Sábado, 27 de outubro de 2023. Sete semanas depois de a França ter derrotado a Nova Zelândia no jogo de abertura, a África do Sul batia também os 'All Blacks' numa final emocionante, por 12-11, para se tornar apenas na segunda nação a defender com êxito o ceptro mundial e na primeira a chegar aos quatro títulos mundiais de campeã do mundo de râguebi.
Chegava ao fim um Campeonato do Mundo repleto de jogos emocionantes, de grandes momentos e no qual Portugal também brilhou, encantando os amantes da modalidade um pouco pelos quatro cantos do globo e conquistando o coração dos portugueses com atuações épicas e um feito verdadeiramente histórico.
O jogo decisivo, em Saint-Denis, espelhou na perfeição o que foi o resto da competição, com 80 mil adeptos no Stade de France e centenas de milhões a verem pela televisão a África do Sul a erguer novamente a Webb Ellis Cup. A todos os níveis, o torneio que decorreu em França foi um sucesso retumbante. E, desta vez, Portugal não ficou de fora. Num torneio histórico, os Lobos disputaram a sua segunda fase final e levaram o país à loucura com a sua primeira vitória de sempre, ficando nas bocas do mundo com o desempenho jogando de igual para igual frente a potências como o País de Gales ou a Austrália.
Para fazer o balanço de uma competição que ficará para sempre na memória de todos, o SAPO Desporto falou com um grande apaixonado pelo râguebi, o empresário Tim Vieira, com um antigo internacional português, António Aguilar, e com o jornalista que narrou para a RTP os jogos de Portugal, João Miguel Nunes. Os três deram-nos a sua perspetiva sobre o torneio e olharam também para o futuro da seleção nacional e do râguebi no nosso país.
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Um Mundial pautado pelo equilíbrio e com a emoção a durar até ao fim
"Se tivesse de encontrar uma palavra para resumir este mundial, seria 'equilíbrio'", diz-nos António Aguilar. Internacional português por 79 ocasiões, presente na anterior participação de Portugal em Campeonatos do Mundo e antigo selecionador nacional de 'sevens', variante na qual disputou também três Mundiais, Aguilar seguiu de perto o evento. Comentou alguns jogos para a Sport TV, foi assistir ao vivo ao encontro entre Portugal e Austrália e esteve mesmo junto das duas seleções na semana que antecedeu essa partida.
"O Mundial foi emocionante e equilibrado, Muito equilibrado mesmo. E a final foi um espelho disso. Decidida por um ponto até ao fim"
"A diferença entre as seleções do 'tier 1' e do 'tier 2' na fase de grupos foi bem menos acentuada do que havia sido em Mundiais anteriores, como Portugal o demonstrou", explica. "Depois, praticamente todos os jogos da fase a eliminar foram equilibradíssimos, decididos por uma curta diferença pontual. Mesmo os jogos que não foram tão bem jogados, foram equilibrados. O Nova Zelândia-Irlanda e o França-África do Sul foram os jogos mais emocionantes. Foram dois jogos incríveis e acho que o Mundial também valeu muito por esse fim de semana dos quartos-de-final", acrescenta.
Também o conhecido empresário sul-africano Tim Vieira, filho de portugueses e há muito radicado em Portugal, destaca o o equilíbrio e a subida de nível de seleções menos cotadas. Tim Vieira é um profundo conhecedor do râguebi e um grande entusiasta da modalidade. "Comecei a jogar râguebi na escola na África do Sul, com seis anos. Foi uma experiência espectacular e o râguebi, quando entra no sangue, não sai mais. Até pela forma como é jogado,como funciona, como é preciso a ajuda de todos...", explica.
Sobre o Mundial, disse-nos: "O principal deste torneio foi ver equipas que não se estava à espera jogarem um râguebi de tanta qualidade. E, mais do que todas as outras, Portugal. Depois, houve grandes jogos. O jogo da África do Sul com a França, nos 'quartos', foi um dos melhores que já vi na vida. Podia ter ido para qualquer lado. A França e a Irlanda tinham grandes equipas e podiam muito bem ter chegado à final".
A África do Sul revalidou o troféu. Um vencedor justo?
Quem chegou à final, acabando por a conquistar, contudo, foi então a África do Sul.
