A carreira enquanto atleta de alta competição sempre foi pautada pelo compromisso. O amor a uma causa em que mergulhou de cabeça aos 18 anos, deixando de lado outro sonho: O de ser médico.
Nasceu há 46 anos em Vila do Conde: José Bento Azevedo Carvalho é o nome que aparece inscrito no bilhete de identidade, mas o mundo do ciclismo conhece-o apenas por José Azevedo. Nos anais da sua carreira, ficou o percurso feito a pulso primeiro ao serviço da espanhola Once, e depois nas norte-americanas US Postal e Discovery Channel, onde atingiu dois 5.ºs lugares no Tour e um 5.º lugar no Giro de Itália. Foi durante o percurso internacional que assumiu a missão de gregário, onde ajudou os líderes a atingirem os objetivos. Foi na equipa espanhola que começou por ganhar o seu espaço, servindo de apoio ao espanhol Abraham Olano. A partir de 2004, já na US Postal, o objetivo passou por levar Lance Armstrong à vitória no Tour nos anos seguintes.
"Era um papel que eu gostava de fazer. Sentia que era valorizado pela equipa e pelos diretores", lembra.
Cedo no ciclismo, por influência do pai. Na mente sempre esteve uma ambição, a mesma que agora giza a sua carreira enquanto diretor desportivo de elite, percurso que iniciou na norte-americana Radio Shack. Foi nessa função que conseguiu o feito de ver o veteraníssimo Chris Horner vencer a Volta a Espanha em 2013. Seguiram-se cinco anos na Katusha, onde assumiu o papel de diretor desportivo e mais tarde o de diretor geral.
O balanço foi positivo, com destaque para as vitórias na Milan-San Remo, no Tour de Flandres, Volta ao País Basco e de vários triunfos somados na Volta a França.
Em 2015, a equipa falhou por um lugar o topo da classificação mundial por equipas, por apenas oito pontos. Uma queda do espanhol Joaquim Rodríguez na Lombardia impediu o conjunto de somar pontos necessários para garantir o primeiro lugar.
"Bastava-nos ter ficado nos 10 primeiros e fazíamos os pontos que nos davam a vitória do Ranking Mundial", explica.
Com a saída da principal referência, o espanhol Joaquim Rodríguez, que acabou por terminar a carreira em 2016, a Katusha viu-se arredada dos grandes resultados, a que também não foi alheio um forte desinvestimento por parte do 'patrão' Igor Makarov.
Em 2019, a equipa acabou absorvida pela Israel Cycling Academy, que assumiu o projeto suíço com origens russas.
Depois de sair da Katusha-Alpecin em setembro no ano passado e sem expetativas para assumir já este ano outro projeto, acabou por assinar em meados de março pela francesa Nippo-Delko Once Provence. Isto tudo num contexto atípico com a interrupção das provas devido à pandemia da COVID-19. Uma equipa que apesar de constar numa divisão abaixo do nível Pro-Tour, a Pro-Continental, tem grandes ambições para o futuro, e foi esse projeto que conseguiu seduzir José Azevedo.
Foi precisamente por querermos saber mais sobre esse seu papel na equipa francesa que ligámos a José Azevedo. Mas coloquemos primeiro um travão no andar da carruagem: A longa conversa que tivemos com o notável ex-ciclista tem muito mais ingredientes.
A rotina do dirigente e treinador de ciclismo tem sido uma autêntica 'roda vida' nos últimos dias, com constantes reuniões. A prioridade tem passado por reestruturar a equipa de meios necessários para a competição ao mais alto nível. Ainda assim, José Azevedo abordou com calma e com todo pormenor o que têm sido os últimos 28 anos.
Os tempos na equipa da Katusha-Alpecin
SAPO Desporto: Esteve seis anos na Katusha [saiu em setembro de 2019], onde ocupou os cargos de diretor geral e diretor desportivo. Qual é o balanço que faz?
