“O desporto tem de ser promotor de coisas boas”, é uma ideia que João Paulo Félix partilha e coloca em prática a cada prova ou desafio que realiza, sempre a favor de uma causa.
Este sociólogo de 50 anos, que faz supervisão técnica a casas de acolhimento residencial, já correu e pedalou mais de sete mil quilómetros a favor de diferentes causas e instituições, sensibilizando para as mesmas.
Natural de Foros de Salvaterra, no distrito de Santarém, João Paulo Félix tornou-se, em 2017, no primeiro atleta a correr a Estrada Nacional 2, a maior da Europa e uma das maiores do mundo, ao longo de 14 etapas consecutivas, entre 1 e 15 de agosto desse ano, correndo pela Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla, à qual doou a sua camisola que foi depois leiloada.
A EN2 é uma presença recorrente nos desafios de João Paulo Félix, que voltou a percorrer no ano passado quando deu a Volta a Portugal a Correr, contra a violência doméstica e em homenagem aos profissionais de saúde que combateram a COVID-19, completando mais de mil e trezentos quilómetros ao longo de 25 dias consecutivos entre julho e agosto, num desafio que voltará a repetir este ano.
Não são desafios simples, mas o sorriso contagiante deste atleta durante as longas tiradas esconde um longo processo de preparação, que se confunde com o seu dia-a-dia.
Em conversa com o SAPO Desporto, João Paulo Félix revela-nos que a corrida e o desporto já lhe correm no sangue há muito tempo, começando com as corridas para a cantina da escola quando era mais novo, até aos longos percursos dos dias de hoje.
“Sempre gostei muito de correr e a corrida esteve sempre na minha vida. Seja qual for a distância, a prova, o ambiente. Seja alcatrão, seja trail, eu gosto de correr”, explica-nos.
Das corridas ditas normais às mais longas foi um processo contínuo, que se inseriu na vida deste aventureiro, que acabou por se apaixonar pela longa distância “porque tem muito de desafiante”.
“Há ali um desafio constante, são muitas horas a correr, muitos obstáculos, tenho ali um desafio comigo mesmo e é preciso haver um equilíbrio muito forte entre a mente e o corpo para ultrapassar estas longas distâncias”, diz.
A preparação para estes desafios solidários é uma constante na vida de João Paulo Félix, que treina seis dias por semana, integrando corrida e bicicleta na sua preparação. Também a vertente mental desempenha um fator importante nestas aventuras, algo que, graças ao seu trabalho e à sua abordagem positiva, é trabalhado diariamente.
"Se eu conseguir (...) passar mensagens que possam ajudar outras pessoas é extraordinário e sinto que enquanto atleta estou a dar mais sentido ao meu trabalho"
“Tenho uma abordagem positiva aos problemas e também da vida, sou profissional na área dos maus tratos a crianças e lido com pessoas que esperam o melhor de mim, por isso tenho de estar ao nível, do ponto de vista emocional, para ser capaz de orientar pessoas. No fundo, o que faço é levar muito esta aprendizagem para a minha vida de desporto-aventura e do desporto-aventura também trago muitas aprendizagens para a minha área profissional”.
Mas afinal de contas, o que levou este ribatejano a dar a cara por causas nestes grandes desafios que já realiza desde 2016? A decisão não foi repentina e levou João Paulo Félix a pensar muito nela.
“Tive uma luta comigo próprio até perceber. Acho que o que me levou a correr por causas é que o desporto, na minha perspetiva, tem de ser produtor e veículo de coisas boas. Feitas as contas é isto: se eu conseguir, através dos meus desafios, passar mensagens que possam ajudar outras pessoas é extraordinário e sinto que enquanto atleta estou a dar mais sentido ao meu trabalho”.
Estas causas, que representa ao longo de todo o ano nas provas em que realiza, acabam por ser uma motivação extra nos seus desafios, pela responsabilidade de não querer desiludir as pessoas e as causas que representa: “Se eu falhar, estou a defraudar várias pessoas e estou também a defraudar a possibilidade daquelas causas terem mais visibilidade”.