"O triunfo da África do Sul no Mundial…nem sempre quem joga mais bonito ganha, mas em Campeonatos do Mundo mais importante, mai importante do que jogar bonito é vencer. Acho que a África do Sul não foi a que jogou mais bonito, mas foi a mais consistente, a que jogou melhor. Apesar de algumas críticas, preparou-se bem, preparou bem os jogos e os resultados estão à vista, goste-se mais ou menos. Ganharam porque foram, com a estratégia que escolheram, os mais competentes, diz-nos João Miguel Nunes, jornalista da RTP que acompanha de perto o râguebi, modalidade de que há muito é fã, tendo narrado os jogos de Portugal na prova.
Foi uma final onde a emoção durou até ao fim, decidida por apenas um ponto de diferença, com a Nova Zelândia a falhar por milímetros uma conversão que lhe poderia ter valido o título. O triunfo da África do Sul, claro, deixou Tim Vieira em êxtase.
"Numa final é sempre 50/50. Foi por um bocadinho que ganhámos e, como muitas vezes acontece na vida, tudo se decidiu por 'inches'. Fiz questão de ver no mesmo sítio onde tinha visto a final de 2019, em Cascais, um pouco por superstição, e voltou a correr bem. Foi emoção até ao fim. Num país que está a passar por dificuldades, como a África do Sul, o râguebi une as pessoas, como no passado. E traz esperança. No fim tivemos a calma necessária. Quando olhamos para o jogo, o Du Toit fez 28 placagens, foi incrível! Eles foram autênticos super-homens. Claro que também foi preciso um bocadinho de sorte. Sofremos muito, mas estavam 60 milhões de pessoas a sentir o que os jogadores estavam a sentir em campo", lembra o empresário.
António Aguilar também diz que a África do Sul não foi, talvez, a equipa mais espetacular, mas foi a melhor, porque foi aquela que ninguém conseguiu derrotar.
"Mais do que a melhor equipa, provaram ser a equipa mais difícil de bater"
"Pessoalmente gosto mais da Nova Zelândia, por ter um râguebi mais ofensivo, mais total. A África do Sul é uma equipa que baseia muito o seu jogo na parte física e defensiva, porque são esses os seus pontos fortes e são os melhores do mundo nisso, como demonstraram. Fez três jogos épicos, nos quartos, meias e final, ganhando todos por um ponto, e isso mostra a força do grupo, do acreditar, que acho que foi muito a chave", sublinha.
"Mais do que a melhor equipa, provaram ser a equipa mais difícil de bater, como mostraram por exemplo contra a França, nos quartos de final", reforça.
Portugal encantou e conquistou o coração de todos os que amam o râguebi
Mas se a África do Sul conquistou o título mundial, Portugal conquistou o mundo do râguebi com a sua forma de jogar. Algo que os nossos três entrevistados fizeram questão de salientar, não escondendo a emoção que sentiram ao ver os Lobos crescerem a cada jogo.
João Miguel Nunes narrou os quatro jogos da seleção nacional e diz que não foi fácil encontrar o equilíbrio entre o lado emocional e a narração dos encontros.
"Narrar os jogos de Portugal foi uma sensação espetacular. Obviamente, não queria perder a objetividade jornalística, mas é inevitável colocar alguma emoção naquilo que é a prestação do nosso país e naquilo a que estava a assistir. Há sempre um lado muito emocional e, mesmo tentando ser factual ao máximo, não deixei de extravasar as emoções", admite.
"Achava que Portugal poderia ter hipóteses de ganhar um jogo, mas nunca pensei que fosse contra as Fiji. A performance foi espetacular e temos de ter noção que a maior parte dos nossos jogadores não tinham as condições que outros têm e há que olhar para o que Portugal fez à luz disso. Pode parecer que foi só uma vitória, mas é um feito notável. Quando competes com os melhores, a tendência é que melhores. E, a cada jogo que passou, Portugal foi-se tornando melhor, ao ponto de vencer o derradeiro jogo", lembra.
Tim Vieira e António Aguilar tiveram mesmo oportunidade de assistir ao vivo a um dos jogos de Portugal.