José Azevedo: Houve aspetos mais positivos do que negativos, felizmente. Como diretor desportivo, destaco as vitórias que a Katusha conseguiu alcançar, vitórias bastante importantes: Milan-San Remo, Tour de Flandres, Voltas ao País Basco, etapas na Volta à França. Ou seja, Em 2015 terminámos o ano com 40 vitórias e em segundo na classificação mundial. Perdemos apenas por oito pontos. E podíamos ter sido primeiros se o Joaquim Rodríguez não tem tido uma queda (Lombardia) que o impediu de correr, bastava-nos ter ficado nos 10 primeiros e fazíamos os pontos que nos davam a vitória do Ranking Mundial. Conseguimos ainda lançar outros jovens que puderem crescer no mundo do ciclismo e poder ver essa evolução como foi o caso do Ilnur Zakarin ou do próprio Alexander Kristoff, corredores que atingiram níveis bastante elevados.
S.D: Considera que os resultados nos últimos anos ficaram aquém do esperado?
J.A: Isso deveu-se ao facto do orçamento da equipa ter ficado reduzido de ano após ano e isso obrigou-nos a apostar em corredores mais jovens. Deixámos de ter corredores que nos dessem garantias de resultados. Tivemos que apostar em jovens para os ir formando, de forma a que eles pudessem assumir esse papel no futuro. Foi uma aposta minha tendo em conta a parte financeira. Continuámos a ter uma equipa competitiva. Acho que fizemos um bom trabalho, pena que a equipa terminasse e essa aposta nos resultados acabou por não ter o efeito desejado, já que necessitava de continuidade.
S.D: Depois de sair da Katusha, assumiu o desejo de voltar a fazer um trabalho mais de campo, como diretor desportivo. Ficou desencantado com a função de diretor geral?
J. A: Eu gosto muito do trabalho de campo. Naquela altura [2017 e 2019] aceitei essa grande responsabilidade. Temos que tomar decisões, assinar contratos, consultando sempre a equipa técnica. Aquilo que eu não gostei? Quando se ocupa uma função destas, é bom que o diretor geral possa tomar as suas decisões e depois vir a ser responsabilizado por essas decisões. Primeiro terá que haver autonomia total. Não vou dizer que não gosto, se tiver que ocupar novamente essas funções não terei quaisquer problemas, mas terá que ser sempre em condições diferentes em que haja uma maior autonomia de decisão.
José Azevedo: "O último ano na Katusha foi desgastante. Houve várias situações que eu prefiro não comentar, mas provocam sempre um grande desgaste psicológico e emocional."
S.D: Como se dá a sua saída da Katucha, percebeu que o seu percurso tinha chegado ao fim?
J. A: Eu saí porque o projeto terminou, a nossa expetativa era de que continuasse. Só tenho a agradecer pelo que o dono da equipa, o senhor Igor Makarov, fez durante 11 anos. Tomou a decisão de terminar. Acabou por haver um acordo da compra da licença por parte da equipa de Israel. A partir daí a equipa tinha a sua estrutura, o seu grupo de direção já formado e logicamente que não havia lugar para todos. Não foi opção minha, mas fui quase forçado porque o projeto terminou. Mas essa decisão já nos foi comunicada tardiamente, a meio de setembro [2019], no final da volta à Espanha. O último ano na Katusha foi desgastante. Houve várias situações que eu prefiro não comentar, mas provocam sempre um grande desgaste psicológico e emocional."
Novo desafio na Nippo-Delko One Provence
S.D: Mesmo com este contexto, consegue ser contratado pela equipa da Nippo-Delko One Provence para o cargo de diretor desportivo, não será por acaso.
J. A: Sim, estava a pensar que iria ser um ano em que iria estar a ver por fora. Estava a tentar estabelecer contactos para regressar em 2021. Depois fui abordado pela equipa da Nippo, equipa que foi comprada pelo Philippe Lannes. Ele apresentou-me o projeto que tinha e as suas ambições de futuro. É um projeto ambicioso que me seduziu bastante e em que em várias áreas vamos começar do zero. A função é de diretor desportivo, ocupando também algumas responsabilidades dentro da equipa, para além da parte desportiva. Foi a necessidade de entrar num projeto novo, mesmo que seja no de uma equipa Pro-Continental. Tenho a motivação de fazer algo crescer e evoluir. Foi isso que me seduziu a aceitar esse projeto. Chegámos a acordo a meio de março, sensivelmente. Mas foi na altura que a pandemia suspendeu as provas. Estamos ainda a trabalhar e a reestruturar a equipa. Mas foram essas ambições que me levaram a aceitar.
