Um monstro de 23,77 metros de água, saído do Canhão da Nazaré, deslizando furiosamente em direção à praia e às rochas. No meio, Garrett McNamara, minúsculo quando visto do Forte de São Miguel Arcanjo, na Nazaré. Foi essa a medição oficial da onda gigante surfada pelo surfista havaiano a 01 de novembro de 2011, na Praia do Norte, que o colocou, na altura, como detentor do recorde do Mundo pelo Guiness Book.
E foi essa a visão de quem presenciou o momento que colocaria o nosso país nas bocas do Mundo pelos melhores motivos: as maiores ondas do Mundo estavam em Portugal.
De lá para cá, muita coisa mudou na Nazaré. E em Garrett. Mas sobretudo na pequena vila piscatória, que se tornou na Meca do surf de ondas gigantes muito graças ao destemido havaiano, nascido nos EUA.
Desde 2010 que Garrett McNamara se dedica a promover Portugal e a as ondas gigantes lá fora. Começou com o 'Zon North Canyon Show', um projeto de três anos, iniciado em 2010, protagonizado pelo surfista e desenvolvido pela Nazaré Qualifica com o objetivo de promover a Nazaré internacionalmente como destino turístico de referência para a prática dos desportos de ondas grandes.
O havaiano, que passa metade do ano naquela outrora pacata vila piscatória, tem vindo a trabalhar na série documental 'A Grande Onda da Nazaré', que retrata a sua odisseia, juntamente com colegas surfistas, para conquistar pela primeira vez uma onda de 30 metros. Depois do sucesso da primeira temporada, de seis episódios, a estreia da segunda temporada está marcada para breve, na plataforma de streaming HBO Max.
Na série é narrada a história transformadora da vila à beira-mar e a procura contínua pela maior onda do planeta por McNamara, a sua esposa Nicole, CJ Macias, Andrew 'Cotty' Cotton, Justine Dupont e vários outros surfistas de ondas grandes de todo o mundo que se dedicam a perseguir o seu sonho de surfar uma onda de 30 metros.
E o que esperar dos novos episódios de 'A Grande Onda da Nazaré'?
"Esta segunda temporada é um mergulho profundo nas nossas vidas, é muito íntimo com mais personagens. É mais intimista, é tudo real. Tudo o que vemos foi exatamente como aconteceu", conta-nos o havaiano de 55 anos, durante uma breve entrevista no Mercedes Lounge, junto ao rio, nas Docas de Alcântara, onde falámos da série mas também da Nazaré e da loucura controlada de enfrentar uma onda de 30 metros.
Os responsáveis por este projeto estão tão entusiasmados que já têm planos para mais temporadas.
"A terceira temporada já está a ser filmada. Eles querem 20 temporadas (risos). Basicamente é uma mistura do programa 'Pesca Radical' [n.d.r. Deadliest Catch no original, que passa na Discovery Channel] com 'Desafio Abaixo de Zero' [n.d.r. Ice Road Truckers, exibido no canal História] na água. E quantas temporadas há destes programas?", questiona, entre risos, McNamara.
Nazaré: o sucesso passa pela sustentabilidade
De vila piscatória, Nazaré rapidamente se tornou num dos locais mais procurados do mundo pelos surfistas de ondas gigantes. Ganhou vida 365 dias por ano. O país e a autarquia local investiram na divulgação da região além fronteiras, com ajuda de Garrett McNamara. Agora todos querem caçar um gigante de 30 metros, o 'Big Mama'.
"Agora as pessoas vêm por iniciativa própria, já não é preciso fazer nada. Vêm porque viram as ondas gigantes e depois querem ver as ondas gigantes e querem conhecer Portugal, e conhecem as pessoas, provam a comida e dizem 'uau!'. E contam tudo aos amigos e eles também vêm e temos mais gente a vir. O marketing já está feito", diz-nos Garrett.
Alcançado o sucesso na divulgação e promoção, será essencial olhar para o futuro, projetar o que aí vem e estar preparado para a mudança.
"Portugal tem de ser inteligente, reunir as melhores pessoas. É preciso estar-se preparado para o que vai acontecer em 10, 20 anos, é preciso ter um plano a longo prazo, não de dois a três anos, perceber o que está a acontecer e estar preparado para o que aí vem. É uma grande oportunidade para o país", recorda.
Essa preparação passa por criar infraestruturas para os visitantes, sem mexer com a essência da vila e manter tudo a funcionar de forma sustentável. Porque, diz-nos McNamara, é muito importante "ver as pessoas a serem iguais a si próprias, verdadeiras", ou seja, aquilo "que torna os portugueses especiais". Mas não só.
