O britânico Lewis Hamilton garantiu, este domingo, definitivamente um lugar entre os imortais da Fórmula 1 ao chegar as 92 vitórias na prova rainha do automobilismo, algo nunca alcançado por outro piloto. O líder do campeonato deixa para trás o recorde de Michael Schumacher, considerado inatingível até há poucos anos.
Lewis Hamilton está agora em boas condições para igualar outro recorde de Michael Schumacher: piloto com mais títulos na Fórmula 1. Em 2019, o homem da Mercedes tinha ultrapassado o lendário argentino Juan Manuel Fangio (campeão em 1951, 1954, 1955, 1956 e 1957). O alemão Michael Schumacher foi campeão em 1994, 1995, 2000, 2001, 2002, 2003 e 2004. Se vencer esta época, Hamilton chegará aos sete títulos.
Lewis Hamilton: nascido para vencer
Nono campeão mundial de Fórmula 1 britânico - o 10.º foi Jenson Button, em 2009 -, Hamilton começou cedo a interessar-se pelos automóveis e, como muitos pilotos, iniciou-se nos karts, com apenas oito anos, em 1993.
Em 1995, apenas dois anos depois, já era campeão britânico e, por essa altura, cruzou-se com Ron Dennis, o patrão da McLaren, ao qual disse, aproveitando um pedido de autógrafo, que, "um dia", queria conduzir os seus carros.
Ao lado do ‘rabisco', Ron Dennis escreveu: "Telefona-me dentro de nove anos. Veremos algo então". Não seria preciso esperar tanto.
Tenho estado em contacto com as corridas de automóveis nos últimos 60 anos e ele é, com toda a certeza, a melhor lufada de ar fresco que tivemos
O talento de Hamilton continuou a revelar-se a toda a velocidade, tanto que, com 12 anos, uma casa de apostas ‘oferecia' já ‘odds' de 40/1 para a sua primeira vitória na Fórmula 1 antes dos 23 anos e de 150/1 para o seu primeiro título até aos 25 anos.
A conversa telefónica com Ron Dennis aconteceu em 1998, seis anos antes do ‘previsto', e foi o ‘patrão' da McLaren a ligar ao jovem piloto, que somava vitórias atrás de vitórias, para o contratar para o programa juvenil da McLaren-Mercedes.
Depois da aprendizagem, o jovem Hamilton progrediu para os monolugares da Fórmula Renault series em 2002, um campeonato que ganhou no seu segundo ano. Logo na época a seguir, em 2004, passou para a Formula 3 Euroseries e, de novo ao segundo ano, ergueu o troféu. Seguiu-se a GP2 Series, campeonato que ganhou logo na época de estreia, em 2006.
O que há muito parecia inevitável, o seu ingresso na Fórmula 1, aconteceu em 2007, para fazer equipa na McLaren com o então bicampeão em título, o espanhol Fernando Alonso. Na altura a McLaren estava a despedir-se do finlandês Kimi Raikkonen, de saída para a Ferrari, e do colombiano Juan Pablo Montoya, a caminho do NASCAR, e por isso precisava de dois pilotos.
A primeira época de Hamilton na F1, em 2007, foi de estrondo: terminou no pódio nas primeiras nove corridas da temporada, incluindo dois segundos lugares e duas vitórias: a primeira da carreira no GP do Canadá e a segunda no dos Estados Unidos. Por esta altura, Hamilton, então com 22 anos, liderava o campeonato e os adeptos britânicos já sonhavam com o 'impensável': o título de campeão no ano de estreia. E foi por muito pouco que não se sagrou campeão mundial na estreia.
Apesar do final de época marcado por acidentes em pista e 'choques' fora dela com Alonso [mas com mais quatro vitórias], Hamilton chegou à última corrida do ano, no Brasil, à frente da classificação, com quatro pontos de vantagem sobre o espanhol e sete sobre Raikkonen (Ferrari).
Factos marcantes da carreira de Lewis Hamilton na Fórmula 1
Partiu na liderança em Interlagos mas um problema mecânico fez com que perdesse o título por um ponto, para o finlandês Kimi Räikkönen.
Ainda assim, continua a ser hoje o piloto que mais pontos somou em época de estreia (109) e o que mais vitórias alcançou (quatro), recorde que partilha com o canadiano Jacques Villeneuve, sendo ainda o mais jovem líder do Mundial, com 22 anos e 126 dias.
"Tenho estado em contacto com as corridas de automóveis nos últimos 60 anos e ele é, com toda a certeza, a melhor lufada de ar fresco que tivemos. Não é só o facto de conseguir conduzir, é óbvio que consegue conduzir, mas ele é um verdadeiro piloto de corridas, consegue ver um espaço e atira-se a ele", descreveu então Sir Stirling Moss, um dos mais emblemáticos pilotos britânicos, que foi quatro vezes vice-campeão do mundo e nunca chegou ao título.