S.D: Não foi um passo atrás na carreira aceitar um convite de uma equipa que está na Pro-Continental, um nível abaixo das equipas integram o Pro-Tour, como era o caso da Katusha? Quais são os objetivos da equipa?
J. A: É um projeto de Pro-Continental, mas é um projeto ambicioso e o objetivo é a Volta a França. Poderá ser em 2021 ou depois. Queremos conseguir dotar esta equipa de meios com a criação de um departamento com três treinadores, preparadores físicos, nutricionistas, preparador mental, fisiologista, massagistas, mecânicos, staff, logística, dotando a equipa de todos estes meios. Queremos criar também uma imagem forte e tentar juntamente com os nossos corredores criar uma equipa competitiva que nos possa trazer resultados. O objetivo passa pela aposta numa equipa com corredores jovens, fazer com que eles possam ter uma progressão, para atingir bons resultados. (...) Não interessa em que divisão está a equipa, o que interessa são as ambições e foi o que me atraiu".
José Azevedo: "Projeto na Nippo-Delko? Não interessa em que divisão está a equipa, o que interessa são as ambições e foi o que me atraiu."
S.D: De que forma este contexto de pandemia com a COVID-19, mudou a sua forma de trabalhar e como se motivam os ciclistas?
J.A: Julgamos que no fim de julho, agosto, as competições possam ser retomadas, pelo menos as primeiras datas do calendário UCI apontam para aí. Para os corredores é sempre um período complicado pelo facto de estarem fechados, terem de treinar diariamente nos rolos, não é o tipo de treino ideal para o que eles estão habituados. Tentamos motivá-los para fazerem esse trabalho, dar-lhes objetivos e motivação para treinar. E agora que podem treinar na estrada, há uns planos já mais elaborados. Já conseguem fazer um trabalho e um treino que eles mais gostam de fazer que é treinar nas estradas. O objetivo é que recuperem os índices físicos para que se apresentem a 100% deste o início.
J. A: E no seu entender há condições para a realização da Volta à França?
Essas decisões competem aos Ministérios e às Direções-Gerais de Saúde de cada país. Estou convencido que existem condições. Terá que haver um plano que crie essa segurança aos corredores. Mas eu realmente acho que há condições. Quando nós vemos as praias cheias de pessoas, as esplanadas e uma série de coisas a decorrer e a economia a começar a retomar eu não vejo o porquê de não poder haver uma prova de ciclismo que reúne 180 corredores mais uma caravana, num espaço ao livre, [Tour de França] quando numa praia se podem juntar 14 mil pessoas, eu não vejo o porquê de não se realizar essa competição.
José Azevedo: "Não vejo o porquê de não poder haver uma prova de ciclismo como o Tour de França, quando numa praia se podem juntar 14 mil pessoas"
A momento do ciclismo português
Desde que assumiu o papel de diretor desportivo, quis o destino que José Azevedo apenas tivesse abraçado até ao momento projetos em equipas internacionais. Ainda assim, o que se passa no ciclismo português não lhe passa ao lado, admitindo que não foi contactado por nenhuma equipa portuguesa antes de aceitar o convite da Nippo-Delko. Na equipa francesa, conta já com José Gonçalves, com quem trabalhou na Katusha, e que "é um dos líderes." Pelo meio há tempo para analisar para falar de Rui Costa, ciclista que dispensa apresentações e de Rúben Guerreiro, que foi 17.º na Vuelta do ano passado.
S.D: Trabalhou com o José Gonçalves na Katusha e agora reencontrou-o novamente na Nippo. O que se pode esperar dele?
J. A: O José um dos líderes desta equipa. Nós esperamos dele resultados nas corridas por etapas. Tem todo o potencial para fazer bons resultados e aspirar a excelentes classificações. Conheço-o bem, estive com ele três anos na Katusha e conheço as suas capacidades. Depositamos muita confiança nele. Se o vir a disputar corridas e vê-lo nos primeiros lugares, para mim não é surpresa nenhuma.
José Azevedo: "Depositamos muita confiança no José Gonçalves. Se o vir a disputar corridas e vê-lo nos primeiros lugares, para mim não é surpresa nenhuma."
