Kiricocho, kiricocho, kirocoooocho!!! Esta foi a palavra que Erling Haaland ouviu por três vezes na noite de terça-feira quando, aos 52 minutos de jogo, partiu para a bola para bater uma grande penalidade contra o Sevilha, na segunda-mão dos oitavos de final da Liga dos Campeões.
Por três vezes Bono gritou Kiricocho antes de defender o remate do prodígio norueguês do Borussia Dortmund. E funcionou: o guarda-redes do Sevilha adivinhou o lado, esticou-se todo e defendeu a grande penalidade do avançado do emblema alemão. Para azar seu, o VAR viu que se mexeu para a frente antes do remate, pelo que o penálti teve de ser repetido. Novamente Haaland a bater, novamente Bono a adivinhar o lado e a tocar na bola, mas, desta vez, esta 'morreu' no fundo das redes. 2-0 para o Dortmund, dois golos de Haaland.
O 2-0 teve vários episódios estranhos. Inicialmente, Haaland tinha feito golo, mas o vídeo-árbitro alertou o juiz Cüneyt Çakir, que foi chamado para rever a jogada, e anulou o tento por falta do avançado do Dortmund. O jogo recomeçou para logo de seguida parar: nova chamada do VAR, alertando que, no lance do golo anulado, antes tinha havido falta de Jules Koundé sobre Haaland na área. O norueguês bateu, Bono defendeu, o jogo prosseguiu e... outra vez o VAR a chamar o árbitro: guarda-redes do Sevilha saiu da linha antes do tempo, penálti repetido e, agora sim, golo.
Nos festejos, Haaland disse algo a Bono e depois desatou a correr, com Acuña, ex-Sporting, no seu encalce, a tentar apanhá-lo. O argentino não gostou de ouvir as palavras do jovem avançado em direção ao guarda-redes do Sevilha. E tinha razões para tal. Mas já lá vamos.
No final do jogo (2-2), após ser eleito Melhor em Campo com os seus dois golos, Haaland foi questionado sobre o que disse ao guardião dos andaluzes.
"Não sei, gritei a mesma coisa que ele gritou para mim, mas não sei o significado", respondeu. A palavra era kiricocho.
Assim que o jogo terminou, a expressão 'kirikocho Haaland' era das mais pesquisadas no Twitter. O jornalista Juan Sebastián Pérez ajudou os internautas a entender melhor essa superstição.
Kiricocho: de adepto fanático a maldição para os rivais
Tudo começou com a segunda passagem de Carlos Salvador Bilardo nos Estudiantes de La Plata, da Argentina. Kiricocho era um fanático adepto do Estudiantes, daqueles que acompanhava o dia a dia da equipa e assistia a quase todos os treinos. Só que sempre que aparecia no treino, havia uma lesão na equipa. Aos poucos, tornou-se numa espécie de maldição.
Esperava-se que Bilardo, um técnico tão supersticioso, expulsasse o adepto, mas, o técnico fez exatamente o contrário: adotou Kiricocho como mascote da equipa.
Kiricocho tornou-se em algo mais do que adepto do Estudiantes. Bilardo converteu-o no seu amuleto da sorte: sempre que a equipa jogava, lá estava Kiricocho para cumprimentar os jogadores adversários com uma palmadinha nas costas, como que a lançar-lhes um feitiço.
A verdade é que nessa época de 1982 o Estudiantes sagrou-se campeão argentino, com apenas uma derrota, frente ao Boca Juniors. A maldição tinha terminado? Não, nesse jogo, Kiricocho não conseguiu marcar presença e... o Estudiantes perdeu.
Dez anos mais tarde, quando Bilardo chegou a Espanha para treinar o Sevilha, ficou espantado quando ouviu a palavra 'Kiricocho' durante uma grande penalidade.
"Kiricocho era um rapaz de La Plata que esteve sempre connosco e, naquele ano [1982], como fomos campeões, acabámos por adota-lo como nossa mascote. Acredite ou não mas, quando fui para Espanha treinar o Sevilha [1992], houve um penálti para a equipa adversária e ouvi alguém atrás de mim a gritar 'Kirikocho!'. Nem queria acreditar! Então o Cholo [Diego Simeone] e o Diego [Maradona] disseram-me que já tinham ensinado isso a alguns jogadores do Sevilha", contou mais tarde, Bilardo, numa entrevista.
A superstição foi mais rápida que o técnico a chegar à Europa, principalmente a Espanha, onde ainda se ouve essa 'maldição' contra quem vai bater um penálti. Basicamente, o que se tenta fazer é dar azar ao marcador para que este falhe.
No mano a mano entre Robben e Casillas, ouviu-se 'Kiricocho'. E a Espanha foi campeã do Mundo
Importado para Espanha pelos argentinos, rapidamente a palavra entrou no vocabulário dos jogadores espanhóis, embora muitos não tenham a menor ideia do que significa.
O ano de 2010 foi de glória para o desporto espanhol e teve o 'dedo' de Kiricocho. No Mundial de futebol na África do Sul, a Espanha bateu a Holanda e sagrou-se campeão do Mundo pela primeira vez. Um dos lances mais marcantes dessa final é uma defesa espetacular de Iker Casillas, a travar um remate de Robben que estava isolado. Capdevilla e Kiricocho também 'ajudaram'.
"Ia atrás do Robben, fui quem melhor viu nesse lance em todo o mundo. Então quando ele ia marcar, gritei 'Kiricocho!'", contou o antigo jogador do Benfica ao programa 'El Día Después', da Movistar, ele que fez parte dessa seleção espanhola campeã do Mundo.
Em 2018, a seleção francesa mostrou imagens de um treino, onde se via Antoine Griezmann a treinar remates à barra, quando um dos seus colegas gritou 'Kiricocho!', para que falhasse.
Com os jogos à porta fechada e sem adeptos nas bancadas por causa da pandemia de COVID-19, hoje é possível ouvir quase todos os gritos dos treinadores e jogadores no relvado. E 'Kiricocho' é um deles bem aqui ao lado, em Espanha.
Foi preciso uma pandemia para se perceber que a lenda de Kiricocho continua bem viva. Pelo menos em Espanha.
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