"Estava à espera que Portugal fizesse uma gracinha. Já tinha avisado os meus amigos da África do Sul que Portugal ia jogar melhor do que eles pensavam, mas ninguém me estava a levar a sério. Fui ver o jogo com o País de Gales e foi incrível. Portugal deixou logo a sua marca com a exibição que fez, mesmo perdendo. O ambiente foi espetacular. Nunca hei-de esquecer. Foi um orgulho ver os adeptos portugueses a ombrearem com os galeses. Ouvir o hino…não parámos de gritar e até acho que foi só nos pequenos pormenores que não fizemos logo aí uma surpresa. Foi uma das melhores coisas que já senti", relata-nos o empresário.
"E daí para a frente Portugal foi ficando mais forte a cada jogo. Contra a Geórgia foi superior e foi infeliz em não ganhar, mas senti que a vitória estava perto. O treinador conseguiu fazer algo de espetacular, misturando na perfeição os jogadores que estavam na França e em Portugal e daí conseguiu fazer uma verdadeira equipa. E o râguebi é muito mais equipa do que individualidades. O último ensaio, contra as Fiji, mostra isso mesmo.
Já António Aguilar foi ver o encontro de Portugal com a Austrália e destaca a crença existente dentro da comitiva lusa.
"Desde o principio disseram que iam la para ganhar jogos, competir e vencer e foi o que fizeram. A princípio até achei um discurso demasiado ambicioso, porque se não acontecesse o tombo era maior. Mas a verdade é que isso serviu de motivação. Antes do jogo com a Austrália visitei não só a comitiva portuguesa, mas também a australiana, porque um dos meus mentores como treinador foi o Eddie Jones, que estava a treinar a Austrália. Foi muito interessante. Do lado da Austrália havia muito interesse sobre os jogadores portugueses, fizeram-me muitas perguntas. E do lado de Portugal o que me impressionou foi mesmo a confiança, que iam jogar para ganhar", recorda.
"Só de estar agora a relembrar fico arrepiado, ainda para mais tendo eu feito parte da seleção no passado"
"Não ganharam esse jogo, mas ver a vitória de Portugal mesmo no fim contra Fiji foi emocionante. Só de estar agora a relembrar fico arrepiado, ainda para mais tendo eu feito parte da seleção no passado. Foi incrível. Vi em casa com a minha família e não estava a acreditar. Sou amigo de muitos dos jogadores da seleção, e dos treinadores, e imagino o sentimento que eles tiveram. Se eu fiquei emocionado, imagino eles. Foi um sentimento indescritível", conta.
Os momentos que ficam na memória
Pedimos também aos três que escolhessem os momentos que vão gravar para sempre na memória. E, claro, o ensaio que abriu caminho a esse triunfo sobre Fiji figurou no topo dessas escolhas.
"O ensaio contra as Fiji, claro, do Rodrigo Marta, que dá a vitória. A arrancada do Raffaele Storti e o ensaio do Rodrigo. Para mim foi o momento alto", responde sem hesitar António Aguilar.
Tim Vieira, ainda assim, junta outro momento, do jogo contra Gales, a que assistiu 'in loco'. "Para mim, o ensaio do do Nicolas Martins, quando recebeu a bola e correu por ali fora. Acho que foi dos meus maiores gritos de sempre. E depois, claro, quando Portugal ganhou às Fiji. Foi incrível. Vi na minha garagem, com os amigos…foi incrível. São histórias que ficam. A África do Sul ganhar, claro, é especial para mim, mas o que Portugal fez, uma pessoa não esquece", sublinha.
Também João Miguel Nunes acrescenta outro momento, curiosamente um que até nem correu bem. Mas justifica. "Há dois momentos que me ficam na memória. O ensaio do Marta, claro, quando parecia que não havia já grande hipóteses de ganharmos a Fiji, mas há outro momento que me fica na cabeça, porque foi quando senti que Portugal poderia fazer história: o pontapé do Sousa Guedes que sai ao lado contra a Geórgia e que nos podia ter valido logo aí uma vitória. Sinto que esse momento, o estar tão perto e falhar por pouco, foi o catapultar para o que conseguimos depois, contra a Fiji", explica.
E agora, que futuro para a modalidade e para os 'Lobos'?
Terminado o Mundial, e face ao grande desempenho de Portugal, com a seleção nacional a ganhar maior visibilidade e respeito lá fora e a modalidade a conquistar público cá dentro, a questão que se coloca é: E agora, como será o futuro?