S.D: Pretendem reforçar a equipa com mais ciclistas portugueses?
J. A: Neste momento não faz muito sentido estarmos a pensar em contratações: Primeiro porque neste momento os corredores que estão na equipa merecem-nos o máximo de respeito e eles este ano praticamente não competiram e não tiveram a possibilidade de demonstrar que merecem continuar ou renovar contrato. Temos confiança máxima nos nossos corredores. Mas estamos a tentar ir ao mercado, estarmos atentos aos corredores que estão em Portugal e procuro estar atento ao pelotão World Tour, pelotão Europe Tour e também às equipas de formação. Não lhe vou negar que Portugal e eu sendo português estou atento e tenho conhecimento do ciclismo português, dos corredores que existem em Portugal e existem corredores bastante interessantes e fortes que têm todo o potencial e capacidade para poderem ser um reforço da equipa.
S.D: Como tem visto o percurso de Rui Costa [atualmente na UAE Team Emirates] nos últimos tempos? Terá sido excessiva a aposta durante vários anos em provas de três semanas, como são os casos do Tour e da Vuelta?
J. A: "O Rui Costa foi um ciclista que ganhou três vezes a Volta à Suíça, ganhou a Dunquerque, em Montreal, ganhou etapas no Tour e depois teve aquela vitória no campeonato do mundo [Mundial de Florença em 2013]. Esses triunfos só demonstram a capacidade que o Rui tem. Eu acho que em determinada altura, quando o Rui venceu o Mundial, começou a apostar em corridas de três semanas, na tentativa de atingir o top-10. Obviamente que tem sentido, seria o passo natural a dar. Mas o Rui é um corredor muito forte em corridas de um dia e de uma semana. Eu acho que é aí que ele deve apostar, nesse tipo de corridas", disse, explicando que "Talvez aquela ambição que o levou a querer lutar por estar entre os primeiros numa grande volta fez com que ele durante anos insistisse nesse objetivo. E isso naturalmente condiciona toda a uma época porque preparar uma corrida de três semanas, é diferente de preparar corridas de uma semana. No início do ano começou logo muito forte e isso só demonstra que ele alterou o seu programa e os seus objetivos. Viu o seu bom momento condicionado pela paragem."
José Azevedo: Rui Costa? A ambição levou-o a querer lutar por estar entre os primeiros numa grande volta, o que fez com que ele durante anos insistisse nesse objetivo. E isso naturalmente condiciona toda a uma época. Preparar uma corrida de três semanas, é diferente de preparar corridas de uma semana.
S.D: E em relação ao Rúben Guerreiro? Fez 17.º na Vuelta em 2019, quando estavam os dois na Katusha. Ficou surpreendido com esse resultado?
J.A: É um corredor jovem [25 anos]. Fomos busca-lo à Trek onde tinha uma função de ajuda aos líderes. Na Katusha tinha mais liberdade para tentar os resultados. Inicialmente iria ao Tour, começou bem na Austrália com um top-10. Na Vuelta demonstrou as suas capacidades e isso deu-lhe mais confiança a nível psicológico. Este ano poderia ser importante para ele para confirmar o que tinha feito na Vuelta para continuar a sua progressão. É um corredor que pode evoluir bastante desde que esteja numa equipa que o compreenda e lhe dê oportunidades.
S.D: Como tem visto a evolução do ciclismo português nos últimos anos e o que falta para darmos um salto para outro patamar?
J.A: Há um trabalho que está a ser feito na Federação que é visível e que tem vindo a dar os seus resultados. A Volta ao Algarve é uma competição que tem uma dimensão internacional bastante grande, com bastante prestígio. Depois temos a Volta à Portugal que é um grande evento nacional e com transmissão das etapas em direto. Se a Volta a Portugal conseguir ter equipas internacionais de nível superior conseguirá aumentar a competitividade e o interesse do Media e a divulgação das corridas. Isso vai permitir aos ciclistas portugueses terem mais exposição internacional. E com as provas que já fazem parte do calendário, como o prémio ‘Jornal de Notícias’, Volta ao Alentejo, Torres Vedras e outras corridas que foram surgindo nos últimos anos, o aumento dos dias de competição permite que os atletas tenham mais atividade e evolução. O passo seguinte é que os ciclistas portugueses possam competir mais a nível internacional.
