"Não sei se foi sorte, se foi fatalidade...acabei por perder a visão e tornar-me, literalmente mas não só, numa pessoa diferente, com uma visão diferente do mundo e da vida". É assim que, sempre com um sorriso no rosto, Jorge Pina, antigo campeão nacional de pugilismo, antigo atleta paralímpico e responsável por uma Associação e uma Academia com forte impacto social, olha para o momento que, inevitavelmente, marcou o seu percurso não só como desportista, mas como pessoa.
Recebeu-nos de manhã, bem cedo, na Academia Jorge Pina, em Marvila, com a simpatia e o entusiasmo de quem mostra a sua nova casa a um velho amigo, levando-nos pelo braço. "É que assim oriento-me melhor", explica. Por essa altura já tinha feito o seu treino e dado uma aula de Spinning. "A minha vida passa toda por aqui: começo a dar aulas muito cedo, mas antes ainda faço o meu treino...depois dou aulas também ao fim do dia. Faço a gestão da Academia e saio para dar palestras nas escolas. É uma correria, mas gosto do que faço. Sou feliz e isso é o mais importante", diz-nos, enquanto continua a fazer-nos a visita guiada ao espaço que é a 'menina dos seus olhos'.
Mostra-nos com especial carinho o ringue de boxe, onde está um dos seus pupilos a treinar. Passamos pelos restantes equipamentos e por várias salas, fazendo questão de destacar uma: nela não há qualquer equipamento desportivo, mas sim livros, desenhos infantis, um pequeno globo terrestre e vários computadores. "O nosso trabalho com os jovens não passa só pelo treino físico. E é importante esta sala de estudo de apoio, para eles poderem vir aqui não só treinar, mas também estudar", sublinha.
Esta vontade de ajudar os outros, de retribuir à sociedade aquilo que dela tem recebido, de levar outros a encontrarem a alegria de viver que sente, é, percebe-se, algo intrínseco à natureza simples de Jorge Pina. "O desporto ajudou-me nas várias fases da minha vida, independentemente dos resultados e do que me aconteceu. Por isso quero proporcionar a jovens e não só as mesmas oportunidades que eu tive de praticar desporto, com a inclusão de pessoas que vivem em zonas de risco e a ajuda a outras com incapacidades físicas", explica.
Quem é Jorge Pina?
"Nasci em Portimão. Os meus pais vieram de Cabo Verde, estiveram em Angola e depois da Guerra Colonial tiveram de sair de lá e foram para o Algarve. Depois o meu pai veio trabalhar para Lisboa e nós viemos também. Vivemos no Rego, no bairro de Santos, que na altura era um bairro social, de barracas, e foi aí que cresci", conta Jorge Pina.
Depois de experimentar outros desportos, como o futebol, o judo e o râguebi, iniciou a prática do boxe com 11 anos de idade, no clube 'Os Económicos'. Chegou, depois, à secção de boxe do Sporting Clube de Portugal em 1995. "Apaixonei-me pelo boxe e tornei-me num dos melhores atletas do país nessa modalidade, ao ponto de sonhar tornar-me campeão do mundo", relembra.
A primeira vez que experimentou boxe foi através de um treinador que pegava em jovens nas ruas e os levava a experimentar a modalidade. "Comecei a dar os primeiros golpes, depois combati nos Jogos de Lisboa e aos poucos fui crescendo, levando aquilo mais a sério e sendo campeão em várias categorias. Depois decidi passar a profissional, combati nos EUA e estava a ter uma carreira boa. Representei o Sporting, fui prémio Stromp...tive lá bons mestres", prossegue.
A vontade de se superar já lá estava. Foi vários anos campeão de Portugal e tornou-se no primeiro pugilista nacional com títulos em três diferentes categorias. O sonho seguinte era tornar-se campeão do mundo...mas não foi.
Um dia, tudo mudou...
Foi quando se preparava para lutar pelo título mundial que surgiram os problemas de visão. "Estava a treinar em Espanha, a preparar-me, e de repente começo a sentir uma coisa no olho. Fui de pronto com o meu treinador a um oftalmologista em Espanha, mas o médico não me elucidou da gravidade do problema e disse-me só para consultar outro oftalmologista quando chegasse a Portugal", recorda Jorge Pina.