No ano seguinte, em 2008, já sem Alonso na McLaren, Hamilton também chegou à última corrida, no Brasil, à beira do primeiro título. Com uma vantagem de sete pontos, o britânico apenas precisava de ficar em quinto para erguer o troféu. Na última volta de uma prova feita à chuva, estava num incrível sexto lugar, mas uma ultrapassagem de última hora, na derradeira curva em Intervalos, a Timo Glock deu-lhe o primeiro título por apenas um ponto. Por um ponto se perde e por um se ganha.
Quando eu tinha seis ou sete anos, o meu pai disse-me ‘nunca desistas' e isso transformou-se numa espécie de lema de família
Quando todos pensavam que Hamilton iria iniciar um ciclo de vitórias, o terceiro ano na McLaren revelou-se um pesadelo. O carro tardou em ser competitivo e Hamilton fechou o ano em quinto, somente com duas vitórias e dois pódios. Em pleno reinado de Sebastien Vettel (Red Bull) – campeão de 2010 a 2013 - a McLaren não parecia ter condições de voltar a dar a Hamilton um carro para lutar pelo título. Em setembro de 2012, o britânico anunciou que iria correr pela Mercedes a partir do ano seguinte.
Hamilton vs Rosberg: uma amizade destruída em pista
Pela marca alemã, Hamilton conseguiu cinco dos seus seis títulos e prepara-se para ganhar o sétimo. Só não venceu em 2016, quando o título ficou nas mãos do seu colega Nico Rosberg, amigo de longa data, desde os tempos dos karts, mas cuja amizade foi destruída pela disputa de ambos em pista.
Em 2014, Hamilton abandonou no GP da Bélgica depois de sofrer um toque de Rosberg que lhe furou um pneu. Voltaram a chocar-se no GP da Áustria em 2016, com Hamilton a colocar Rosberg fora de pista após um toque. No mesmo ano, o Grande Prémio de Espanha, os danos foram maiores: a lutar pelo primeiro lugar, os dois chocaram-se e tiveram de abandonar, deixando a Mercedes sem qualquer ponto. Toto Wolf, chefe de equipa, mostrou-se muito desagradado com a falta de profissionalismo dos seus pilotos.
Na derradeira corrida de 2016, em Abu Dhabi, tudo ficaria mais 'azedo' na relação entre Rosberg e Hamilton. O inglês precisava de vencer e que o alemão terminasse em quarto. Então Hamilton utilizou uma tática ousada, onde tentou que Sebastian Vettel, da Ferrari, e Max Verstappen e Daniel Ricciardo, ambos da Red Bull Racing, ultrapassagem Rosberg.
Para tal, liderou a prova mas a um ritmo muito lento perto do final, permitindo a aproximação dos outros pilotos. Nas 'boxes' da Mercedes havia muita apreensão já que a equipa podia perder a corrida e nem sequer ter um dos pilotos no pódio.
Toto Wolf pediu a Hamilton que aumentasse o ritmo da corrida, mas o inglês ignorou as mensagens, aguentando Nico Rosberg até ao final. Vettel ainda chegou ao terceiro posto e ameaçou Rosberg mas não conseguiu ultrapassar o seu conterrâneo. Verstappen, esse não tinha ritmo para acompanhar os Mercedes e o Ferrari de Vettel. Rosberg seria segundo, suficiente para sagrar-se campeão pela primeira vez.
Primeiro (e único) negro na Fórmula 1. Uma crença moldada pelo racismo e pelo bullying
Lewis Carl Davidson Hamilton nasceu na cidade inglesa de Stevenage, a 50 quilómeros de Londres, 07 de janeiro de 1985, teve como grande inspiração o desejo de nunca mais voltar ao lugar da infância.
Lewis Hamilton chegou onde chegou graças ao seu pai Anthony, um homem que chegou à Londres vindo das Caraíbas nos anos 50. Casou-se com Carmen, a mãe de Lewis mas, dois anos, estavam separados. Hamilton passou a viver com a mãe duas meia-irmãs mais velhas num bairro em Stevenage. O pai nunca se ausentou.
Éramos a família negra mal-amanhada: tínhamos o equipamento de porcaria, o kart de porcaria e a caravana de porcaria
A paixão pelas corridas começou nos carros telecomandados onde viria a ser vice-campeão da Associação Britânica de Radiomodelismo. Pelo Natal, ganhou um kart de presente e aí começou a sua trajetória. O seu talento era inquestionável e o pai fez de tudo para que o filho não desistisse. No meio de tantas dificuldades, Anthony chegou a ter três trabalhos para poder ter condições para ajudar o filho na sua paixão. Aos fins de semana, ia como o pequeno Lewis às corridas pelos circuitos no Reino Unido. Eram tempos difíceis.
"Éramos a família negra mal-amanhada: tínhamos o equipamento de porcaria, o kart de porcaria e a caravana de porcaria", recordou Hamilton, numa entrevista à revista 'Time'.
Foi também nessa altura que Hamilton teve de lidar com o racismo, ainda em idade precoce. Ter um negro a vencer provas de automobilismo era algo nunca visto. "Não és suficientemente bom, devias desistir", era uma de outras 'bocas' que tinha de ouvir dos pais dos outros pilotos.