S.D: Vê-se um dia a trabalhar numa equipa portuguesa?
J.A: Enquanto aguardava por um projeto, de Portugal não surgiu nada. Não houve nenhuma abordagem. É lógico que não fecharia as portas. Tudo dependeria do projeto que fosse apresentado. Para mim desde que o projeto fosse ambicioso…Não surgiu essa possibilidade mas não digo que um dia não possa vir a treinar uma equipa em Portugal. Não digo que não e são os projetos ambiciosos que me podem vir a seduzir.
O primeiros passos como ciclista, o curso de medicina que ficou para trás e os grandes feitos no pelotão internacional
A bicicleta surgiu na vida de José Azevedo aos 14 anos, altura em que começou a praticar a modalidade. Mas tudo feito de mansinho, já que o curso de medicina era um dos objetivos. Quis a estrada da vida que José Azevedo a percorresse a pedalar. Primeiro na Recer Boavista, passando pela Maia MSS, onde acabou por dar nas vistas depois de uma vitória numa etapa na Volta às Astúrias. Rumou à Once, antes de chegar à US Postal, equipa onde acabaria por se cruzar com Lance Armstrong, ajudando o norte-americano a alcançar vários triunfos no Tour.
S.D: O que é que o levou a pegar numa bicicleta?
J. A: Eu comecei a praticar ciclismo com 14 anos, nunca tive a ambição de ser um ciclista profissional. O meu pai foi ciclista, está ligado ao mundo do ciclismo. Foi a vontade de fazer um desporto, mas sem a ambição de ser profissional. Com o passar dos anos ganhei-lhe o gosto, o vício foi aumentando. Comecei a ter uma visão diferente, já a apostar e a pensar que poderia ser a minha profissão, mas essa decisão só cheguei quando comecei a competir nos sub-23, quando tinha 18 anos, começou por recordar, prosseguindo.
A minha ambição era estudar medicina, era o meu objetivo de vida. O ciclismo era um hobby para praticar uma atividade física. Quando cheguei à idade de entrar para a faculdade, já começava a ponderar. Na altura de passar a sub-23, foi quando tinha que entrar para a faculdade. Houve um período de indecisão. Coloquei uma meta, em que iria fazer mais dois anos nos sub23, e se em dois anos me surgisse um contrato profissional, escolheria o ciclismo. Surgiu o convite no segundo ano e optei pelo ciclismo e o sonho de ser médico ficou para trás.
José Azevedo: "Quando surgiu o convite para ser profissional optei pelo ciclismo e o sonho de ser médico ficou para trás."
Arrepende-se de algo que não teve a oportunidade de fazer, já que abraçou uma carreira profissional tão cedo?
J. A: Não me arrependo de nada. Quando tomamos uma opção temos que fazer as coisas a 100%. E eu sabia que o ciclismo é um desporto super duro e que obriga a muito descanso. O treino diário pode durar entre as duas a seis horas, com dias de trabalho de muita intensidade. E no outro dia volta-se a trabalhar em blocos, de quatro, cinco, seis horas. O meu objetivo era ser ciclista. Sabia que para atingir determinadas metas esse era o caminho. Quando oiço alguém a dizer: ‘Tive que fazer esse sacrifício, a mim custa-me compreender. ‘É sacrifício porque se calhar não gosta tanto daquilo que faz’"
José Azevedo: "Quando oiço alguém a dizer: 'Tive que fazer esse sacrifício', a mim custa-me compreender. É sacrifício porque se calhar não gosta tanto daquilo que faz"
Esteve na Maia, na Recer Boavista, antes de dar o salto para a equipa espanhola da ONCE. Como é que se deu mudança?
J. A: Desde que passei a profissional em 1994 (Boavista) , o meu objetivo era competir a nível internacional. Estar nas melhores provas de ciclismo mundial. O Tour era o sonho, e queria testar os meus limites. Sentava-me e analisava o calendário português e apostava naquelas provas onde vinham as equipas estrangeiras. Era a ‘montra’ que eu tinha para me tentar mostrar. Essa oportunidade surgiu em 2000, numa etapa da Volta às Astúrias (entre Gijón e El Viso), onde ganhei a camisola amarela (MAIA/MSS). E acho que foi essa prova que me deu o contrato com a ONCE.
