Habituou-nos à grandeza, mas os grandes também têm o seu momento de fraqueza, em que mostram a inevitável verdade com a qual, mais tarde ou mais cedo, todos nos deparamos: somos humanos e os humanos têm falhas.
Simone Biles, quatro vezes campeã olímpica e 19 vezes campeã do mundo, fez soar os alarmes na final feminina por equipas de Tóquio2020, quando após um salto abaixo do que tinha habituado (13.766) deixou o recinto de prova. Minutos depois, surgiu o anúncio da sua saída da competição, que os Estados Unidos acabariam por perder para o Comité Olímpico Russo.
A dúvida ficou no ar por momentos: terá sido uma lesão física? Ou outro motivo? Podemos considerar que será uma lesão, mas das que não se vêm no exterior, das que nos invadem o interior e a mente com uma sombra negra, das que podem ser mais incapacitantes do que uma perna partida.
"Assim que piso o tapete sou só eu e a minha cabeça a lidarmos com demónios (…). Tenho de fazer o que é melhor para mim e focar-me na minha sanidade mental e não comprometer a minha saúde e o meu bem-estar", revelou a ginasta após o final da competição por equipas.
A porta tinha ficado aberta para as outras competições, mas esta manhã ficou-se a saber que Simone Biles tinha fechado mais uma porta, a da final do 'all-around', com o pleno apoio da Ginástica Norte-Americana.
"Após uma avaliação médica, Simone Biles retirou-se da final individual do ‘all-around’ dos Jogos Olímpicos de Tóquio, para poder concentrar-se na sua saúde mental. Simone continuará a ser avaliada diariamente para determinar se participa ou não nas finais dos eventos individuais da próxima semana”, lê-se no comunicado publicado pela federação no Twitter.
A permanência de Biles em Tóquio continua rodeada de incerteza, mas há algo que já é certo: a norte-americana conta com bastante apoio. Desde a ginástica, ao basquetebol, passando pela própria Casa Branca, Simone viu a sua tomada de decisão merecer aplausos, principalmente pela sua coragem.
A vida de Biles
Mas andemos com a fita atrás: Simone Arianne Biles, nasceu em março de 1997, no Ohio, e não teve uma infância fácil.
A sua mãe, Shanon Biles, sofria de toxicodependência, e Simone e os seus três irmãos (Adria, Ashley e Tevin) foram colocados num centro de acolhimento. Em 2000, Simone e Adria foram adotados pelo avô materno, Ron Biles e a sua mulher Nellie Cayetano Biles, dando início a uma caminhada que acabaria nos Jogos Olímpicos.
Aos seis anos, acontece a primeira experiência na ginástica, numa visita de estudo.
"Lembro-me de espreitar e ver aquelas raparigas nos trampolins e nas barras, todas aqueles piruetas e pensava 'Acho que consigo fazer aquilo'. Então comecei a copiá-las, até que apareceu um treinador ao meu lado e perguntou-me se alguma vez tinha feito aquilo. Depois, mandaram uma carta para casa", recordou, em 2017, numa entrevista à 'Academy of Achievement'.
Deixou a escola e passou a ter aulas em casa para se dedicar à ginástica, deixou os habituais marcos de um jovem normal para trás, como as festas e os bailes de finalistas para alcançar os marcos que só alguns atingem: medalhas em Mundiais e Olímpicos.
Em 2013, conquistou os primeiros ouros mundiais. No ano seguinte, mais quatro. Em 2015, outros quatro. Começava a vislumbrar-se uma das grandes atletas da ginástica com apenas 18 anos.
Em 2016, chega ao maior dos palcos, já debaixo de olho de muitos pelo que tinha feito antes. No Rio de Janeiro, arrasa a concorrência em quase todos os aparelhos: foi campeã olímpica no 'all-around' individual e por equipas, no solo e no salto. Só falhou o ouro na trave, onde foi bronze.
Depois de um hiatus em 2017 - em que aproveitou para escrever o autobiografia 'Courage to Soar: A Body in Motion' - Biles voltou à carga nos Mundiais de 2018 e 2019, onde arrecadou nove medalhas de ouro. Parecia tudo pronto para uns Jogos Olímpicos em grande, onde poderia igualar o recorde de nove medalhas de ouro conquistadas pela soviética Laris Letynina.
Mas um vírus veio estragar os planos de Biles e de milhares de atletas por todo o mundo.
Dias depois do anúncio do adiamento dos Jogos para este ano, a norte-americana não escondeu que a pandemia causaria um impacto físico e mental nos atletas.
"Fisicamente, não tenho dúvidas de que os meus treinadores me vão pôr em forma em 2021, mas, mentalmente, ao passar mais um ano, acho que se vai notar e vai pesar a todos. (...) Eu não sabia muito bem o que sentir [com o adiamento dos Jogos]. Estava no ginásio e fiquei meio sem reação, sentada. Chorei, mas afinal foi a decisão certa", disse em abril de 2020.
Quase um ano depois do adiamento, mais uma má notícia: nuns Jogos que já tinham apresentado vários desafios aos atletas, a pedra basilar do apoio de muitos teria de ficar em casa: a família.
A organização anunciou que os Jogos não teriam espectadores estrangeiros presentes, o que significava que família, amigos, namorados e namoradas teriam de ver pela televisão e mandar o seu apoio pelos meios digitais algo que, como esta pandemia já bem nos mostrou, não é a mesma coisa.
Esta ausência foi algo que Simone Biles admitiu na altura que a iria afetar, uma vez que sempre teve a sua família presente nas provas que realizava e que essa presença funcionava quase como um ansiolítico natural.
