Há muitas formas de encarar as pedras com que nos deparamos no nosso caminho. Se alguns atiram a toalha ao chão, há quem faça das dificuldades a sua motivação maior.
Filipe Marques nasceu há 23 anos na Amora, Seixal, e desde cedo teve que se debater com um problema no pé esquerdo que lhe provoca perda de força muscular e lhe limita a amplitude do tornozelo. Mas nem esse problema o fez desviar do sonho de querer fazer vida no desporto.
Faz agora dois meses que em Valência, Espanha, arrecadou a sua primeira medalha (o bronze) em provas de paratriatlo, alcançando assim o tão almejado lugar no pódio. O primeiro grande resultado internacional que há muito o atleta perseguia. Um prémio merecido que chegou apenas alguns meses depois de, com grande desilusão, ter ficado às portas da qualificação para os Jogos Paralímpicos em Tóquio na categoria PTS5 para atletas com deficiências leves.
É no centro desportivo do Jamor, durante uma pausa da azáfama que implicam as deslocações diárias entre Fernão Ferro (Sesimbra) e Oeiras, que conhecemos o atleta de 23 anos. Terminada a temporada, é tempo para retemperar forças e ganhar fôlego antes do regresso à maratona diária de treinos (duas a três e meia por dia) e de aulas na Faculdade de Motrocidade Humana onde estuda Ciências do Desporto, que são repartidos entre as duas margens do Tejo. É tempo de balanços, depois de um final de época em cheio para o atleta do Sporting.
"Era algo que eu procurava há muito tempo. Em outras ocasiões não consegui, o que não me deixou satisfeito, e este ano apesar de não ter conseguido apurar-me para os jogos foi o meu melhor ano", reconhece.
E nem a desilusão olímpica e a escassez de provas durante o período de confinamento impediram que o triatleta pudesse colher já este ano os frutos do trabalho árduo.
"Foi algo fantástico, sabia que o nível num Campeonato da Europa era muito elevado. Pensei que pudesse chegar a um quinto lugar, mas a medalha não pensei que seria possível", confessa. Entre setembro e novembro foi terceiro no Campeonato da Europa em Valência, obteve o primeiro triunfo internacional com a vitória numa prova da Taça do Mundo em Alhambra e foi ainda quinto no Campeonato do Mundo Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos.
"O desporto foi algo que sempre imaginei fazer"
O desporto para Filipe Marques é algo tão natural como o ar que respira. Iniciou-se no futebol, mas foi nas piscinas que deu nas vistas, acabando por ser encaminhado para o triatlo por um professor que o encorajou a experimentar.
"O desporto foi algo que sempre imaginei fazer. O meu irmão jogava nos juniores do Seixal e eu ia ver os jogos dele. Depois não correu assim tão bem, comecei a achar que o futebol não era para mim. Mais tarde ainda joguei futsal e comecei também a praticar natação, para aprender as técnicas, mas sem ser em competição. E foi aí que aquele que viria a ser o meu primeiro treinador me observou e falou com o meu professor na altura para eu ir para o triatlo", relata.
"Eu só conhecia o triatlo por causa da Vanessa Fernandes, não fui atrás do triatlo, foi o triatlo que foi ter comigo"
Aos 11 anos, em 2009, o triatlo não era mais do que uma memória de um dia de verão, um vislumbre da medalha de prata conquistada por Vanessa Fernandes, um ano antes, em 2008, nos Jogos Olímpicos de Pequim. "Não sabia o que era o triatlo, eu só conhecia triatlo por causa da Vanessa Fernandes. Se não fosse pelo meu treinador, nunca me imaginaria a praticar. Não fui atrás do triatlo, foi o triatlo que foi ter comigo", declara.
Filipe Marques compete na classe PTS5 de paratriatlo para atletas com deficiências leves
Tomou-lhe o gosto e iniciou a competição em representação da Associação Naval Amorense, com um duatlo em Almada de que nem se lembra do resultado. As limitações, essas, causadas pela falta de mobilidade na tibiotársica prejudicavam-no “muito” na corrida e na bicicleta, mas não tanto na natação em relação aos outros atletas (sem limitações). Com o decurso dos anos e com o problema a agravar-se, a possibilidade de deixar o desporto chegou a estar em cima da mesa, até que a Federação acabou por intervir, abrindo-lhes as portas do paratriatlo.