"Vim para Portugal e continuei a treinar. Tinha um combate marcado para a Polónia, fui fazer esse combate e quando regressei não conseguia sentir a luz nos olhos", continua. "Fui ao médico e ele disse-me que eu estava a ter um descolamento de retina no olho esquerdo. Fui operado de urgência, mas fiquei com a retina dobrada. Tentar desdobrá-la não correu bem e acabei por cegar do olho esquerdo, do qual sou totalmente cego".
As más notícias não se ficaram por aí. Depois, numa consulta de rotina, disseram-lhe que teria de ser também operado do olho direito, porque poderia ficar totalmente cego. Uma vez mais, a operação não correu pelo melhor. "Sou um bocado beato, então estava agarrado ao terço, a falar com deus, confiante de que ia sair de lá a ver. Mas quando saí, saí pior do que entrei...", lembra.
Tal infortúnio, em alguém ainda tão jovem, tão ativo, no topo da sua modalidade, podia tê-lo arrasado e tornado numa pessoa amarga. Não foi, de todo, o que aconteceu. "Podia ter sentido ódio e revolta dentro de mim, questionado porque é que me tinha acontecido aquilo a mim, mas acabei por aceitar", diz.
"Aceitei a minha condição e a partir daí acho que comecei a ver melhor. Deixei de ser ‘cego’ como se calhar tinha sido toda a minha vida."
Foi, para Jorge Pina, um momento de aprendizagem não só à nova realidade física, mas à forma de encarar o mundo. "Comecei a pensar na vida de outra forma, a sentir as pessoas, a não julgar ninguém pela forma como se veste ou pela cor da pele...Comecei a tentar perceber e sentir a essência de cada ser humano. E essa é a parte melhor que ganhei. De olhar para a vida e sentir a espiritualidade, as pessoas. Somos todos iguais e estamos todos no mesmo mundo. Comecei a saber lidar com a vida com outro desapego", explica.
A ligação ao desporto, essa, não parou nunca. Só mudou de vertente. Impossibilitado de continuar a praticar boxe, apontou baterias ao atletismo, fixando novos objetivos.
"Quando aconteceu esta fatalidade agarrei-me ao atletismo, porque tinha de encontrar outra forma de me sentir bem, de arranjar competição dentro de mim. Tinha um grupo de amigos com quem costumava correr e um deles conhecia o professor José Santos, que treinava pessoas invisuais. Eu ainda estava no hospital e esse meu amigo deu o meu contacto ao professor, que me ligou. Apresentou-se, disse que trabalhava no Estádio Universitário e convidou-me a aparecer para treinar com ele quando quisesse. Perguntei logo ao médico se podia correr e ele disse que sim. Mal saí do Hospital de Santa Maria, atravessei a estrada e fui para o Estádio Universitário ter com o professor. Ele olhou para mim e pensou 'mas este gajo acabou de ser operado, de perder a vista, e já esta aqui?'. Eu disse-lhe: 'Sim, estou aqui e quero correr'", recorda Jorge Pina, sempre a sorrir.
Os primeiros resultados não tardaram a aparecer. "Nessa altura decorria a preparação para um Campeonato do Mundo, em São Paulo, em 2007, e eu disse que me queria qualificar. Comecei a treinar, ele arranjou-me um guia e qualifiquei-me. Fui a esse Campeonato do Mundo e o objetivo passou a ser os Jogos de Pequim. Perguntei qual era o mínimo e disseram-me que era 3h20. Disse que só iria se fizesse menos do que 3h00. Na primeira Maratona fiz 2h54. Fui para Pequim e quando terminou disse 'agora quero ir a Londres'. Fui a Londres, depois disse que queria ir ao Rio e fui. Gostava de ter ido a Tóquio, mas já não deu...", lamenta.
Participar nos Jogos Paralímpicos foi, para Jorge Pina, uma sensação inexplicável. "Quando chegava lá e via pessoas sem braços, sem pernas, a lutarem e a esforçarem-se para atingirem os seus objetivos, eu pensava para mim 'o que é que eu tenho em comparação com eles? Eu não tenho nada. O meu problema é bem menor. Eu consigo correr, consigo mexer-me…simplesmente arranjei outra forma de ver'", lembra. "A vida é o melhor que nós temos e se estou vivo vou lutar para ser feliz", aponta.
