O “conto de fadas” que foi a Masters Cup para Gustavo Kuerten ainda está muito presente na memória do ex-tenista brasileiro, que saiu de “um poço” para sagrar-se campeão em Lisboa na “partida mais perfeita” da sua carreira.
Numa conversa com jornalistas (por videoconferência) a partir da sua casa em Florianópolis, Gustavo Kuerten recordou 20 anos em duas horas, apontando para os seus cabelos brancos para evocar a passagem do tempo desde aquele 03 de dezembro de 2000, dia em que, envolto numa ‘chuva’ de confetis e numa bandeira do Brasil, coloriu o Pavilhão Atlântico, em Lisboa, de verde e amarelo e subiu ao topo do Mundo com a conquista da Masters Cup e do número um do ‘ranking’ ATP.
Mas antes de lembrar a final com Andre Agassi, o até hoje único tenista sul-americano a terminar a época na liderança da hierarquia mundial ‘mergulhou’ nas primeiras recordações daquela semana histórica em Lisboa, que até começou da pior maneira, com uma derrota frente ao norte-americano na primeira ronda do ‘round robin’ e uma arreliadora (e dolorosa) lesão na coxa.
“O que me manteve no torneio foi a esperança. Mais do que o ténis, a oportunidade do título ou de ser número um, foi a possibilidade de jogar mais partidas no Masters e a esperança de vencer mais um jogo. Eu queria participar. Não importava como: se eu tivesse condições, ia jogar. Essa esperança manteve acesa a vontade de ficar 40 horas praticamente deitado, fazendo massagens”, revelou, destacando ainda “a gentileza” da organização ao conceder-lhe um dia de ‘folga’ para tentar debelar a lesão.
Condicionado fisicamente, Guga teve de readaptar a estratégia. “Tinha de ser agressivo, ao limite. Não tinha outra hipótese. A estratégia era definir os pontos em três, quatro bolas. Só tínhamos uma escolha, não dava para pensar, o que ajuda muito no ténis. Ao longo do caminho, fui entendendo que o melhor era ser agressivo na hora que precisasse, guardar essa agressividade para o ponto decisivo”, contou.
Ciente de estar num ‘poço’, como repetiu diversas vezes ao longo da conversa, o então jovem jogador de 24 anos baixou “totalmente” as suas expectativas, abdicou de “qualquer tipo de ambição maior”, e simplesmente voltou a gostar de jogar ténis.
“Entrar em campo e sorrir, mesmo dorido. Essa esperança foi crescendo ao longo dos dias ao ponto de ficar inabalável. É realmente uma história e uma façanha fascinante, parece conto de fadas. O tamanho do salto que eu dei, deitado no chão, saindo do ‘court’ praticamente arrastado, para depois [ter] aquela energia estupenda vencendo o [Pete] Sampras e sendo campeão contra o Agassi. Não tem uma explicação real para tudo isso”, assumiu.
Embora tenha sido a final com o ‘Kid’ de Las Vegas que o catapultou para a história do ténis, é das meias-finais com Sampras, à data “o maior tenista de todos os tempos”, que o brasileiro fala com maior emoção.
“Eu perdi o primeiro ‘set’ para o Sampras e sabia que ia ganhar a partida. Depois de três dias, eu estava inabalável. Tinha convicção plena que ia vencer o Sampras [...] num cenário favorável para ele”, revelou.
Naquele encontro frenético, que acabou por ganhar por 6-7 (5-7), 6-3 e 6-4 e que definiria então como “a melhor vitória” da sua carreira, o três vezes campeão (e o denominado ‘rei dos corações’) de Roland Garros conseguiu “viabilizar a insanidade” de estar com um pé fora da Masters Cup e de acabar por apurar-se para a final, com o bónus de ter o número um mundial à sua mercê após a eliminação do russo Marat Safin frente a Agassi na outra semifinal.
“Não pensava mais em ser número um, a minha trajetória já era ‘vou vencer este torneio, vou ganhar aos maiores tenistas da minha geração, acabei de vencer o melhor de todos os tempos, e eu vou ser campeão’. Isso aqui é lindo e maravilhoso, em Portugal, podendo falar português, na nossa casa’”, confidenciou.
Na sua cabeça, a final com Agassi “era um protocolo”. “Eu estava sereno do início ao fim. Uma coisa de um estado sublime, de excelência. Parece impossível. São essas genialidades que são eternas e vão ficar connosco, um presente divino”, notou, referindo-se àquele triunfo, por triplo 6-4, que quase deitou abaixo um Pavilhão Atlântico repleto e empolgadamente ensurdecedor, como “a partida mais perfeita” da sua carreira.
Ganhar aquele título, e o número um, em Portugal “fez total diferença” para Gustavo Kuerten, que só assim teve a oportunidade de manifestar-se daquela forma emocionada ou de abraçar a mãe, como se estivesse em casa.
“Foi uma parcela, uma delicadeza desse momento que transforma... a bandeira do Brasil, escutar ‘Guga, vamos garoto’, e toda a relação que tínhamos com o próprio João Lagos. Todos os anos jogava satélites lá, passava lá dois meses. Era muito mais agradável estar lá jogando, em qualquer fase da minha vida, do que noutro país. E quando é o número um do Mundo, tudo fica fantástico. Tem esse brilho e a fantasia que se torna realidade num momento lindo. Se tivesse de escrever um cenário... está perfeito a maneira como aconteceu”, pontuou
É “claro que não passaria de novo pelo susto de perder o primeiro jogo”, porque “a chance de dar certo é uma num milhão”, contudo, exceto essa pequena nuance, faria tudo igual.
“Portugal teve um elemento fundamental. Para mim, trouxe um ‘tempero’ muito especial de poder lá dentro me sentir em casa. E até tem um detalhe que é muito técnico: ouvi um depoimento do João Lagos em que ele diz que mandou pintar uma terceira de mão para o ‘court’ ficar um pouco mais lento ainda, para ajudar. Eu ganhei nessa ‘pintadinha’ extra e no carinho das pessoas”, brincou.
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