"Não me sinto preparada e confortável até os encontrar na multidão"
"Definitivamente vai ser estranho não ter a minha família lá, eles nunca falham uma competição. Estou um pouco nervosa que me possa 'passar' por causa disso. Acho que o que vou ter de fazer é não tentar localizá-los nas bancadas, porque tenho esse mau hábito. Não me sinto preparada e confortável até os encontrar na multidão, sinto-me muito ansiosa, mas quando os vejo acalmo-me por saber que eles estão lá", disse num documentário do Facebook.
Agora, meses depois, Simone viu-se privada do seu apoio numa altura em que quando sobe ao praticável fica sozinha com os seus demónios. Contudo, a sua atitude corajosa vem alertar para um problema que está cada vez mais nas bocas do desporto: a saúde mental dos atletas.
O peso do mundo nos ombros
Antes da sua desistência do 'all-around', Simone Biles já tinha deixado uma mensagem de 'alerta' nas redes sociais, depois da sessão de qualificação onde teve algumas falhas.
"Não foi um dia fácil ou o meu melhor, mas ultrapassei-o. Às vezes, sinto que tenho o peso do mundo em cima dos ombros. Eu sei que a sacudo e faço parecer que a pressão não me afeta, mas às vezes é difícil hahaha", escreveu.
No dia seguinte, os ombros 'cederam' e Simone Biles juntou-se a uma lista de atletas que abordaram diretamente os problemas mentais com que lidam devido à pressão da prática desportiva.
Meses antes, a própria tinha abordado a sua relação com as emoções e a ginástica, num documentário do 'Facebook Watch'.
"Não acho que seja uma pessoa emotiva, mas também sinto que sou assim por causa da ginástica. Não é passar por cima das emoções, mas escondê-las e não as mostrar, ter vergonha de mostrar emoções. No desporto é muito difícil e sinto quase como se não tivesse tempo para chorar ou ser fraca, mas também tive de aprender a ser emotiva, vulnerável... A ser eu mesma às vezes, porque é um desporto tão difícil se tentares ser um robot. Por isso, fora do desporto, temos de relaxar, tentarmos ser nós mesmos, sermos humanos", disse.
Em maio, tinha sido Naomi Osaka a tomar uma posição contra as conferências de imprensa obrigatórias em Roland Garros. A nipónica explicou que as conferências pós-jogo prejudicavam a sua saúde mental, mas isso não impediu a organização de multar a tenista em cerca de 12 mil euros e ameaçá-la de exclusão da prova.
E foi então que Osaka se antecipou à organização.
"O melhor para o torneio, para os outros jogadores e para o meu bem-estar é que eu me retire, para que todos se possam voltar a focar no ténis que se joga em Paris", escreveu numa publicação nas redes sociais, onde admitiu que vinha a passar por períodos de depressão desde o US Open de 2018.
"A verdade é que tenho sofrido com longos períodos de depressão desde o US Open de 2018 e que tenha tido dificuldades em lidar com isso. (...) Não sou uma oradora em público natural e tenho ondas de ansiedade antes de falar com os media mundiais", disse.
"Não queria estar mais no desporto... Não queria mais estar vivo"
A ansiedade, a pressão, a depressão, podem levar alguém ao limite, independentemente da capacidade física ou das medalhas conquistadas, como o caso de Michael Phelps bem demonstrou.
O mais medalhado numa só edição dos Jogos Olímpicos (2008) admitiu, em 2018, que depois da glória olímpica, vinha um ponto baixo.
"Na verdade, depois de cada Jogos Olímpicos caía num estado de depressão grande. (...) Diria que 2004 foi provavelmente o primeiro período de depressão pelo qual passei", contou numa conferência nesse ano, citada pela CNN.
Por detrás disto, considerou o nadador, estava a elevada intensidade e pressão que colocava em cada Olimpíada. Ainda assim, Phelps não pediu ajuda.
"Eu automedicava-me, basicamente todos os dias, para tentar resolver aquilo de que fugia", notou.
A maior queda, admitiu, foi depois dos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012. Phelps não queria viver.
"Não queria estar mais no desporto... Não queria mais estar vivo", disse, realçando aquilo porque passou na altura: sentado sozinho no quarto durante dias, sem comer, a dormir mal e "simplesmente a não querer estar vivo".
Foi aí que resolveu pedir ajuda profissional e que começou a sentir melhorias, ao, finalmente, falar dos seus sentimentos.
"Disse para mim mesmo várias vezes 'Porque é que não comecei a fazer isto há 10 anos' Mas não estava pronto. Eu era muito bom a compartimentar coisas e a esconder aquilo de que não queria falar, com qual não queria lidar - Nunca queria ver essas coisas", disse.
Na altura, recuperado dos 'demónios' que o invadiram, Michael Phelps não teve dúvidas: a sua recuperação foi mais valiosa que qualquer ouro.
"Aqueles momentos e aqueles sentimentos e emoções, para mim, são anos-luz melhores que vencer uma medalha de ouro olímpica. Estou muito agradecido por não ter posto um fim à minha vida".
A verdade é que por mais que o mundo do desporto e a sociedade em geral alerte para estes problemas, existirão sempre aqueles que ignoram, insultam e boicotam os que fazem soar os alertas e sensibilizam o mundo para estes problemas. Basta olhar para uma secção de comentários de um qualquer artigo sobre este ou outro qualquer assunto que pretenda alertar e sensibilizar para outras realidades.
Contudo, é importante que todos saibam que, por mais negro que pareça o futuro, por menor que seja a esperança, há sempre outro caminho. Procure ajuda junto do seu médico, psicólogo ou psiquiatra. Fale com os seus amigos e familiares sobre o que sente.
Se estiver a ter pensamentos suicidas contacte uma Linha de Crise, como a SOS Voz Amiga, ou o SNS 24 (808 24 24 24). Veja mais contatos e informações que podem ajudar aqui.
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