"É bom ver a linha costeira intacta, protegida. É preciso manter as pequenas aldeias como elas são, tradicionais, sem mexer muito. Não permitam que chegue gente com projetos de desenvolvimento. Devia haver mais regras sobre o quanto se pode construir. Ou mantemos a autenticidade ou vamos perder aquilo que torna os portugueses especiais", avisa.
E para "garantir que tudo continue autêntico", é preciso que "haja infraestruturas, que as estradas estejam boas".
"Na Nazaré falta estacionamento e balneários [nas praias]. Há muitas praias que têm balneários, como em Sintra, mas nas pequenas aldeias costeiras à volta de Lisboa é preciso infraestruturas para que os visitantes se sintam confortáveis [a seguir a umas horas a surfar]".
"Nazaré é como um filho e queremos sempre fazer mais por um filho", declara
Garrett McNamara, que prefere "ser lembrado como um 'eco warrior' [guerreiro ecológico] do que como surfista de ondas gigantes", lamenta "ver as coisas a acontecer, as decisões a serem tomadas" e "não poder participar na tomada de decisão".
"Gostaria de ver as decisões tomadas a irem numa boa direção, trabalhando na sustentabilidade, em ser-se livre de plásticos, ter postos de reabastecimento [de bebidas] nos restaurantes, não haver sacos de plástico nas lojas, usar energia solar, eólica e das marés", detalha.
Garrett McNamara: amor eterno a Nazaré a Portugal
A solução, conta, está em ter os melhores a trabalhar para potenciar o surf de ondas gigantes, tudo de forma sustentável.
"Adorava ver um economista que aparecesse… eu sou surfista, não sei de nada, mas gostaria de trazer alguém, especialista, da Suíça por exemplo ou de outro país onde estão a fazer o melhor, contratá-lo para fazer um relatório sobre como melhorar Nazaré e o país para depois ser um exemplo aqui, em Espanha, Marrocos, França… Já estão a fazê-lo nas ilhas Canárias, acho que uma das ilhas já é totalmente sustentável. Na Islândia são totalmente sustentáveis mas eles tem a energia geotérmica", recorda.
"Temos sempre vento, temos as correntes marítimas, temos muito sol....é ver o país a ir na direção da sustentabilidade e não na direção do capitalismo industrial", comenta o surfista
Em 2021, a Nazaré integrou a seleção das 100 Melhores Histórias de Sustentabilidade de Destino com a história 'Garantindo um futuro turístico para a Vila e Concelho da Nazaré'.
"A preservação das características culturais ligadas às origens piscatórias da povoação, a paisagem, os usos e costumes e a diversificação da oferta para aumentar a permanência dos turistas por mais tempo e ao longo de mais meses ao ano, assim como a preservação de espaços icónicos para a história e antiguidade da vila, nomeadamente o Museu (vivo) do Peixe Seco, a abertura do Forte de São Miguel Arcanjo ao público, a reabilitação da Igreja de São Gião ou a candidatura do culto de N. S. Nazaré à lista de Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO estão entre as justificações deste reconhecimento", detalha a autarquia, em comunicado.
O município da Nazaré está neste momento em processo de certificação como destino turístico sustentável.
De acordo com o 'World Travel & Tourism Council' que analisa a tendência atual e futura do turismo, 69% das pessoas procuram destinos que promovem opções sustentáveis, sendo os alojamentos locais um fator de escolha de 53% deste público.
Relação com a autarquia já não e o que era
Numa primeira fase, a partir de 2010, Garrett McNamara trabalhou com a autarquia da Nazaré para potenciar as qualidades da pequena vila piscatória, mas depois, tudo mudou. Questionado sobre o que falta fazer ou pode ser feito ainda melhor para que Portugal seja cada vez mais um destino procurado para amantes do surf e o que autarquia local tem feito para tal, Garrett confessou que a sua relação com os dirigentes atuais não é o melhor.
"O primeiro presidente da câmara sim [n.d.r Jorge Barroso], tudo o que eu quis, fizemos, ele só esteve no cargo por três anos [n.d.r. quando Garrett chegou]. O segundo presidente [n.d.r. Walter Chicharro] tentou fazer-me desaparecer. Ele não quer competir pela foto, quer ser ele a estar na foto. Eu já estou a dizer muito. Podes dizer o que quiseres, é verdade", dispara.
Com ou sem apoio, Garrett McNamara continuará a fazer o que mais gosta. Por Portugal, o seu segundo país. Pela Nazaré, a segunda casa.
