O caso do antigo médico da seleção de ginástica dos Estados Unidos Larry Nassar mudou o paradigma mediático e institucional quanto ao assédio e abuso sexual no desporto, até aqui um ‘tabu’ debaixo de uma cortina de silêncio.
A condenação a mais de 100 anos de prisão de Nassar, depois de ter abusado sexualmente de mais de 100 raparigas menores ao longo de três décadas de prática junto da ginástica norte-americana ao mais alto nível, é um caso paradigmático deste fenómeno.
Desde há muito falado no setor como um tipo de violência que se sabe ocorrer, mas sem denúncias ou consequências verdadeiras, aparte o ocasional caso isolado, o assunto está mais e mais na agenda mediática e promovendo a mudança institucional.
A divulgação dos crimes de Nassar, que foi denunciado por dezenas de atletas no seio de um escândalo na ginástica norte-americana, entre elas as campeãs olímpicas McKayla Maroney, Aly Raisman e Gabby Douglas, ajudou a ‘virar’ a cultura de silêncio em torno do fenómeno.
Não foi o primeiro caso alvo de notícia na comunicação social, nem julgado em tribunal, como o antigo médico e professor, condenado pela primeira vez em 2017, somando-se sucessivas penas adicionais.
Ainda assim, este caso acabou por surgir no âmbito de um movimento mais abrangente do que o desporto, o denominado ‘#MeToo’, que começou por englobar denúncias contra o antigo produtor de cinema Harvey Weinstein para se ‘alastrar’ ao mundo da cultura em geral, passando pela política e pelo desporto.
Em Portugal, várias futebolistas que alinharam no Rio Ave em 2020/21 denunciaram, numa notícia publicada na semana passada pelo jornal Público, ações de assédio sexual do então técnico do clube de Vila do Conde Miguel Afonso, que atualmente era treinador do Famalicão, tendo também o diretor desportivo Samuel Costa sido alvo de um processo disciplinar.
Este processo surge em paralelo com a publicação de um relatório independente que encontrou provas de uma prática “sistémica” de assédio e abuso sexual, bem como abuso emocional, no futebol feminino norte-americano.
A investigação de mais de um ano encontrou na principal Liga um problema que abarca “múltiplas equipas, treinadores e vítimas”, com o abuso “enraizado numa cultura mais profunda do futebol feminino, das Ligas para crianças e jovens, onde se normaliza um tipo de treino abusivo”.
Os casos vão de um treinador que mostrou filmes pornográficos a uma jogadora enquanto se masturbou, a numerosos exemplos de coerção sexual, parte de um ‘mar’ de reportes “profundamente problemáticos”, como admitiu a presidente da federação norte-americana, Cindy Parlow, ela própria uma antiga jogadora internacional.
O relatório não concerne apenas o tipo de abuso enfrentado por atletas e jovens atletas no futebol feminino nos Estados Unidos, mas também a forma como, de maneira geral, as várias instituições que regem o desporto, da Liga à US Soccer e aos próprios clubes, falharam em proteger as vítimas, além de não responderem adequadamente a denúncias e indícios.
Esta Liga trazia, de 2021, um outro ‘escândalo’, de Paul Riley, treinador das North Carolina Courage, por coação, e que instigou um movimento naquele campeonato mas que chegou à Venezuela, onde várias internacionais denunciaram o selecionador, Kenneth Zsemremeta.
Os estudos apontam, de resto, uma percentagem mais do que residual de crianças e jovens que afirmam ter sofrido algum tipo de assédio ou abuso sexual durante as carreiras, ainda que em Portugal poucos ou nenhuns estudos incluam dados concretos no país.
Os números dizem respeito queixas que podem ter sido feitas por vítimas ou ex-vítimas ou por quem tenha testemunhado um episódio de violência. A média de idades das vítimas estava abaixo dos 18 anos.
A maior parte da violência reportada dirigia-se a mais do que um ou uma atleta, com 13 vítimas ou ex-vítimas do género feminino, com uma média de idades abaixo dos 18 anos.
Os números tipificam o tipo de agressão, predominando o abuso ou assédio sexual, com uma maioria de atletas internacionais entre as vítimas, a predominância de queixas por parte do género feminino e dos acusados como sendo do género masculino.
A maioria dos casos reporta a violência presencial, com quase metade das situações a acontecer todos os dias, com várias modalidades incluídas, entre elas o futebol.
De novo nos Estados Unidos, o país onde estes casos mais surgem à luz da justiça e da perceção pública, o antigo treinador Andy King foi condenado a 40 anos de prisão após ser descoberto um padrão de abuso sexual ao longo de mais de 30 anos, em vários clubes, com mais de uma dúzia de atletas adolescentes, tendo sido detido em 2009, um de 100 treinadores banidos do desporto naquele país depois de uma investigação.
No futebol inglês, um relatório policial assenta em 741 vítimas que se chegaram à frente para detalhar alegações, antigas ou recentes, contra perto de 300 indivíduos, entre técnicos e ocupantes de outras funções no mundo do desporto, no caso concreto quanto a abuso sexual de crianças.
A Federação inglesa de futebol encomendou uma investigação independente à forma como lidou com denúncias e outras alegações antes de 2005, com o basquetebol, a ginástica, o atletismo, a natação, o ténis e o râguebi, entre outros, também visados na ‘Operation Hydrant’ levada a cabo pelas autoridades policiais a partir de 2015, e do qual perto de 30% dos casos levaram a uma condenação.
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