Num único fim de semana, Portugal assistiu a três episódios de violência no desporto, mas houve mais. Enquanto a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e a Liga de Clubes (LPFP) estudam medidas mais severas para punir - ou mesmo travar - a onda de violência que assombra o futebol em Portugal, os agressores continuam a viver numa bolha própria, acreditando que um jogo à porta fechada ou uma multa são uma fatura mínima depois de um soco ou insulto.
Invasões de campo, cadeiras a voar e um jogo que ficou pela metade
Porto (1 de dezembro)
Nos minutos finais do clássico entre o FC Porto e o Benfica (0-0), um adepto aproveitou a confusão que se gerou perto do banco dos encarnados para invadir o relvado do Estádio do Dragão e empurrar Pizzi. O agressor foi constituído arguido e notificado a prestar declarações no Tribunal de Pequena Instância do Porto, mas acabou por não comparecer.
Devido à ausência, o Procurador poderá reencaminhar o caso para o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP), que deve agora notificar o interveniente e também todas as testemunhas.
"O FC Porto não se identifica com a atitude, que repudia, do espectador que entrou em campo perto do final do jogo frente ao Benfica, numa altura em que a partida se encontrava interrompida na sequência de um comportamento antidesportivo de um dirigente benfiquista. Tendo isso em conta, o clube repudia e demarca-se de todas as iniciativas em curso que visam o apoio financeiro ou judicial a esse espectador”, escreveu o FC Porto, em comunicado, três dias depois do sucedido.
Coimbra (3 de dezembro)
Uma mulher sofreu ferimentos na sequência de desacatos entre adeptos da Académica e do Famalicão, no final do jogo disputado no Estádio Cidade de Coimbra, que terminou com uma igualdade (1-1).
Uma mulher adepta do Famalicão sofreu ferimentos na cabeça, depois de ter sido atingida na cabeça por uma cadeira supostamente arremessada por adeptos da ‘briosa’, quando se encaminhava para a saída do estádio.
Com os nervos à flor da pele, alguns desentendimentos dentro do campo entre dirigentes e jogadores foram depois transmitidos para as bancadas, com os adeptos visitantes a terem de sair escoltados e debaixo de grande confusão.
Fora do estádio, a polícia teve de intervir para separar os adeptos dos dois clubes e criar um cordão de segurança para evitar mais desacatos e permitir que vários autocarros com os apoiantes do Famalicão pudessem sair em segurança.
No mesmo dia, a Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP) instaurou um processo de averiguações: “A LPFP repudia e condena este género de incidentes no futebol, pelo que solicitará às forças de Segurança Pública destacadas na partida realizada em Coimbra o envio, com caráter de urgência, do relatório das ocorrências do jogo, de que se lamenta a existência de um ferido”.
Aveiro (3 de dezembro)
Num vídeo, publicado no canal dos aveirenses no Youtube, pode ver-se como um adepto, equipado com as cores do Beira-Mar, agride a soco a equipa de arbitragem, quando esta se dirigia para os balneários do Estádio Mário Duarte, no final da primeira parte do jogo entre a equipa aveirense e o União de Lamas, referente à 12.ª jornada do campeonato distrital da Associação de Futebol de Aveiro, que acabou por ser interrompido, quando o União de Lamas vencia por 1-0.
“O Beira-Mar lamenta os acontecimentos ocorridos hoje, que levaram à interrupção da partida contra o CF União de Lamas. A direção e os adeptos repudiam veemente qualquer ato de violência no desporto e não se reveem nessas atitudes. O Beira-Mar é e será sempre pelo fair-play e pela boa conduta desportiva. As nossas sinceras desculpas a todos os que estiveram presentes no Estádio, ao Clube Futebol União de Lamas e à imprensa”, explicou o clube de Aveiro em comunicado.
Estes foram os casos mais mediáticos, mas houve mais
De acordo com a APAF, os árbitros Leonardo Marques e Rui Coelho “foram brutalmente agredidos” quando se dirigiam para o balneário ao intervalo do jogo entre o Beira-Mar e o União de Lamas, da 1.ª Divisão da Associação de Futebol de Aveiro.
Porém, no mesmo fim de semana, no encontro entre o Casaínhos e o União das Mercês, da Associação de Futebol de Lisboa, Ricardo Lourenço “foi agredido ao minuto 19 por um jogador da equipa das Mercês”.