S.D: Na Once, US Postal e Discovery assumiu o papel de gregário. Sentia-se confortável nessa função de ajudar o líder a conseguir os melhores resultados?
J. A: Sabia que tinha que me afirmar [o meu potencial]numa equipa como a ONCE. Com corredores como o [Joseba] Beloki que vinha de um pódio no Tour, que tinha o Igor Galdeano, o [Jan] Hruska, uma série de corredores bastante fortes. Tinha que ganhar o meu espaço. Logicamente tinha que obedecer às estratégias da equipa. Logo no primeiro ano fui à Volta ao Algarve e fiz segundo.
José Azevedo: "Armstrong? Sempre tive o máximo de respeito por ele. Não me lembro de ele ser egoísta ou arrogante, era um verdadeiro líder"
Depois fiz um Top-10 em Valência, 5.º no Paris-Nice. Comecei a ganhar o meu espaço. A minha primeira grande volta foi o Giro [de Itália]. Tinha como líder o [Abraham] Olano, ficava sempre com ele. No final, ele acaba por fazer 2.º e eu 5.º e isso acaba por ser a minha afirmação dentro da equipa, relembra, continuando.
Eu tinha um papel mais de trabalho para outros líderes, era um trabalho que gostava de fazer. Sentia que em determinadas etapas tinha as minhas possibilidades e poderia terminar nos primeiros. Como estava inserido num grupo em que me sentia bem, nunca houve essa vontade de mudar. Mudei depois para a US Postal em 2004, que foi quando a Once terminou. E aí surgiu o convite para uma equipa que tinha ganho os últimos cinco tours. Tinha a aposta da equipa para ajudar o [Lance] Armstrong a ganhar o Tour nos anos seguintes. Era um papel que eu gostava de fazer. Sentia que era valorizado pela equipa e pelos diretores.
Chegou a ter convites para ser líder?
Sim podia ter assumido o papel de chefe de fila. Mas chegamos a um ponto em que também conhecemos as nossas capacidades e as nossa limitações e eu sabia que estando a 100%, num Tour poderia fazer [no máximo] 5.º ou 10.º. Era o meu lugar. Estando num equipa em que poderia trabalhar para um líder, teria as minhas possibilidades e poderia também ficar num lugar alto. E foi o que aconteceu. Nesse primeiro ano com o Armstrong terminei em (2004) 5.º. Senti-me valorizado e fui fazendo um trabalho que eu gostava.
José Azevedo: "Sim podia ter assumido o papel de chefe de fila. Mas chegamos a um ponto em que também conhecemos as nossas capacidades e as nossa limitações e eu sabia que estando a 100%, num Tour poderia fazer [no máximo] 5.º ou 10.º. Era o meu lugar."
Richard Huelamo, antigo fisioterapeuta e assistente de Lance Armstrong, abordou numa recente entrevista a personalidade difícil do norte-americano. É assim que o recorda?
J.A: Eu tenho o máximo de respeito por ele. Foi sempre uma pessoa que nos respeitou dentro do grupo. Eu fazia o meu trabalho, sempre se comportou comigo de uma forma educada e profissional. Não me lembro de ele ser egoísta ou arrogante, era um verdadeiro líder. Comigo em particular só tenho comentários positivos em relação ao Armstrong.
O passaporte biológico, um mecanismo que está a limpar a imagem do ciclismo
S.D: Nos últimos anos com o surgimento do passaporte biológico e com mais controlo por parte das equipas, o ciclismo está agora mais livre de doping do estava há alguns anos atrás?
J. A. Eu acho que não existe doping no ciclismo sinceramente. Houve algumas situações que são públicas e aconteceram no ciclismo. Mas aconteceu no ciclismo e não sei se aconteceu nos outros desportos ou não. A UCI criou o passaporte biológico em 2008, existe um controlo muito rigoroso no ciclismo, todos os atletas são controlados muitas vezes durante o ano. O passaporte biológico permite detetar alguma utilização de um produto proibido, assim como se existem oscilações e que indiciem o uso de alguma prática ilegal. Há um controlo que faz com que o doping não exista a nível organizado. Se existe algum atleta que a nível pessoal cometa essa erro...possivelmente isso pode acontecer. Mas isso não significa que seja organizado pelas equipas, referiu, antes de explicar que o nível de investimento que era feito pela equipa da Katucha a esse nível, daria para pagar a um ciclista de renome.