"Tenho a esperança que este Mundial sirva para catapultar a modalidade. Em Portugal, sabemos que o futebol domina a 99% o desporto nacional e as outras modalidades sofrem com isso, não é só o râguebi. Naturalmente, vai haver mais interesse. Cabe à Federação, mas também aos clubes, tentar criar melhores condições para quem está a começar, porque os miúdos quando experimentam adoram os princípios do râguebi", aponta António Aguilar.
"Mas também é preciso dar condições a quem esta lá em cima. Olhando para os jogadores que representaram a seleção neste Mundial, metade joga em França, mas a outra metade joga cá e trabalha e estuda ao mesmo tempo e os seus sacrifícios não são devidamente compensados. Temos de dar melhores condições às bases, mas também à elite. E, depois, é preciso alargar o panorma, porque atualmente 80 a 90 por cento do râguebi nacional está concentrado em Lisboa. Temos de chegar ao resto do país", lembra.
"Há o desafio de as pessoas que gerem o râguebi conseguirem aproveitarem este balanço"
O jornalista João Miguel Nunes frisa que não se pode perder muito tempo, para não deixar passar o efeito mediático. "Há o desafio de as pessoas que gerem o râguebi conseguirem aproveitarem este balanço da melhor forma possível. E isso tem de ser feito no mais curto espaço de tempo possível. Há que criar condições para que quem quer vir para o râguebi venha e ao mesmo tempo aproveitar este mediatismo para profissionalizar ainda mais a modalidade: marcar mais presença nos media, tentar ações que promovam o jogo e criar uma estrutura capaz de receber todos os que queiram experimentar", refere.
João Miguel Nunes espera que as transmissões da RTP tenham também contribuído para isso. "Eu e Miguel Morgado, que fez os jogos comigo, tentámos sempre que as nossas transmissões fossem inclusivas e ajudassem a que quem não segue normalmente o râguebi conseguisse perceber o jogo. No fundo, fizemos um pouco de serviço público. Tivemos até dois árbitros de râguebi, o Paulo Duarte e a Maria Heitor, para explicar regras e faltas. E a capacidade que eles tiveram de as explicar de forma a que toda a gente percebesse foi inacreditável. Acho que valeu a pena", conclui.
Já Tim Vieira conta que vai avançar proximamente com um projeto que visa o intercâmbio de jovens jogadores entre Portugal e a África do Sul. "Estou com um projeto em que a partir do ano que vem visa trazer alguns jogadores da África doo Sul para jogarem alguns jogos cá, jovens sub-16 e sub-18. E fazer também um intercâmbio, levando jogadores portugueses jovens para irem lá terminara a sua formação. Este é o período perfeito para o fazer", garante.
Algo que poderá contribuir, a médio prazo, para o renovar da seleção. Até porque, como nos lembraram António Aguilar e João Miguel Nunes, muitos dos jogadores que estiveram no Mundial vão agora retirar-se. Para além disso, vem aí um novo selecionador.
"Este pode parecer um período fácil, mas acaba por ser um período desafiante. Porque se olharmos bem, toda a primeira linha vai desaparecer, vai retirar-se da seleção. Vai ser o desafio fundamental: como é que agora vamos refazer a equipa. Embora, claro, também haja o lado positivo, de os jogadores que estão agora a despontar terem ganho maturidade com esta presença no Mundial", indica o jornalista.
"Não será fácil, mas não podemos dar um passo atrás"
"O novo selecionador, pessoalmente não o conheço, mas sei que estará bem secundo pelo Luís Piçarra e pelo João Mirra, que têm muita qualidade. É difícil substituir o Patrice, porque era um nome muito forte do râguebi e quando ele falava as pessoas ouviam. Vários dos jogadores mais velhos deixam agora a seleção, mas temos muita qualidade entre os mais jovens. E, depois deste Mundial, certamente mais jogadores elegíveis para representar Portugal mostrarão interesse em jogar pelos Lobos, porque o nosso râguebi e a nossa seleção ganharam outra visibilidade. Não será fácil, mas não podemos dar um passo atrás", termina António Aguilar.
Um passo atrás que, depois do que foi alcançado no Mundial, em França, definitivamente ninguém quererá ver.
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