"Eu sempre competi com atletas sem limitações porque nunca achei que houvesse essa possibilidade de ir para o paratrialo. Estive durante cerca de seis, sete anos a competir normalmente. Quando entrei para a faculdade pensei mesmo em parar…até que um dia a Federação veio ter comigo e propôs-me que fizesse parte do projeto do paratriatlo e foi aí que decidi voltar", referiu.
Foi aos 20 anos, em 2018, que realizou a primeira prova internacional, onde acabou por alcançar, logo na estreia, o sétimo lugar no Campeonato da Europa. "Foi na Estónia e fiquei muito contente e a partir daí foi sempre a subir. Foi aí que percebi também a qualidade dos atletas que competem lá fora, o nível já era muito alto e cada vez é maior. Na altura competi contra o atual campeão paralímpico, Martin Schulz", recorda.
Os bons resultados e o sétimo lugar nesse primeiro Campeonato da Europa é que lhe abriram as portas do projeto paralímpico, fator decisivo para que Filipe ‘ganhasse asas’ através de uma bolsa que lhe permitiu financiar os estudos, assim como a preparação e participação em grandes eventos internacionais.
"Inicialmente comecei por entrar no projeto esperanças por causa desse resultado no Campeonato da Europa. Ficaram todos surpreendidos com o resultado, porque ninguém me conhecia", lembra.
A mudança para o Sporting
Foi no final de 2019 que o triatleta decidiu deixar a Associação Naval Amorense para assim abraçar o desafio no Sporting, um clube com outras capacidades e que lhe permitiu almejar outros feitos. Para já, o balanço não podia ser mais positivo. "A situação do meu clube anterior complicou-se, tive oportunidade de ingressar no Sporting e agarrei a oportunidade. Estou muito contente com essa mudança e tenho evoluído muito. O clube tem outros meios, outras capacidades. Sabia que com a mudança teria todas as condições para evoluir e manter-me motivado e foi o que aconteceu", disse.
A adaptação à nova estrutura não podia ter sido mais fácil. "O Filipe já tinha trabalhado com atletas que já se tinham mudado para o Sporting e estava satisfeito com o trabalho que estava a ser desenvolvido. Antes já tinha sido detetado um enorme potencial no Felipe e foi simples integrá-lo no nosso grupo de trabalho. Ele é um atleta simples, bem disposto e com vontade de trabalhar. As coisas foram fáceis na integração”, conta-nos André Campos, coordenador e treinador da equipa de triatlo do Sporting.
Filipe Marques também não tem dúvidas de que tomou a decisão mais acertada: "Desde que sou treinado pelo André que a minha capacidade disparou nas três modalidades (natação, ciclismo e corrida).
Limitado pelo problema de que padece, o atleta consegue adotar em traços gerais a matriz de trabalho dos outros atletas sem limitações. Contudo, "há algumas situações especiais", adverte André Campos. "Acaba por ser uma perna que trabalha de forma diferente da outra e aí temos que ter uma adaptação especial ao reforço e equilíbrio dessa mesma perna. Há algumas especificidades, mas de uma maneira geral não há grandes diferenças naquilo que é o trabalho de todo o grupo”, acrescenta.
O coordenador do triatlo dos leões destrinçou ainda as principais diferenças entre os treinos do Filipe e dos restantes atletas no clube: "Na classe dele, em paratriatlo, não existem pelotões" na vertente de bicicleta "há uma distância de 10 metros que tem que ser cumprida entre os atletas". Isto tudo devido a questões de segurança. "Na classe do Filipe há atletas que não têm uma mão ou antebraço. Se pusermos estes atletas a andar em grupo aumentamos a insegurança", explica.
O sonho adiado dos Jogos Paralímpicos
Apesar dos grandes resultados obtidos em 2021, há um sonho em particular que ficou por concretizar: A presença nos Jogos Paralímpicos, objetivo que acabou por não ser alcançado por uma 'unha negra', numa prova em que só a elite marca presença - A final em Tóquio contou apenas com 10 atletas em prova. "Quando a qualificação começou, em 2018, ainda estava muito no início do paratriatlo e ainda não tinha conseguido grandes resultados. Com a mudança para o Sporting comecei a pensar que poderia atingir grandes resultados mas com a pandemia as provas de qualificação foram canceladas."
"Em 2021 tive quatro provas de qualificação que correram bem, mas esse esforço acabou por ser tardio e não fui a tempo de conseguir o apuramento”, recorda Filipe Marques, que não escondeu algum desalento por ter ficado de fora. Foi algo que me deixou desanimado, mas em 2024 [em Paris], irei estar mais bem preparado e vou conseguir”, afiança.
