A atribuição do Mundial2022 ao Qatar deu início à discussão, acicatada agora pela mudança de Cristiano Ronaldo para a Arábia Saudita, que, ao que tudo indica, será um dos candidatos à organização da prova em 2030. O alerta foi dado por várias organizações não governamentais: é cada vez mais comum que países como estes, conhecidos pelos diversos atropelos aos direitos humanos, estejam interessados em usar o desporto como estratégia para construírem uma imagem internacional positiva.
Ronaldo chegou mesmo a ser criticado pela Amnistia Internacional, que considerou que o português deveria "usar a sua considerável plataforma pública para chamar à atenção para problemas de direitos humanos" na Arábia Saudita e impedir que o país "limpe a sua imagem" através do estatuto do futebolista – um fenómeno apelidado de "sportswashing", que passaremos de seguida a explicar.
Durante a sua apresentação no Al-Nassr, clube patrocinado pelo príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, o madeirense encarou a mudança para Riade como "uma boa oportunidade para mudar a mentalidade da nova geração". "Muitas pessoas não sabem, mas o Al-Nassr tem uma equipa feminina", revelou o avançado, chamando a atenção para como o país está em plena mudança.
Veja as imagens da apresentação de Ronaldo no Al-Nassr
O futebol como manobra de diversão
O fenómeno não é recente, mas nunca foi tão falado como agora. Usado pela primeira vez por organizações não governamentais, "sportswashing" (a junção em inglês das palavras desporto e lavagem) consiste numa "manobra de branqueamento" em que o desporto é usado para "esconder a realidade e construir uma falsa imagem positiva", conforme explica ao SAPO Desporto a investigadora da Amnistia Internacional (AI) no Médio Oriente, Dana Ahmed.
"O conceito é semelhante ao de 'greenwashing' [passar uma imagem falsa de sustentabilidade]. No caso do desporto, acontece quando um país recebe grandes eventos para desviar a atenção da comunidade internacional do seu historial de violações dos direitos humanos", diz.
Um dos exemplos mais antigos remonta aos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, em que a Alemanha nazi, já com Adolf Hitler no poder, procurava melhorar a sua reputação aos olhos da comunidade internacional.
No entanto, foi em junho de 2015 que a expressão foi usada pela primeira vez, quando Baku, capital do Azerbaijão, recebeu os primeiros Jogos Europeus da história. Na altura, o governo local procurava convencer o mundo de que o Azerbaijão era um país moderno e democrático, apostando em iniciativas que envolveram um contrato de patrocínio com o Atlético Madrid ou a organização de eventos como o Grande Prémio de Fórmula 1 e a final da Liga Europa. Enquanto isso, organizações de proteção dos direitos humanos acusavam o governo azeri de práticas repressivas.
Hoje em dia, proliferam os casos envoltos em polémica, sobretudo no futebol. A atribuição do Mundial ao Qatar foi certamente uma das mais controversas: um dos mais pequenos estados do mundo, sem tradição futebolística, com um clima desértico adverso à realização da prova em pleno verão, mas também um dos mais prósperos, graças ao petróleo. Na altura, foi usado como argumento público de candidatura os benefícios do alargamento do Mundial ao mundo árabe, com a promessa de construção de estádios supermodernos.
Contudo, à medida que a competição se aproximava, as polémicas foram surgindo e a indignação foi crescendo, não só face à possível corrupção na FIFA que levou à atribuição do campeonato, mas também perante as más condições de trabalho dos migrantes, as inúmeras mortes que da construção das infraestruturas resultaram, a discriminação das mulheres, das minorias étnicas e das pessoas LGBTQIA+ e a falta de liberdade de imprensa.
Em 2011, um ano após a inédita atribuição do Mundial a um país árabe, o fundo de investimentos Qatar Sports Investments (subsidiário do Qatar Investment Authority, detido pelo Emir Tamim bin Hamad Al Thani), cujo objetivo passa por investir milhões na produção de gás e petróleo no Qatar, comprou 70% das ações do Paris Saint-Germain.
A aquisição do PSG por parte do Qatar Sports Investments fez ainda de Nasser Al-Khelaifi, presidente do fundo e do clube parisiense, uma figura relevante nos bastidores do futebol internacional, assumindo cargos de liderança na UEFA e na Associação de Clubes Europeus. Uma das últimas movimentações da empresa aconteceu precisamente em Portugal, em outubro de 2022, quando o QSI adquiriu 21,6% do capital do SC Braga.