No final do jogo de futebol de 7 (Escalão Benjamins) que opunha a Academia de Corroios ao Amora, da Associação de Futebol de Setúbal, o árbitro Sílvio Luz foi agredido.
A paixão e o ódio para além do desporto
A Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF) solidarizou-se com os juízes que foram agredidos em jogos disputados no fim de semana, e lamentou que os seus apelos à serenidade, respeito e segurança continuem a ser ignorados.
A APAF lamenta que o comunicado que emitiu em 23 de novembro “chamando a atenção de que a serenidade, o respeito e a segurança são condições essenciais para que os árbitros entrem em campo” não tenha tido, até ao momento, “o melhor acolhimento”.
"O futebol em Portugal não é apenas aquele que (…) se joga profissionalmente semana após semana" e que existe um outro "que igualmente move paixões e onde semanalmente situações como as que aconteceram este fim de semana, cada vez mais, afetam aqueles que por mera paixão à arbitragem teimam em entrar em campo".
Em 23 de novembro, a APAF exigiu que no prazo de 20 dias fossem realizadas reuniões com o presidente e direção da liga de futebol no sentido de ser criado "um corpo regulamentar que reforce a punição de quem não cumpre as normas éticas e disciplinares a que estão obrigados todos os agentes, tal como sucede, por exemplo, na UEFA".
Os árbitros entregaram pedidos de dispensa aos jogos, cumprindo o prazo regulamentar de 20 dias, e tencionam efetivá-los caso não se verifiquem vários pressupostos, entre os quais "total ausência de insinuações da parte de clubes e agentes desportivos que coloquem em causa a honra e o bom nome dos árbitros".
O SAPO Desporto esteve à conversa com um advogado com fortes ligações ao desporto, que preferiu manter o anonimato para evitar exatamente o que estamos a debater: a opressão e a intimidação.
“No meu entender, só estando toda a gente de mãos dadas, trabalhando em consonância e em conjugação de esforços, entre entidades máximas no futebol como a Federação Portuguesa de Futebol e a Liga de Clubes, bem como o ministro da Educação [Tiago Brandão Rodrigues, que tutela também a pasta do desporto], é que podemos resolver este problema. Acho que temos pessoas à frente capazes de parar esta situação, além de mecanismos legais para travar este flagelo de forma ajustada. Recordo o que aconteceu há cerca de cinco anos, numa medida do ministro da Administração Interna, pela mão de Miguel Macedo [o Governo aumentou as sanções para os adeptos violentos e fiscalização das claques desportivas], tendo conseguido trabalhar de forma consertada com as entidades… Eu sou muito positivo face a estes problemas e acredito que chegará a ajuda para travar esta onda que belisca o futebol.
Numa altura em que parece mais fácil apontar o dedo a diretores de comunicação, comentadores, twitter, emails e facebook, devemos parar, refletir e perguntar: a culpa não será das políticas dos clubes ditos ‘três grandes’?
“Neste caso concreto, só vejo uma solução: sensibilizar. Os dirigentes já foram desaconselhados a prestar qualquer tipo de declaração ‘incendiária’, mas se há alguém que pode parar isto é a ERC (Entidade Reguladora da Comunicação). Quem gosta de futebol não pode concordar. Eu sou um apaixonado por futebol e no que toca a este assunto, difícil é encontrar quem fale realmente da paixão pelo futebol".
“Como adepto de futebol, mais do que jurista, acho que não há castigo maior para um adepto do que ver a sua equipa jogar à porta fechada".
Canelas, o caso mais mediático de violência dentro de campo em 2017
A 2 de abril deste ano, o encontro entre Rio Tinto e Canelas a contar para a Divisão Elite da A. F. Porto foi interrompido definitivamente aos 2 minutos de jogo devido a uma agressão ao árbitro do encontro.
O árbitro José Rodrigues foi agredido em pleno relvado com uma joelhada depois de ter mostrado o cartão vermelho ao jogador do Canelas Marco Gonçalves.
As equipas recolheram aos balneários e não se verificaram mais ocorrências. No entanto, gerou-se alguma confusão quando alguns adeptos dirigiram-se às bilheteiras para tentar o reembolso do dinheiro dos bilhetes. O avançado do Canelas Marco Gonçalves acabou por ser detido.