Apesar da responsabilidade, o ribatejano já correu e pedalou mais de sete mil quilómetros por várias causas como o autismo (2018) ou a violência doméstica (2020) e também por instituições, como a Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (2016/2017), a Associação de Doentes com Lúpus (2019) ou alguns quartéis de bombeiros.
2021 dedicado aos direitos das crianças
A escolha das causas pelas quais vai dar o seu suor e esforço acontece no final de cada ano, com o atleta a ter um período de reflexão onde analisa o ano que passou e prepara o seguinte, analisando qual a causa que lhe faz sentido para o novo ano.
A escolha passa mais pelo próprio do que por abordagens de instituições ou associações interessadas, algo que João Paulo Félix gostava que fosse invertido.
“As instituições estão mais habituadas a que as pessoas vão ter com elas e desformatar isto é muito complexo. Elas próprias têm de sair desta caixinha, creio que isso era bom para esta causa em concreto”.
Depois de em 2020 ter corrido mais de dois mil quilómetros contra a violência doméstica, 2021 será dedicado aos direitos das crianças, uma causa que diz muito a este atleta e que há muito queria representar.
"A luta pelas causas tem de ser diária"
“Os direitos das crianças surgem aqui como um lema, uma causa que creio toda a sociedade portuguesa está ligada, porque as crianças são o futuro, as nossas crianças têm de ser estimadas, têm de ter condições, têm de ser amadas”.
“Nós vivemos numa época complexa, não só pelas questões da COVID-19, mas é preciso promover constantemente os direitos das nossas crianças, os maus tratos têm números brutais no nosso país, interessa batalhar e não descansar, não partir do pressuposto que as coisas têm melhoras, não, a luta tem de ser diária. A luta pelas causas tem de ser diária”.
Uma luta que João Paulo Félix considera estar ao alcance de qualquer cidadão. “Creio que cada um de nós, não fazendo nada megalómano, pode fazer algo pelo outros, isso é importante”, refere.
João é um dos poucos a dar a cara por causas, “porque as pessoas não se comprometem com coisas”. Contudo, é um papel em que gosta de se ver.
“Eu tenho a coragem de dar a cara pelas causas e isso requer força, requer determinação”.
Deixar a mensagem por onde passa
Por onde passa, João Paulo Félix leva a causa sempre consigo, mas nem só de sensibilizar as pessoas para a causa que representa se fazem os desafios deste atleta: não é incomum dirigirem-se a si para pedirem conselhos ou desabafar sobre as problemáticas.
“As pessoas vêm ter comigo com diferentes abordagens. Às vezes serve para desabafarem sobre a problemática, identificam-se com o que estou a fazer. Pedem conselhos – ‘como é que faço isto’, ‘com quem posso ir ter’ – e o meu papel aí, como tenho experiência na área é encaminhar, enquanto cidadão, as pessoas para os respetivos serviços. No Facebook recebo mensagens de pessoas nas mais variadas situações. Para mim, é extraordinário, significa que o trabalho tem eco, tem valor”.
"Sinto-me especial porque gosto de estar ao serviço dos outros"
João considera que os seus desafios podem servir de exemplo e incentivo para outros continuarem a lutar dentro das suas dificuldades, além de não deixar ninguém indiferente, dando a cara por causas em situações extremas.
“As pessoas veem que alguém está ali a representá-las, alguém que anda ali no duro, durante aqueles dias de calor ou de inverno, debaixo de chuva, a lutar por aquilo. Acho que isso é bonito, sinto-me especial porque gosto de estar ao serviço dos outros”.
O primeiro a correr a EN 2
Como já mencionamos anteriormente, João Paulo Félix tornou-se, em agosto de 2017, no primeiro atleta a percorrer os 739 km da Estrada Nacional 2, entre Chaves e Faro, correndo pela Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM).
A ideia surgiu pelo desejo de percorrer o país e um ano depois de ter feito o percurso numa bicicleta ‘velhinha’, o atleta lançou-se à estrada, desta vez a pé.
↖ João Paulo Félix junto ao marco do km 0 da EN2 numa das provas realizadas
“Foi um marco, estou mais experiente, sinto-me mais preparado tecnicamente, mentalmente e fisicamente. Teve um impacto muito grande nas redes sociais, na comunicação social, nas pessoas – tive cerca de 100 pessoas a correr comigo de norte a sul do país, a maior parte delas não conhecia”, recorda.