Ainda antes do Qatar, a Rússia organizou o Mundial de 2018 numa altura em que enfrentava sanções internacionais e uma grande hostilidade por parte do Ocidente: a anexação da Crimeia; a acusação de interferência nas eleições presidenciais norte-americanas para apoiar Donald Trump e noutros processos eleitorais europeus; o apoio ao regime de Bashar al-Assad e a intervenção na guerra da Síria; as suspeitas de envenenamento do antigo espião russo Serguei Skripal e da filha, Iulia, no Reino Unido; e o escândalo de doping que levou o Comité Olímpico a expulsar a Rússia dos Jogos Olímpicos de 2020.
Quando questionado sobre quem seria o vencedor do Mundial na Rússia, Vladimir Putin não teve dúvidas: "os organizadores".
Tal como são vários os exemplos de clubes de futebol que passaram a estar dependentes do dinheiro das petromonarquias do Golfo Pérsico – além do PSG, outro caso gritante é o do Manchester City, que desde 2008 tem como proprietário o Abu Dhabi United Group, do xeque Mansour Bin Zayed Al Nahyan, da família real dos Emirados Árabes Unidos.
"É provável que as autoridades sauditas promovam a presença de Ronaldo no país como uma forma de distrair a atenção do terrível historial dos direitos humanos no país"
Mais recentemente, em outubro de 2021, a Premier League confirmou a aquisição por mais de 300 milhões de libras (cerca de 353 milhões de euros) do Newcastle por parte de um consórcio (designado por PCP Capital Partners) formado em parte por investimentos da família real da Arábia Saudita, nomeadamente do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman.
Após a aprovação do negócio, a Amnistia Internacional acusou a Premier League de permitir que pessoas "implicadas na violação dos direitos humanos entrem no futebol inglês só porque têm dinheiro". Isto quando o herdeiro da Arábia Saudita fora acusado em março desse mesmo ano de crimes contra a humanidade por um tribunal alemão.
Esta aquisição mostra "que o futebol inglês está aberto para negócios para lavagem de imagem de um país que viola os direitos humanos. A Amnistia considera absurdo que indivíduos implicados em crimes de guerra ou crimes contra a humanidade possam - mesmo que tenham dinheiro - comprar a sua passagem para o topo do futebol inglês", criticou a organização.
Pouco antes da compra do Newcastle, um relatório da Grant Liberty, organização de defesa dos direitos humanos, analisou a forma como a Arábia Saudita apoiou grandes eventos desportivos nos últimos anos e também como tem usado figuras conhecidas no mundo do desporto, com contratos publicitários para limpar a sua imagem.
De acordo com o documento, o montante gasto pelos sauditas no que toca a patrocínios a eventos desportivos já ultrapassou os 1,5 mil milhões de dólares (quase 1,4 mil milhões de euros): incluem 650 milhões de dólares para a Fórmula 1, durante 10 anos, um contrato de 145 milhões de dólares com a Federação espanhola de futebol (para receber a Supertaça), entre outros contratos para acolher o Rali Dakar, torneios de golfe, snooker e boxe. Uma lista já longa que tem sido financiada pelo Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita.
Na altura, o jornal The Guardian confrontou o porta-voz da embaixada saudita em Washington com as acusações da Grant Liberty ao que este falou do programa Visão 2030, plano de reestruturação do país que tem como objetivo promover a indústria desportiva: "Isso não só criará emprego para milhares de sauditas, mas também melhorará a qualidade de vida de todos".
"O reino orgulha-se de acolher e apoiar vários eventos desportivos que não só introduzem os sauditas a novos desportos e atletas mundialmente conhecidos como também promovem os feitos do reino e a natureza hospitaleira do seu povo no mundo", explicou.
Ronaldo, a última joia da coroa
Para além da compra do Newcastle, atual terceiro classificado da Liga inglesa, os sauditas terão investido mais de dois mil milhões de dólares em parcerias comerciais com clubes de futebol. Mas foi com a contratação de Cristiano Ronaldo pelo Al-Nassr que o país saltou definitivamente para a ribalta do futebol internacional.
Durante a apresentação do português, Musalli al Muammar, presidente do Al-Nassr, reconheceu que o acordo, que fez de CR7 o desportista mais bem pago do mundo, "não se limita ao futebol jogado": "É comercialmente benéfico para nós em termos de rentabilidade."
Nesse sentido, muito se especulou quanto a uma possível utilização da imagem de Ronaldo na candidatura que a Arábia Saudita pretende apresentar, em conjunto com o Egito e a Grécia, para ser um dos anfitriões do Mundial 2030 – o mesmo que Portugal quer coorganizar com a Espanha e a Ucrânia. O anúncio do vencedor, de resto, só será conhecido em 2024.