Uma Academia do tamanho do seu sonho
Foi daí, dessa alegria de viver e da vontade de partilhar essa felicidade, de retribuir o que a sociedade lhe tinha dado e ajudar outros a seguirem o mesmo caminho, que nasceu a ideia de criar uma associação em nome próprio. O objetivo era ajudar jovens em risco a terem comportamentos mais saudáveis, ligarem-se ao desporto e dessa forma evitarem situações menos favoráveis.
Em 2011 nasceu, então, a Associação Jorge Pina, inicialmente ainda numa vertente apenas do boxe. "Eu tinha deixado de poder lutar e não queria abandonar a modalidade. E ainda hoje continuo ligado, a dar treinos, porque foi a minha primeira grande paixão, apesar de gostar muito de atletismo e do desporto em geral. Então decidi agarrar no boxe para ajudar pessoas a chegarem onde eu cheguei, ou até mais longe", explica Pina.
Mas ele queria mais. "Como gosto muito de cometer loucuras, houve uma altura em que decidi realizar uma corrida de Caminha até Sagres em dez dias, fazendo duas maratonas por dia, para ajudar várias associações. Conheci a responsável pelo pelouro do desporto na CM de Lisboa na altura e falei-lhe do meu projeto, da minha Associação, e de como precisava de um espaço para poder desenvolver as atividades que tinha. Expliquei que trabalhava com crianças e jovens de risco e que tinha também acabado de criar uma escola de atletismo adaptado", conta.
"Ela disse que sim, que me iriam ajudar e mostraram-me vários espaços. Mas era tudo demasiado pequeno. Até que encontrámos este espaço, onde está agora a Academia, com 1700 metros quadrados. Mas isto estava tudo destruído: esgotos a céu aberto, ratos, até seringas…chamaram-me louco. 'Onde é que te vais meter, Pede um espaço mais pequeno'.
"'Sim, eu sou maluco, mas é disto que eu preciso, porque este espaço é do tamanho do meu sonho'"
"Falei com um amigo arquiteto que me fez o projeto gratuitamente, fui à Câmara apresentar o projeto e eles deram-me 60 por cento do dinheiro. Mas faltavam 40 por cento e eu não sabia onde os arranjar. Fui ao IPDJ, que também deu uma parte. Depois fui a várias empresas de materiais e todas foram espetaculares. Eu pedia materiais descontinuados e eles diziam que – pelo trabalho que eu estava a desenvolver - me davam o melhor que tinham".
A primeira pedra foi colocada em setembro de 2018 e a inauguração foi no início de 2022. O espaço é aberto a toda a população, de forma a conseguir ir buscar algum rendimento extra às mensalidades pagas pelos clientes e assim evitar que a instituição de solidariedade dependa apenas de apoios. Disponibiliza modalidades como boxe, jiu jitsu, cross training, boxe kids, MMA, krav maga e até acrobacias aéreas ou fitness 55+. Neste momento é frequentada por entre 450 a 500 pessoas.
"Este projeto foi pensado para ajudar toda a gente, com desporto para todos, independentemente da classe social", frisa Jorge Pina. "Se não fosse um pouco louco isto não existia. Foi o acreditar que era capaz e que conseguia envolver pessoas à volta deste projeto que nos permite estar aqui. Estamos a tentar tornar tudo isto sustentável, também com o apoio de muitas empresas que nos ajudam. E precisamos do apoio de muitas mais, porque gostava de ver a Academia expandir-se para outros lugares, para outros espaços. Entrar noutros bairros e tentar estar em mais lados, para mais pessoas usufruírem. Nem que seja apenas montar o espaço e deixar lá para que outras pessoas da comunidade depois o desenvolvam", remata.
Espiritualidade e o papel social do desporto
Na Academia Jorge Pina há, também, uma área de meditação, um espaço colorido, com as paredes pintadas em vários tons, iluminado pela luz do sol. "Reflete um pouco de cada religião", explica-nos o antigo atleta paralímpico. A espiritualidade é, sem dúvida, algo a que dá grande importância.