Este é um dos factos que mais alegria traz a João Paulo Félix, a partilha dos seus desafios com os outros, sejam eles corredores ou não, demonstrativo do carinho que o público tem pelo seu projeto.
“É algo que eu sinto, que o meu projeto é muito especial para as pessoas. Deixa-me feliz que possa continuar a trabalhar, porque é bom para mim sentir isso. É como na vida, o apoio dá mais sentido aos nossos projetos”
Mas não foi só a correr que o atleta deixou o seu suor pelo percurso da EN2: em 2018 percorreu a estrada numa Brompton, uma bicicleta dobrável de roda 16 polegadas – normalmente presente nas bicicletas para os mais novos – em 80 horas, 30 minutos e 46 segundos ‘non-stop’. No mesmo ano, voltou a colocar-se ao volante, mas desta vez de uma ‘cargobike’ tendo percorrido os mais de 700 quilómetros em sete dias.
Este ano já tem novo encontro com a Estrada, marcado para 28 de maio. O objetivo passa por completar o percurso em menos de 48 horas, sozinho e com a carga essencial, numa bicicleta de alumínio, que, admite, não é o ideal.
"Nunca tive nos meus desafios aquilo que preciso. Vou lá com muita força de vontade"
Ainda assim, os desafios de João Paulo Félix têm-se pautado pelo esforço e pela força de vontade, nunca tendo tudo o que seria ideal para os mesmos, mas seguindo sempre em frente.
“Vou com o que tenho e não idealizo aquilo que podia ter. Nunca tive nos meus desafios aquilo que preciso. Vou lá com muita força de vontade”
Mas a nacional 2 não é a única estrada que João Paulo Félix já percorreu nos seus desafios: o ribatejano já percorreu a Nacional 3, a Nacional 9 e nos últimos dias, percorre a Nacional 222, entre Vila Nova de Gaia e Almendra, num percurso que conclui esta sexta-feira.
Outros desafios que se destacam no currículo do atleta são a Volta ao Ribatejo a Correr, em 2017 pela SPEM (320km), a ligação entre a Foz do Douro e a Foz do Tejo a correr (360km), e o percurso entre Troia e Sagres a correr (227km) em 2018, pelo Autismo. Isto além das centenas de outras provas em que participa e leva as causas ao peito, como maratonas e meias-maratonas, trails e corridas.
Volta a Portugal a Correr
Em pleno confinamento imposto pela pandemia, no ano passado, e prestes a chegar aos 50 anos, João Paulo Félix queria algo que lhe “enchesse a alma, que me fizesse viver”. E é aí que surge a ideia de percorrer o país a correr, uma ideia que até chegar à prática, precisou apenas de cinco semanas.
O pouco tempo de preparação levou a que muitos amigos o avisassem para não o fazer, mas a sua motivação e determinação acabou por contagiá-los.
“Eles viram-me tão determinado que um belo dia, ligam-me e dizem-me ‘Temos reunião às 21h, porque decidimos que vamos estar contigo’. Foi extraordinário. Já estava um pouco aos papéis e era um projeto um pouco megalómano para uma só pessoa. Isto é especial, é uma mensagem forte de alguém que tem determinação. Eu vou com as condições que tiver, podem não ser nenhumas, mas eu vou”
Foram 25 dias, entre 15 de julho e 8 de agosto de 2020, numa média de 52 quilómetros por dia, o que totalizou 1302 km, num percurso que terminou no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, todo ele feito contra a violência doméstica e em homenagem aos profissionais de saúde.
↖ João Paulo Félix antes da última etapa da Volta a Portugal a Correr 2020
A estes mais de 1300, juntou ainda mais 201 quilómetros, num evento especial na Madeira, inserido na Volta a Portugal a Correr 2020, onde além de levar a mensagem contra a violência doméstica, conseguiu angariar donativos para uma instituição local, num desafio em que teve uma parceria com o Instituto da Segurança Social da Madeira.