"Toda a gente me estima, sinto que Portugal inteiro gosta de mim. Eu adoro Portugal e Portugal gosta de mim. Não consigo esperar que o meu próprio país goste de mim como Portugal gosta. Nunca imaginei que seria assim e estou muito grato; sinto que estou em dívida para com Portugal e quero fazer o que puder [para compensar]", declara, numa espécie de amor eterno.
"E acho que tudo acontece por uma razão, e há uma razão pela qual o Município tentou afastar-me e fez com que outras coisas acontecessem… Mas estou tão feliz e muito grato. Podia chorar ou ficar chateado, mas estou feliz, muito feliz pela forma como as coisas aconteceram", confessa ainda.
Um amor a Portugal que vai para lá do Surf
A relação de McNamara com Portugal foi amor à primeira vista.
"Não sonhava vir a Portugal. Para ser sincero, nem conhecia o país, nem sabia se pertencia a Espanha ou se ficava nalguma parte de Marrocos. Quando chegámos a Portugal, não tínhamos expectativas. Mas fui ao farol da Nazaré e vi as maiores ondas da minha vida", contou em abril de 2021, durante um evento online sobre sustentabilidade, promovida pela Mercedez-Benz, marca da qual é embaixador.
"Em 2010, se eu dissesse a alguém que as maiores ondas do mundo eram em Portugal, ninguém acreditava. E se dissesse que a Mercedes ia construir um ‘lounge' [espaço] ecológico no porto de abrigo da Nazaré, iam dizer que eu estava louco. Mas agora é tudo realidade", completou.
McNamara agora passa seis meses por ano em Portugal e outros seis no Havai. Por cá vai estando envolvido em outros projetos de cariz social mas também de promoção do país lá fora.
No final de janeiro de 2013, o jornal 'The Times' deu grande destaque à onda gigante que surfou na Nazaré (que se estima ter 30 metros), publicando na capa a fotografia tirada pelo fotógrafo português António Manuel Silva, mais conhecido por Tó Mané, que correu mundo e redes sociais.
Em 2013, dois anos após a homologação da maior onda surfada, foi condecorado com a Medalha Naval de Vasco da Gama. Uma medalha atribuída pela Marinha portuguesa que visa galardoar "atos meritórios ou serviços relevantes prestados no mar ou em atividades com elas relacionadas".
Em outubro de 2014 lançou uma série de filmes promocionais de Portugal e do surf. Ao longo de 21 dias, com o apoio do Turismo de Portugal, o surfista esteve no norte e centro do país, em Lisboa, Alentejo, Algarve, Madeira e Açores, dando origem à "McNamara Surf Trip".
Os vídeos produzidos em cada região pretendiam divulgar internacionalmente na internet e nas redes sociais "o que de melhor há em Portugal", mostrar as pessoas, a gastronomia e os melhores lugares para surfar.
A 26 de julho de 2016 deu uma aula especial de surf na praia de Carcavelos, em Cascais, a crianças institucionalizadas e a pessoas com mobilidade reduzida da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Domar uma onda de 30 metros? Não é loucura se for feito com amor… e preparação. Mas faltam regras
A 28 de outubro de 2013, Garrett McNamara recusou-se entrar na água na Praia do Norte para surfar por questões de segurança. Habituado a domar os gigantes que saem do 'canhão da Nazaré', o havaiano sentiu que não era o momento.
"Estava muito grande para mim. Não me senti seguro. […] Este lugar é mais poderoso do que em qualquer outra parte do mundo, é muito perigoso, mas também desafiante. Eu vejo qual será a melhor onda e espero pela segunda ou pela terceira, porque, se correr mal, assim não levo com as ondas na cabeça. O segredo é estar concentrado e só surfar se for para me divertir", contou, na altura, à agência Lusa.
Num desporto onde os praticantes desafiam as leis da natureza, a preparação, mental e física, é tudo. E tudo começa pela base, pela família. Depois, forma-se uma equipa onde todos remam para o mesmo lado.
"A equipa é tudo, como em tudo na vida. Precisas de pessoas com a mesma energia, visão, objetivos, sonhos e aí não há como falhar. Se alguém na tua equipa não está a trabalhar bem, torna tudo mais desafiante. Todos têm de saber qual é o objetivo e o propósito de cada um na equipa para que se possa trabalhar para os sonhos de cada um ao mesmo tempo. Vai desde o homem do jet-ski que me leva até a onda, ao salva-vidas, à pessoa que está com o walkie-talkie lá em cima [na falésia]. É um esforço de equipa", conta.