A desilusão, depois da não qualificação para os Jogos Paralímpicos, não desmotivou o amorense que acabou mesmo por alcançar os melhores resultados da carreira até ao momento neste final de temporada. "O Filipe criou essa ilusão e depois quando tivemos a notícia que ele não iria ficou um pouco abalado e pensei que isso pudesse ter alguma influência, mas felizmente isso não aconteceu. Ele recuperou rápido, concentrou-se muito bem nesse período de treinos e as coisas correram muito bem. Atingiu uma medalha [no Campeonato da Europa] e foi o nosso objetivo. Conseguiu perceber que tinha espaço para estar nos Jogos e apenas não o conseguiu porque estava muito abaixo no ranking", reitera André Campos, relembrando que no Campeonato da Europa Filipe Marques só foi derrotado pelo campeão e vice-campeão olímpico, atrás do alemão Martin Schulz e do britânico George Peasgood.
Com 23 anos de idade, Filipe Marques ainda conta com uma enorme margem de progressão e é na vertente do ciclismo que terá de apostar forte para que no futuro possa discutir os pódios nas grandes competições internacionais com mais regularidade. "Ele tem uma natação muito forte para aqueles que são os principais concorrentes dele, Na bicicleta tem ainda bastante margem de progressão e na corrida, que é onde se sente mais o problema dele, é onde perde um bocadinho mais para os outros atletas", analisa André Campos.
Difícil de superar é mesmo a falta de concorrência a nível interno até que porque nas provas de paratriatlo a nível nacional Filipe Marques entra com “a certeza que vai ganhar”.
"Em Portugal quando ele compete, compete com outros atletas sem limitações, ao ponto de lutar pelo pódio. A falta de competição interna prejudica o rendimento do atleta a nível internacional. Foi sempre isso com que me debati com ele e com a Federação porque nós temos que fazer regularmente provas internacionais porque em Portugal não há competição, há mais só dois ou três atletas na classe dele", esclarece.
Mais motivado do que nunca, o céu é o limite para o triatleta: "Pensava que com o meu problema não iria conseguir evoluir na corrida e na natação, mas enganei-me e não são as minhas limitações que me vão fazer parar", assegura o atleta dos leões.
"Pensava que com o meu problema não iria conseguir evoluir na corrida e na natação, mas enganei-me e não são as minhas limitações que me vão fazer parar."
Do lado de fora das pistas e da água, a família tem sido o grande baluarte para o equilíbrio do jovem do concelho de Almada. "A minha família apoia-me muito. Estão sempre atentos aos meus resultados, aos meus treinos. Nas provas lá fora ainda não me conseguiram acompanhar, mas aqui em Portugal já conseguiram estar numa prova que realizei no Funchal e aqui em Alhambra quando ganhei a Taça do Mundo (medalha de bronze)", assinala.
O sonho comanda a vida
Os dias intermináveis entre a faculdade e o triatlo não o fazem perder o gosto por aquilo que faz, mesmo quando faz contas de cabeça às ocasiões que já perdeu por culpa dos treinos. " É verdade que não temos muito tempo, mas conseguimos arranjar sempre um momento ou outro para estar com os amigos. Claro que por vezes falhamos algumas ocasiões importantes, mas faz parte. Os dias são muito cansativos, mas eu gosto muito disto e não me vejo a parar", disse.
Na cabeça estão já os Jogos de 2024, e como o sonho comanda a vida, também na possibilidade de conquistar uma medalha paralímpica. "Nos próximos jogos, em 2024, vejo-me a lutar por uma medalha. Não quer dizer que consiga, mas acho que com a capacidade que tenho demonstrado, penso que terei capacidades para lutar por uma medalha", atira.
André Campos não tem dúvidas de que o triatleta ainda tem um grande futuro pela frente: "Ele é bastante jovem, ainda terá uma década pela frente, ainda poderá fazer dois, três ciclos olímpicos. Tem uma margem de progressão muito grande. Iremos apontar baterias nos próximos anos aos Campeonatos da Europa e do Mundo e estaremos também focados nos próximos jogos em Paris."
Com a juventude a correr-lhe nas veias, Filipe Marques não vislumbra ainda o fim da carreira. Para já vai investindo na sua formação no curso de Ciências do Desporto. Ainda assim tem uma certeza: "A minha vida sempre foi o desporto, é algo que quero estar sempre ligado, mesmo quando deixar de competir, é a minha vocação", termina.
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