Em 2021, João Paulo Félix volta a correr o país, desta vez numa empreitada mais longa, quer em termos temporais, quer em termos de distância. O ribatejano vai correr mais de 2000 km em 40 dias, pretendendo ultrapassar o seu recorde pessoal de ultramaratonas, que atualmente se situa nas 24.
↖ João Paulo Félix na partida para a Volta à Madeira, inserida na Volta a Portugal a Correr
O plano é realizar uma média de 55 km diários, a correr pelos direitos das crianças, uma causa que, realça, é preciso que seja levada junto de todas as comunidades.
“É preciso que os direitos das crianças estejam nas comunidades: quanto mais as aldeias, as freguesias forem conhecedoras e mais comprometidas com a causa, menos maus-tratos existirão. Os direitos das crianças têm de estar na rua, têm de ser vivos”, afirma.
“A corrida é um bom veículo para isto: ninguém fica indiferente a um indivíduo, debaixo de 40 graus, a correr por uma aldeia, por uma serra. Há esta ligação ao esforço, ao querer, que vai ali com um sentido. A minha corrida é uma corrida especial a esse nível, ninguém fica indiferente”
Outra das novidades para este ano, é a passagem pelo Portugal profundo, numa forma de dar destaque aos vários locais do país, dando a conhecer parte do interior.
↖ João Paulo Félix apresenta uma das localidades por onde passa na Volta deste ano
No fundo, além das causas, João Paulo Félix quer que a sua Volta a Portugal seja uma festa, apesar de ser um desafio extremo.
“A volta é um projeto popular, que tem de estar junto das pessoas, que elas devem viver. Nesse sentido, espero que seja uma festa. Se resumisse a Volta em três palavras seria extrema, festiva e ligada a causas”
"Quanto mais receber, mais dou"
Como já vimos anteriormente, não é a falta das condições ideais que retira os objetivos a este atleta, cujo sonho é completar as duas maiores estradas do mundo, a Route 66, no Estados Unidos da América e a ‘Ruta 40’, na Argentina.
Ainda assim, a fase pré-desafios passa muito pela busca de apoios mínimos para assegurar a realização do projeto, uma fase que, admite, chega a ser mais dura do que correr debaixo de calor.
“Eu quando estou a correr até posso estar a passar por grandes dificuldades, mas vão-me ver contente, a falar com as pessoas. Este lado que ninguém vê, de ‘partir o coco’, ‘queimar’ a pestana, enviar e-mails, ouvir nãos, esse é que é muito mais duro para mim”, nota.
Para a Volta a Portugal a Correr, explica-nos, os apoios passam pelo patrocínio direto de marcas e pela cedência de alimentação e local para descansar, por parte das entidades públicas.
João Paulo Félix realizará ainda um ‘crowdfunding’, além da venda de algum merchandising ligado à prova que além de permitir pagar o projeto, permite doar parte do valor a uma instituição ligada à causa que defende.
“Eu não gostava que o projeto me tornasse rico em dinheiro, aquilo que vou colhendo e que vou tendo com as pessoas é suficiente. Quanto mais receber, mais dou. Tenho esse compromisso comigo e é público. O dinheiro é um objetivo que vem mesmo no fim da lista, mas ficava feliz se em vez de dar 300 ou 400 euros a uma instituição, conseguisse dar 5000”
Contudo, João prefere dar destaque às aprendizagens que vai colhendo ao longo dos quilómetros e às mensagens que vai ‘semeando’ pelo caminho.
“Eu acho que isto é muito especial e falo sem vaidade nenhuma. Se eu visse alguém a fazer aquilo que eu faço, acho que ia ter um carinho por aquela pessoa e ficaria grato por aquele exemplo. Creio que dou isso às pessoas. Faz-me sentir na minha pele”.
A próxima odisseia de João Paulo Félix tem início marcado para o próximo dia 15 de julho na Praia da Areia Branca, na Lourinhã, onde será dado o primeiro passo de mais de dois mil quilómetros a correr pelos direitos das crianças, que se juntarão aos mais de sete mil já percorridos por causas.
Pode acompanhar toda a preparação deste atleta na sua página de Facebook.
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