O Santa Clara combate os preconceitos dentro de campo ao disputar o campeonato de futsal da ilha de São Miguel com uma equipa formada por jogadores com défice cognitivo, um caso único a nível nacional.
“Não podemos estar a estigmatizá-los. Esta equipa consegue fazer o mesmo do que qualquer outra. Agora, temos de ter paciência, trabalho e muitas horas dedicadas aos atletas. É algo que demora o seu tempo, mas quando se corre por gosto, tudo é feito com mais alegria”, começa por dizer à agência Lusa o técnico Paulo Jorge Borges.
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De acordo com o treinador, “tudo começou” com a “necessidade de aumentar o ritmo competitivo” dos açorianos para as provas nacionais, depois de terem constatado a “diferença de andamento” face às equipas do continente.
“Tivemos a ideia de incluí-los dentro de um desporto regular. Nós, no adaptado, já estamos habituados a isso. Temos continuamente de estar a inventar e a tentar ir buscar ‘coelhos da cartola’ para fazer alguma coisa de diferente em relação a tudo”, lembra.
A ideia foi aceite pela Associação de Futebol de Ponta Delgada. Apesar de terem a designação de Santa Clara B, porque o clube já tinha uma formação no campeonato de ilha, até estão à frente da equipa A na classificação - ocupam o sexto lugar entre as 10 participantes.
Nas provas nacionais de futsal adaptado, esta época, na estreia no campeonato, chegaram à final e só perderam para o Clube Gaia. Agora, o objetivo está no jogo da Taça de Portugal, marcado para 25 de abril.
Para o treinador, vai ser o “teste de fogo” ao trabalho “contínuo” realizado nos últimos anos, marcado por “pequenas conquistas” que fizeram a “equipa crescer” progressivamente.
“Eles são bastante evoluídos técnica e taticamente. Ao longo do tempo que estamos a trabalhar com eles - e há alguns que estão connosco desde 2019 -, tem sido um trabalho muito extensivo. Só assim se consegue ter resultados no desporto adaptado”, considera.
Independentemente do desfecho, o treinador assegura que vai continuar a ter um “prazer enorme” em treinar esta equipa “especial”, na qual se sente o “verdadeiro espírito do atleta”.
“Eles não têm qualquer preconceito, não têm qualquer tipo de mania. São autênticos, são genuínos e dão tudo, não só no treino como em campo […]. É a partir daí que me dá vontade de continuar a treiná-los, porque eles são diferentes em tudo. E para melhor”, vinca o treinador, que detém uma especialização em desporto adaptado.
Não se trata apenas da competitividade inerente à prática desportiva: para aqueles jogadores, o futsal aumenta a “autoconfiança”, cria “vontade de superação” e promove a “inclusão social”, advoga Paulo Jorge Borges.
O ‘capitão’ Fábio Costa, há oito anos no Santa Clara, concorda. Sempre “gostou de futebol e de futsal”, tanto que os seus dias são passados “sempre a pensar nos treinos e nos jogos”.
“Jogar aqui é especial, o ambiente é diferente. Já não me imagino sem isso”, atira.
Fábio Costa tem 31 anos e é o mais antigo jogador do plantel. Evoca a sua experiência para salientar que “não há futsal adaptado”: há “apenas futsal”.
“As pessoas podem falar mal, mas a gente não quer saber. A nossa resposta é dentro do campo dar o melhor e mostrar que não somos coitadinhos. Muita gente fala, mas não conhece as coisas”, afirma.
Já Nando Santos, que está a cumprir a primeira época com o emblema micaelense ao peito, garante que a equipa está motivada para ganhar a partida da Taça de Portugal. Dentro do campo, diz, não há diferenças: é uma competição como as outras.
“Isso para mim é uma competição igual às outras. Não há aqui adaptados. Aqui o trabalho é igual e o empenho é igual”, afirma.
Pintor de profissão, dentro das quatro linhas é ala e pivô. Já no interior do balneário, vive-se um “ambiente” de uma “verdadeira equipa”: “Isso é um jogo muito unido que dá para puxar muito pela cabeça e eu gosto muito disso. Isso para mim é uma paixão. Tudo o que gosto na vida é futebol. Consigo meter tudo à parte, mas não consigo meter o futsal. Sonho com isso”.
A equipa é uma das três de futsal adaptado do Santa Clara, a única que compete a nível nacional e em provas regulares. “Uma responsabilidade social” que o clube encara como uma forma de dar uma “oportunidade” a muitos jovens, segundo o diretor Albertino Monteiro.
“É política do clube trabalhar para uma maior inclusão e dar oportunidades a jovens que, neste caso, muitas vezes, estão um pouco à margem daquilo que é a prática desportiva e a vida social em geral”, reforça.
O dirigente elogia a “persistência” dos jogadores, habituados a fintar as “ideias preconcebidas” sobre as pessoas com défice cognitivo, realçando ainda o “papel fundamental” do desporto para que os atletas se “sintam como parte de algo”.
“É a tentativa de romper com esse preconceito para as pessoas encararem os indivíduos com algumas especificidades e características próprias como pessoas que podem desenvolver as atividades como qualquer outra”, remata.
No final, o que importa é marcar mais um golo pela igualdade.
REPORTAGEM DE Rui Pedro Paiva (texto e vídeo) PARA A AGÊNCIA LUSA.
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