Enfrentar ondas de 20 metros ou mais existe muita preparação física, "depois é só ir e ter pensamento positivo".
A seguir a apanhar a onda gigante, o surfista tem de ser "técnico de avaliação e gestão de riscos", ter noção do que vai encontrar, "pensar em tudo o que pode correr mal, descobrir soluções e depois dirigir-se rumo ao desconhecido com calma. Tens de ser estratégico, metódico. Assim terás sucesso", garante McNamara, uma lenda mundial do surf.
Apesar do fascínio que é surfar uma onda de mais de 20 metros, o perigo de ferimentos ou mesmo morte é real.
A 28 de outubro de 2013, a brasileira Maya Gabeira, recordista mundial de ondas gigantes em 2018 e 2020, quase perdia a vida na Praia do Norte, quando tentava surfar uma onda gigante. A brasileira teve de receber tratamento hospitalar, depois de perder a consciência na água.
Em janeiro deste ano, o surfista brasileiro Márcio Freire, um dos pioneiros no surf de ondas gigantes no seu país, perdeu a vida após sofrer uma queda quando surfava na Praia do Norte, tornando-se na primeira vítima fatal do Canhão da Nazaré.
Toda a experiência acumulada de nada valeu a Márcio, então com 47 anos. E por não querer ver mais vítimas mortais na Nazaré que Garrett McNamara defende que devia haver regras para a prática da modalidade do surf de tow-in [n.d.r. surfista é rebocado para a onda por uma moto de água].
"Seria fantástico se existissem regras reais para termos a certeza que todos estão preparados. Neste momento, qualquer um pode entrar na água e estar sob a sua conta e risco", avisa.
Além das regras não escritas do surf, há algumas que são obrigatórias para quem entra na água.
"Tens de ter uma segunda pessoa na parte de trás da moto de água, virada ao contrário a vigiar a pessoa na corda que vem rebocada. Isto é uma regra que vem do wakeboarding e do esqui aquático. Desde que surf de tow-in se tornou num desporto e evoluiu, as regras não evoluíram. Não sei quem, mas alguém devia criar regras [sobre surfar ondas gigantes], talvez a autoridade marítima portuguesa. Depois da morte de Márcio, não quero ver mais ninguém morrer, precisamos de regras", defende.
Domar um dos gigantes de 30 metros, saído das profundezas do Canhão da Nazaré continuará a ser o sonho de Garrett McNamara. A 28 de janeiro de 2013, o havaiano nascido nos Estados Unidos da América acredita ter montado numa 'Big Mama' de 30 metros. Mas o feito não contou porque McNamara retirou-a da edição anual do Billabong XXL, uma competição que tem como objetivo eleger a maior onda do ano surfada.
"A principal razão é ser fortemente contra atletas que promovem o álcool. Dá a impressão errada às pessoas, especialmente aos jovens que os admiram. Não quereria que nenhum jovem de 15 anos pensasse que beber ajudá-lo-ia a viver os seus sonhos e a atingir os seus objetivos. Também decidimos retirar as minhas ondas da Nazaré da Billabong XXL porque eu não surfo pela Billabong e porque não vou para a água para conquistar um recorde mundial ou para ganhar um prémio monetário XXL", justificou McNamara.
Nesse ano de 2013, a Billabong XXL tinha o patrocínio da cerveja mexicana Pacífico.
O mesmo feito terá sido conseguido pelo português Hugo Vau, açoriano há muito radicado na Nazaré e que faz equipa com Garreth McNamara. Vau terá surfado uma onda de 35 metros em janeiro de 2018, de acordo com os surfistas que estavam no farol. Mas dificuldades de medição da onda na altura impediram que a mesma fosse homologada como a maior onda surfada de sempre.
Apesar de haver todo um dispositivo de segurança, em matéria de equipamentos de flutuação, e também nos resgates, com uma ou duas motas na água, o surfista tem que estar preparado para se desenrascar sozinho.
O atual recorde mundial homologado de maior onda surfada pertence ao alemão Sebastian Steudtner, que surfou uma onda com 26,21 metros, a 29 de outubro de 2020.
O primeiro surfista a bater um recorde na Nazaré foi Garrett McNamara, quando surfou uma onda homologada em 23,77 metros de altura, em 01 de novembro de 2011.
Em 2017, esse recorde foi batido pelo brasileiro Rodrigo Coxa, também na Praia do Norte, que aí surfou uma onda de 24,38 metros.
A estes somaram-se os recordes femininos alcançados pela brasileira Maya Gabeira, que em 2020 ultrapassou a sua própria marca, com uma onda de 22,40 metros.
Comentários