José Sequeira: "Os dirigentes desportivos não incitam à violência"
Quisemos saber o que leva a uma pessoa a ter comportamentos violentos num estádio de futebol, seja dentro das quatro linhas ou nas bancadas. Convidamos o Dr. Jorge Sequeira para nos ajudar a desenhar o mapa da violência no futebol. Nesta conversa com o SAPO Desporto, o castigo do SC Braga foi um tema inevitável.
Consegue traçar o perfil do adepto que agride?
Um adepto que agride já tem, no seu background e na sua forma de ser e estar, uma atitude de rebeldia e negativa, à procura de confrontos sistemáticos, não conseguindo encontrar pontos de convergência consigo próprio. Tem um espírito maniqueísta, agarrado ao lema do ‘ou és dos meus ou és contra mim’. Na sua mente reside um comportamento bélico, que não lida bem com a crítica, sem fair-play. Contudo, de uma forma geral, os nossos adeptos são civilizados e sabem comportar-se. Pegando no exemplo do que aconteceu no clássico entre o FC Porto e o Benfica, em que o adepto invadiu o campo, a situação foi logo controlada. É condenável, é verdade, mas não matou ninguém.
E um jogador que tem comportamentos violentos em campo?
Esse comportamento pode estar relacionado com algum descontrolo emocional momentâneo. Até porque os jogadores são treinados para lidar com o auto-controlo, mas no calor do momento pode surgir um empurrão ou um insulto. É raro ver um jogador profissional descontrolado… O que aconteceu no jogo do Canelas é um entre 500 clubes…
Podemos dizer que o clima de intimidação que se vive atualmente dá azo a uma premeditação na agressão?
Não acho que haja premeditação, mas é verdade que muitos partem com a vontade de andar à pancada com os adeptos dos outros clubes. Ser adepto faz parte da condição humana. As pessoas têm na sua génese um descontrolo emocional quando as coisas não correm bem. No quotidiano, se alguém nos bater no carro vamos ficar descontrolados ou até pode haver pancada no café por causa de uma vizinha.
O que pode fazer um clube para impedir estes movimentos violentos?
Não se pode fazer lavagens cerebrais. É óbvio que se deve continuar a fazer sensibilização, para haver mais fair-play… Nunca ouvi um dirigente a dizer para andar à porrada com x e y, nem eles querem isso. Quando há desacatos são os primeiros a dizer que o caldo está entornado e a lançar comunicados a dizer que não se refletem em tais comportamentos. Os dirigentes dos clubes pedem aos adeptos para se portarem bem e acredito que não incitem à violência.
O problema são os momentos prévios aos grandes jogos. A tal troca de galhardetes, os insultos gratuitos, o olho por olho, dente por dente... é um terreno fértil para que os adeptos continuem a propaganda dos dirigentes.
Como adepto do SC Braga, como vê a punição no caso de racismo?
Eu queria ver se interditassem o acesso ao Estádio da Luz em dia de jogo do Benfica, queria mesmo ver, até vinha o primeiro-ministro [António Costa] falar sobre o caso e a pedir que se levantasse o castigo. Em Braga, os adeptos amam o seu clube e têm um historial de bom comportamento.
Agora, não podemos mandar coser a boca a três ou quatro pessoas que não sabem comportar-se…
Até quando?
Para ficar mais por dentro das medidas apresentadas pelo presidente da FPF siga este link.
Sabemos que o presidente da FPF, através do seu departamento jurídico, continua a lutar para que a intolerância e a intimidação desapareçam do futebol português, chegando mesmo a pedir a criação de uma autoridade administrativa para combater a violência no desporto e a adoção de punições mais duras para quem ponha em causa o futebol.
Numa audição na Assembleia, em outubro passado, Fernando Gomes expôs a sua preocupação com a escalada do clima de ódio no futebol português, lamentando a existência de vários programas de opinião e comentário na televisão.
De acordo com as palavras do advogado que prestou declarações para este artigo e do Dr. Jorge Sequeira, todos os elementos ligados ao futebol - desde o adepto até ao presidente, passando pela imprensa - têm um papel ativo para responder a esta questão: Até quando?
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