José Azevedo: "Situações que são tornadas públicas acabam penalizar a modalidade e passa para a opinião pública que estas situações só existem no ciclismo, o que não é verdade"
Nos últimos anos como responsável máximo pela equipa da Katucha posso-lhe dizer que para além do passaporte biológico, implementámos um controlo interno. E era um investimento muito grande que nós fazíamos, dinheiro esse que nos permitiria contratar um bom corredor. Mas nós preferíamos também ter mais esse controlo que nos dava garantia que os atletas trabalhavam de forma legal. Situações que são tornadas públicas acabam penalizar a modalidade e passa para a opinião pública que estas situações só existem no ciclismo. O doping não existe no ciclismo. Mesmo em outras modalidades, um atleta poderá ser levado a essa tentação, mas isso não quer dizer que são os clubes que organizam e que esse clube está ligado ao doping.
S.D Depois de ter estado na Discovery, regressou a Portugal para representar o Benfica. Cumpriu todos os seus objetivos ou ficou-lhe aquele amargo de boca por não ter conquistado a Volta a Portugal?
J. A: A nível internacional atingi resultados que me deixaram orgulhoso. A nível nacional, até ir para o estrangeiro, os resultados que consegui foram também importantes. Consegui vencer praticamente todas provas com excepção da Volta a Portugal. Os melhores anos da carreira, onde eu estive mais solidificado, foram os anos que passei no estrangeiro. Mas foi a vontade de querer ganhar a Volta a Portugal foi o que me fez regressar a Portugal nos últimos anos de carreira, onde competi pelo Benfica. Não consegui, e posso dizer que foi o que faltou. Tentei, mas houve sempre corredores mais fortes, mas há que respeitar.
Como é que iniciou a sua carreira de diretor desportivo. Já lhe reconheciam essa capacidade de liderança?
J. A: Quando chegamos a determinada a idade começamos a ter noção que o ciclismo para nós são mais três ou quatro anos, quando a carreira começa a entrar na fase final. E nessa fase de uma forma muito natural, o que me seduzia era o trabalho de diretor desportivo. Nos últimos anos estava muito atento à forma como planeavam a época, as corridas, fazia-lhes bastantes perguntas por curiosidade. Era algo que eu gostava. Quando terminei a carreira, comecei a fazer o curso de treinador para ter as habilitações, para caso surgisse uma hipótese, pudesse estar preparado. A meio de 2009, nasceu a equipa da RadioShack e propuseram-me um desafio. Eles sabiam também das minhas ambições, e deram-me essa oportunidade. E a partir daí comecei o meu trajeto.
José Azevedo: Nos últimos anos de carreira estava muito atento ao trabalho do diretor desportivo: A forma como planeavam a época, as corridas, fazia-lhes bastantes perguntas por curiosidade
Considera-se reconhecido depois do percurso que fez enquanto ciclista e agora como diretor desportivo de elite?
J. A: Sinto-me respeitado pelos resultados que consegui ao longo dos anos, não só em Portugal, mas também a nível internacional.. Felizmente consegui esse respeito e acho que isso é o mais importante. Acho que esse respeito também se deve ao facto de no meu trabalho também respeitar os outros e ter criado boas relações com todas as pessoas. Neste momento sou um treinador como os outros".
S.D: Como tem sido a sua rotina agora?
J. A : Praticamente em casa, tentando respeitar ao máximo os conselhos dados pelas autoridades de saúde e contribuir para que este vírus não seja um foco de transmissão. Saio quando é necessário, mas tomando precauções e na espetativa de podermos voltar ao trabalho e às competições."
S.D: Ainda pega de vez em quando na bicicleta?
J. A: Com esta situação não. Não andava muito, só de vez em quando. Sem obrigações, sem planos. Quando apetece fazer alguma atividade física, faço. Não posso dizer que é frequente.
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