Além do racismo, o pequeno Hamilton teve de lidar com o bullying na escola. Aos cinco anos, pediu ao pai se podia ter aulas de karaté para aprender a defender-se. Chegou a cinturão negro.
O pai, que sempre o acompanhou para todo o lado, foi seu manager até 2010, quando Hamilton prescindiu de Anthony. Uma decisão difícil, que até hoje o piloto está a assimilar. A relação entre ambos nunca mais foi a mesma mas Hamilton tem tentado que tudo volte a ser como dantes com o pai.
O homem das causas sociais: ser negro ainda é um problema
O único piloto negro na Fórmula tem lutado contra racismo dentro do desporto mas também contra a discriminação, repressão policial e desigualdade social. A sua posição sobre estes temas ganhou maior preponderância com o movimento 'Black Lives Matter' depois da morte do norte-americano George Floyd, em maio de 2020, por parte de polícias dos EUA. Hamilton levou o tema para a Fórmula 1, ajudou a criar um movimento de apoio às minorias e ao 'Black Lives Matter', embora nem todos os pilotos e ex-pilotos concordem com as suas ideias.
Não és suficientemente bom, devias desistir
Os mais velhos têm mostrado resistência, como foram os casos de Jackie Stewart, de 81 anos (negou a existência de racismo na Fórmula 1), e Mario Andretti, de 80 (disse que demonstrar repúdio à falta de diversidade na F1 "é criar um problema que não existe") mas Hamilton não se importa.
"Isso é muito decepcionante, mas infelizmente é uma realidade que algumas das gerações mais velhas, que ainda têm voz, não conseguem sair do seu próprio mundo para reconhecer que há um problema. Nunca é muito tarde para aprender e eu espero que este homem [Andretti], por quem eu sempre tive respeito, possa tirar um tempo para educar a si mesmo", escreveu Hamilton na sua conta no Instagram.
Esta época, antes e depois do GP da Toscana, em Mugello, Itália, Hamilton usou uma t-shirt com a mensagem: "Prendam os polícias que mataram Breonna Taylor", em apoio a uma enfermeira afro-americana morta em casa numa rusga da polícia.
As causas que defende vão para lá do racismo, discriminação, repressão policial e desigualdade social. Lewis Hamilton tornou-se vegan e tem lutado por um planeta melhor. "Como humanos, aquilo que estamos a fazer ao planeta... a poluição que a indústria da pecuária produz é incrível. Não quero contribuir para isso, quero viver um vida mais saudável", escreveu nas suas redes sociais.
É dono de uma cadeia de restaurantes de hamburgers vegetarianos e tem tentado reduzir o impacto da Fórmula 1 sobre o meio-ambiente em conversas com outros pilotos e com os responsáveis da prova.
Hamilton, o 'pop star'
Hamilton é dos pilotos com mais carisma no ‘paddock' e com maior ligação à ‘sétima arte'. Se em 2018 foi felicitado pelo ator Will Smith quando conquistou o título no Grande Prémio do México, em 2019 teve a companhia de Matthew McConaughey.
Esse é o mundo de Hamilton, considerado uma verdadeira estrela dentro do Grande Circo.
Além dos dotes ao volante, tem mantido uma atividade permanente nas páginas do entretenimento, muito por causa dos relacionamentos mais ou menos conhecidos, em que são exemplos as cantoras Nicole Scherzinger e Nicky Minaj.
Nas horas livres, que são cada vez menos devido aos compromissos publicitários, gosta de se dedicar à música, sob o pseudónimo XNDA.
Como humanos, aquilo que estamos a fazer ao planeta... a poluição que a indústria da pecuária produz é incrível. Não quero contribuir para isso, quero viver um vida mais saudável
"A minha ética de trabalho é a mesma das corridas. Mas aqui consigo ser eu próprio", confessava, em 2015. Em 2019, fez a estreia no álbum de Christina Aguilera, "Liberation", com uma participação na música "Pipe".
Hamilton é, também, o piloto que mais dinheiro ganha, mesmo quando não é campeão. Nesta altura, a Mercedes está a negociar já a renovação do contrato do seu principal piloto, que termina no final de 2020.
E, aos 35 anos, o estatuto de melhor piloto de sempre ainda está ao alcance. Se se sagrar campeão este ano e continuar na Fórmula 1 a vencer na Mercedes, muito dificilmente não lhe será atribuído este título de melhor de sempre. Os triunfos falam por si.
"Quando eu tinha seis ou sete anos, o meu pai disse-me ‘nunca desistas' e isso transformou-se numa espécie de lema de família", revelou Hamilton já no final do Grande Prémio das Américas em 2019, no qual o segundo lugar lhe garantiu o sexto título mundial (2008, 2014, 2015, 2017, 2018 e 2019), a duas provas do fim do campeonato.
Com seis títulos conquistados aos 35 anos, Hamilton já só pensa no próximo.
"Enquanto atleta, sinto-me jovem. Estou pronto para a próxima corrida", avisou.
*Com Lusa
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