana Jiménez, vencedora da etaça açoriana há dois anos, não há lugar como este. “O ilhéu tem qualquer coisa de mágico, a cor das rochas, a junção dos penhascos com o oceano… Parece que foi tudo construído à mão propositadamente. É o meu local preferido”, afirma a atleta mexicana.
Mas não é apenas o salto que torna a etapa açoriana diferente. O próprio percurso até ao local onde tudo acontece é em si um desafio até para os mais corajosos. Para poderem saltar diretamente das rochas, os atletas têm de trepar por uma ravina acentuada e depois descer por rapel até chegarem à altura certa.
“Não é só o salto, é também chegar lá acima. A subida até ao topo da rocha é uma aventura por si só. E claro que saltar dos penhascos é mais desafiante”, conta Andy Jones, dos Estados Unidos, que terminou a etapa no terceiro posto, atrás de Jonathan Paredes (2.º) e Gary Hunt (1.º).
Mau tempo ainda atrapalhou
É também nos Açores que os ‘cliff divers’ têm a possibilidade de viver "as quatro estações num só dia", como diz Jacqueline Valente, atleta brasileira que competiu este ano como ‘wildcard’ (convidada). A instabilidade do tempo no arquipélago levou mesmo antecipar o início da prova para quinta-feira e a adiar as rondas de sexta-feira para sábado.
“Sabemos que o tempo aqui pode mudar bastante de um momento para o outro, mas conhecemos bem este sítio e sabemos tudo aquilo com que podemos contar, para o bem e para o mal. Perante essas adversidades, acho que a única preparação que temos de fazer é a nível mental e não perder a coragem”, diz Jonathan Paredes, segundo classificado nesta etapa, admitindo que a forte ondulação nos últimos dias “não ajudou muito” os atletas.
Gary Hunt reconhece que a etapa açoriana “não é fácil para os recém-chegados”. “O meu primeiro ano aqui foi um pesadelo, é um lugar com características muito próprias, ter de lidar com o vento, as ondas… Não tem sido um lugar muito fácil para mim, mas fui melhorando com a experiência”, diz.
Aliás, tanto Paredes como Hunt acabaram por ser as estrelas da etapa em Vila Franca do Campo. O mexicano terminou a competição com seis notas 10, estabelecendo assim um novo recorde para o maior número de notas máximas conseguidas numa só etapa. Mas acabou por ser o britânico a levar o troféu, numa decisão que foi discutida até ao último salto.
Veja o salto que deu o triunfo a Gary Hunt
"Sinto-me um homem diferente do que era no ano passado. Estava em baixo mentalmente, foi um ano difícil que me afetou psicologicamente. Mas até agora tem corrido tudo bem. Este é o Gary 2.0" disse o campeão em título, que não esconde a ambição de participar nos Jogos Olímpicos, mas garante que por agora vai "focar-se" neste campeonato.
“Neste momento é um sonho que parece bastante distante, mas nos últimos dois anos tenho saltado da plataforma dos 10 metros e noto que há uma evolução. Mesmo que não chegue lá, pelo menos quero tornar-me melhor mergulhador”, partilha o inglês, conhecido pela sua obstinação e foco na modalidade.
Emoção, adrenalina... e um pedido de casamento
Um dos melhores momentos desta etapa do Red Bull Cliff Diving acabou por escapar ao olhar dos jornalistas, que não tiveram oportunidade de assistir à primeira ronda de saltos, antecipada um dia por força das condições meteorológicas previstas para sexta-feira. Jucelino Júnior, ‘wildcard’ brasileiro, decidiu surpreender a namorada, também ela habituada às lides da alta competição, mas na patinagem artística.
O atleta, de 35 anos, saltou das rochas, nadou em direção ao local onde se encontrava a namorada, e de seguida exibiu um anel, acabando por pedir a jovem, de nacionalidade letã, em casamento. O local escolhido para fazer o pedido não foi por acaso.
"Não haveria local melhor no mundo para agregar algo mais à minha vida do que estar aqui, nos Açores, um local que é a cara do cliff diving", começou por dizer. “Tive mais medo de ouvir um 'não' do que saltar lá de cima. Mas a resposta foi positiva", contou, visivelmente feliz, Jucelino Júnior, que chegou a integrar uma produção do Cirque du Soleil antes de se ‘virar’ para os saltos de grande altura. Neste momento, tenta voltar ao circuito como elemento permanente.
Saltos regressam em 2020
Ainda mal recompostos de uma etapa de cortar a respiração, atletas e fãs do Red Bull Cliff Diving ficaram desde logo a saber que o campeonato irá voltar ao nosso país em 2020, uma vez mais no ilhéu de Vila Franca do Campo. A garantia foi dada por Marta Guerreiro, Secretária Regional da Energia, Ambiente e Turismo, que destacou o potencial deste evento “para trazer imensos fluxos turísticos para a região".
“Temos um património fantástico, que sabemos preservar. É incrível ver estes mergulhos diretamente das rochas para a nossa água e perceber o impacto e a notoriedade que isto tem para os Açores ", disse Marta Guerreiro, no final da etapa deste sábado.
Em 2020, o Red Bull Cliff Diving passará pelo ilhéu de Vila Franca do Campo pelo nono ano consecutivo, numa etapa com data marcada para os dias 4 e 5 de setembro. Este ano ainda falta visitar os seguintes locais: Beirute, Líbano (14 de julho); Mostar, Bósnia e Herzegovina (24 de agosto) e Bilbau, Espanha (14 de setembro).
Resultados (pódio)
MASCULINOS
1.º Gary Hunt - 600 pontos
2.º Jonathan Paredes - 350 pontos
3.º Andy Jones - 350 pontos
FEMININOS
1.º Rhiannan Iffland - 600 pontos
2.º Lysanne Richard - 370 pontos
3.º Jessica Macaulay - 360 pontos
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