"Há muito para além daquilo que a gente vê: há energia, há amor, há paixão, há sentimentos e acima de tudo há a espiritualidade, que veio fazer-me ver a vida de forma diferente, conhecer-me melhor a mim mesmo de um prisma diferente", aponta. "Acredito que é a fé que nos faz vencer obstáculos e ir atrás da transcendência e de querer fazer mais. Quero viver a vida da humanidade, do amor, da partilha. A minha fé ensina-me a ser mais consciente, a não querer magoar os outros e a querer ajudá-los".
Uma ajuda que vem através do desporto e da forma como procura transmitir a sua vivência. "Quero partilhar a minha aprendizagem, história e valores do desporto. Não é o bairro, a cor ou a condição social que nos torna diferentes; é o coração e a vontade de fazer mais por nós e pelos outros", reforça.
"O desporto é uma ferramenta poderosíssima quando é bem usada e de uma forma correta".
E acrescenta: "Acho que o desporto é uma fábrica de valores. Se o mestre, o treinador, os dirigentes, souberem agarrar no desporto dessa forma, ele pode salvar muitas vidas. Ajudá-las a encontrarem um caminho. Porque o desporto é um espelho da vida: há que ser resiliente e não desistir à primeira derrota, ao primeiro contratempo".
É esta a mensagem que Jorge tenta passar aos jovens, seja na sua Academia, nas suas palestras, através da sua Associação, das corridas que promove, da Escola de Atletismo Adaptado: que não é por serem de um bairro problemático que os jovens estão sentenciados a serem nada. Podem ser tudo aquilo que quiserem. Não estão condenados à partida.
E, agora, o ciclismo. E mais uma grande aventura rumo ao Vaticano...
Jorge Pina não sabe estar parado. Um problema nas costas impede-o, agora, de praticar atletismo. Então, virou-se de pronto para outra modalidade: o ciclismo adaptado. E já tem um novo objectivo e novos projetos.
"Deixei de poder correr, de poder fazer atletismo de competição. Então virei-me para o ciclismo e fiz recentemente a minha primeira prova de ciclismo adaptado em bicicleta tandem, na Taça de Portugal. Fiquei bem classificado, em primeiro lugar na prova de contra-relógio e de circuito, dentro do meu escalão", destaca.
O próximo objetivo surgiu a propósito das Jornadas Mundiais da Juventude. "Agora tenho este novo desafio de, em Julho, sair de Lisboa rumo ao Vaticano, passar por Espanha, França e Itália e chegar ao Vaticano, para estar com o Papa, a propósito das Jornadas da Juventude. E enquanto passo por esses países quero estar com as comunidades e falar com elas, explicar o porquê da minha viagem, a minha visão do mundo, da vida, da religião, das pessoas. Conseguir deixar um pouco de mim por onde passar", explica.
"A ideia inicial até era ir a correr. Só que depois tive este problema nas costas e então decidi ir de bicicleta. Por um lado transcender-me, por outro mostrar aquilo de que todos somos capazes, por mais limitações que tenhamos", acrescenta.
O objetivo é mostrar que onde há vontade não há limitações".
E, com tudo o que já fez, será que Jorge Pina se sente realizado? "Não me posso nunca sentir realizado, porque sei que quando me sentir realizado vou parar e eu não quero parar. Ainda quero fazer muito mais do que já fiz até aqui e vou sempre arranjar mais coisas para fazer. Para me fazer sentir vivo. Agora, como me lancei no ciclismo, tenho a ideia de vir a criar uma equipa de ciclismo adaptado para pessoas invisuais. Para ter que mais pessoas possam ter a oportunidade que eu estou a ter e possam descobrir como é bom sentir o vento na cara enquanto pedalamos. São novas paixões que vão aparecendo e acho que não há limites", sublinha.
"Tudo isto faz-me pensar como é bom uma pessoa sentir-se bem, como é boa a riqueza interior, respirar e sorrir. Às vezes esquecemo-nos desses prazeres simples da vida: o sentar, o respirar, o ouvir, o sentir a alegria e o amor interior. E é um trabalho que é fácil de fazer: ver a vida de outro prisma e sentir o mundo de outra forma", termina.
É, sem dúvida, uma mensagem inspiradora esta que nos deixou antes de nos despedirmos, enquanto conversava com mais um os muitos jovens que acolhe na sua Academia, o grande sonho concretizado da sua vida.
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