De acordo com a AFP, que cita fonte próxima do Al-Nassr, o futebolista iria receber mais de 200 milhões de euros para promover a candidatura saudita, algo que o clube já veio desmentir. "O principal foco do jogador está no Al Nassr e no trabalho em conjunto com os colegas para ajudar no sucesso do emblema", pode ler-se no comunicado do emblema de Riade.
Ao optar por uma espécie de "exílio dourado", Ronaldo apontou a "visão" do Al-Nassr sobre o futebol masculino e feminino, e o "potencial" da Arábia Saudita, como fundamentais para a escolha deste desafio. As críticas, contudo, não se fizeram esperar.
"Ronaldo disse que quer dar uma visão diferente da Arábia Saudita, mas a imagem que quer passar não corresponde à realidade. Em vez de oferecer elogios, ele devia fazer uso da sua posição de privilégio e do seu alcance para sensibilizar as pessoas para a realidade do país", defende Dana Ahmed, receando que o futebolista português se torne "um peão" ao serviço do reino saudita.
Recentemente, a Arábia Saudita foi nomeada pela ONU como um dos cinco países que mais violam os direitos humanos, a par da Coreia do Norte, Síria, Irão e Afeganistão. Os abusos naquele país incluem "torturas, detenções arbitrárias e execuções". Em março de 2022, revela a investigadora da Amnistia Internacional, "houve um número recorde de 81 pessoas executadas num único dia".
Os crimes puníveis com pena de morte são variados, passando por homicídio, violação, assalto à mão armada, feitiçaria, adultério, sodomia, homossexualidade e até apostasia (renúncia ou abandono da crença islâmica. Ser homossexual ou transgénero pode também ser punido com chicotadas, prisão, multas e, para estrangeiros, deportação. O ativismo em prol dos direitos da comunidade LGBTQIA+ também é proibido.
Na Arábia Saudita, tal como no Qatar, impera o sistema kafala, que exige que todos os trabalhadores tenham um patrocinador no país, geralmente o seu empregador, que é responsável pelo seu visto e estatuto legal. Um sistema que transforma os trabalhadores migrantes em ‘escravos dos tempos modernos’.
"Em vez de oferecer elogios, Ronaldo devia fazer uso da sua posição de privilégio para sensibilizar as pessoas para a realidade da Arábia Saudita"
Também aqui as mulheres são vítimas de forte discriminação, o que o país explica com o seu caráter islâmico especial (é o berço do islamismo) que, segundo as autoridades, justifica uma ordem social e política diferente da do resto do mundo.
Apesar de terem conquistado novos direitos nos últimos anos – nomeadamente conduzir, ver futebol ou viajar sozinhas –, as mulheres sauditas continuam sujeitas a grandes restrições. Precisarem da autorização de um familiar do sexo masculino para casar ou viver sozinhas, poderem ser presas em caso de desobediência ao seu guardião (familiar do sexo masculino ou marido) ou estarem impedidas de abrir uma conta num banco sem o consentimento masculino são apenas alguns exemplos.
Por serem estrangeiros, tanto Cristiano Ronaldo como a companheira Georgina Rodríguez terão a vida bem mais facilitada. O português reside com a família num condomínio privado em Riade, no qual as regras serão semelhantes às do Ocidente, com acesso às melhores escolas, clínicas, lojas e restaurantes. A polícia religiosa saudita não tem poder dentro dos condomínios privados e, como tal, não pode fazer os estrangeiros obedecerem às leis locais.
No caso específico de Georgina, não é obrigatório usar véu e 'abaya' (uma espécie de vestido longo e escuro), mas terá de usar uma roupa mais discreta quando estiver fora do condomínio privado (como, de resto, se viu na apresentação de Ronaldo). Tanto os homens como as mulheres devem ter os ombros e os joelhos cobertos.
Em declarações ao jornal Record, Fábio Martins, avançado do Al Khaleej, clube saudita treinado por Pedro Emanuel confirmou isso mesmo. "As coisas evoluíram de há cinco anos para agora. Por exemplo, há cinco anos as mulheres não conduziam aqui, não podiam andar sozinhas na rua. Felizmente, isso mudou. A minha mulher anda supertranquila aqui, vai a todo o lado sozinha. E não precisa de andar toda tapada. Obviamente que tem de ter cuidado e respeito pela religião deles, não andar com decotes nem mostrar as penas... De resto, fazemos uma vida normal", contou.
Qatar, Irão... Afinal, os jogadores também protestam
A questão impõe-se: poderá o futebol, cada vez mais instrumentalizado, ser um agente de mudança na defesa dos direitos humanos?
"Estamos a falar de direitos fundamentais do ser humano. O futebol está inserido na sociedade, como tal, tem a responsabilidade de fazer a sua parte na defesa destas questões. Os próprios jogadores não podem viver para sempre nas suas bolhas e fingir que está tudo bem quando à sua volta acontecem atrocidades. Que usem a sua influência para as denunciar", considera a investigadora da Amnistia Internacional.
A verdade é que o impacto da chegada de Ronaldo ao Al-Nassr está à vista: antes do anúncio da contratação do avançado, a 30 de dezembro, o clube saudita tinha, sensivelmente, 834 mil seguidores no Instagram. Neste momento, são já mais de 11 milhões e 300 mil a seguirem o Al-Nassr na mesma rede social.
Fábio Martins não tem dúvidas do impacto mediático da mudança de CR7 para a Arábia Saudita. Abalar as estruturas do regime, isso, já considera ser "impossível".
"É algo que não consegues controlar. Não há como chegar ao patamar do rei ou de outra pessoa no poder para conseguir mudar as coisas aqui. É impossível. Mas acho que esta chegada do Cristiano vai ajudar muito o país nesse aspeto também, vai trazer visibilidade para muitas das coisas que se passam aqui, e por aí acho que pode melhorar", defendeu.
Opinião semelhante foi apresentada por Jordan Henderson, internacional inglês, a propósito do Mundial2022, que veio a público declarar que, por mais que façam enquanto equipa ou a nível individual, as seleções e os jogadores "nunca farão o suficiente" para denunciar as leis restritivas do Qatar.
No caso do Mundial2022, foi a própria FIFA a desaconselhar algumas ações de protesto preparadas pelos pelas seleções, numa carta dirigida a todas as 32 federações presentes em prova, sob pena de existirem sanções. A Dinamarca, por exemplo, foi proibida de treinar com t-shirts com a mensagem "Direitos humanos para todos".
Ainda assim, a equipa dinamarquesa apresentou-se no Mundial com um equipamento alternativo todo negro, num gesto contra a discriminação e em homenagem aos trabalhadores migrantes que construíram estádios, estradas e hotéis sob condições miseráveis, com milhares de vítimas mortais.
Já 16 jogadores australianos decidiram pronunciar-se através de um vídeo conjunto, no qual reclamam por mudanças legislativas no Qatar, nomeadamente na defesa dos trabalhadores e das pessoas pessoas LGBTQIA+.
O uso de braçadeiras arco-íris – chamadas "One Love" – durante os jogos, em sinal de protesto contra a homofobia no Qatar, também foi proibido pela FIFA, mas isso não impediu alguns protestos: os jogadores alemães taparam a boca e usaram chuteiras com cores do arco-íris; o País de Gales colocou bandeirolas coloridas nos cantos do campo de treino; os ingleses ajoelharam-se antes de cada pontapé inicial; enquanto assistiam aos jogos nos estádios, Hadja Lahbib, ministra dos Negócios Estrangeiros da Bélgica, Nancy Faeser, ministra alemã do Desporto e Helle Thorning-Schmidt, antiga primeira-ministra dinamarquesa, usaram braçadeiras coloridas.
Por fim, existe ainda o caso do Irão. Para chamar a atenção para a repressão contra as mulheres no seu país (na sequência da morte da jovem de origem curda Mahsa Amini), os futebolistas iranianos não cantaram o hino nacional antes do jogo contra a Inglaterra. Além disso, parte das adeptas iranianas foi ao estádio sem véu.
No seguimento dessa partida, a CNN noticiou que as famílias dos jogadores, entre eles Mehdi Taremi, do FC Porto, teriam sido ameaçadas com "violência e tortura" caso os jogadores voltassem a não cantar o hino ou fizessem outro qualquer protesto contra o governo. Segundo a mesma fonte, haveria dezenas de agentes iranianos a monitorizarem o comportamento dos atletas, que não podiam reunir-se fora do contexto competitivo.
Taremi, de resto, já fez uso das redes sociais para criticar o que se passa no Irão, mostrando-se "envergonhado" pela violência a que as mulheres são sujeitas naquele país. Mais recentemente, o avançado do FC Porto condenou as execuções de dois compatriotas pelo alegado homicídio de um basiji - uma milícia islâmica - em novembro. “A justiça não se faz com uma corda”, sublinhou o jogador.
Ali Daei, figura maior da história do futebol iraniano, fez questão de apontar o dedo ao regime de Teerão em diversas ocasiões no seguimento da morte de Mahsa Amini. O ex-avançado chegou a ser detido no passado mês de outubro, viu um restaurante e joalharia seus serem encerrados e o avião em que seguiam a mulher e a filha intercetado para que não deixassem o Irão.
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