Timothy Francis Donaghy. À primeira vista o nome provavelmente não lhe dirá muito; contudo, trata-se da personagem principal de uma história que abalou por completo a NBA, e o desporto norte-americano nos primeiros anos do século XXI. A história do árbitro de basquetebol é agora objeto do documentário "Untold: Operation Flagrant Foul", disponível na plataforma de streaming 'Netflix'.
Filho de Gerry Donaghy, um dos árbitros mais cotados do basquetebol universitário dos Estados Unidos, e sobrinho de Billy Oakes, árbitro da NBA, Tim nasceu em Filadélfia, mais propriamente em Havertown, local conhecido por ser o berço de muitos dos árbitros de basquetebol, como o caso de Joey Crawford, Mike Callahan, ou Ed Malloy.
Tal como o pai, Tim cedo se apaixonou pela modalidade, começando a apitar jogos da 'Continental Basketball Association' (CBA) destacando-se dos demais ao longo dos sete anos na competição. Em 1994 Tim Donaghy alcançou o patamar de elite ao tornar-se um dos 54 eleitos para apitar na liga profissional norte-americana.
"Era o trabalho dos meus sonhos. Porque tive a oportunidade de correr de um lado para o outro do campo juntamente com os maiores jogadores de basquetebol do mundo. Eu amo o 'basket' desde criança. O meu objetivo era fazer parte disso de alguma forma. Foi um sonho que se tornou realidade", disse Donaghy em entrevista ao programa "60 Minutos".
O princípio do fim
A vida corria de feição ao jovem Tim Donaghy. Com 27 anos, acabado de chegar à NBA, o árbitro não se intimidou e mostrou desde o seu primeiro jogo a sua postura e coragem.
"O meu primeiro jogo foi em Indiana, contra Houston. Nos últimos segundos do jogo, o Reggie Miller tenta um lançamento mas eu assinalo falta ofensiva. E o pavilhão enlouqueceu, atiraram muita coisa para dentro de campo. O jogo foi interrompido durante cerca de 20 minutos. Depois do jogo voltei para o quarto de hotel, liguei a TV e lá estava a minha foto. Dias mais tarde recebi capacetes de futebol em minha casa enviados pelos outros árbitros onde estava escrito: provavelmente tu vais precisar disto no resto da tua carreira", contou.
Tim Donaghy estava onde sempre sonhou estar, e começou a destacar-se como um dos melhores árbitros da NBA, tudo isto enquanto ganhava cerca de 300 mil dólares por ano... contudo tal acabou por não ser suficiente.
Quando se mudou com a sua mulher e quatro filhas para um condomínio fechado em West Chester, no clube de golfe do condomínio, Tim reencontrou Jack Concannon, amigo dos tempos de escola. Habituado a apostas frequentes nos mais diversos desportos, Jack começou por fazer pequenas apostas com Tim relativamente aos seus jogos de golfe.
Em pouco tempo, as apostas tornaram-se maiores e transformaram-se em viagens ao casino Borgata, em Atlantic City. Aí Tim levava um boné, por forma a poder ocultar a sua identidade; apesar do vício do jogo, ele estava perfeitamente ciente que era estritamente proibido a um árbitro da NBA fazer qualquer tipo de aposta.
"Comecei a pensar – ou antes a racionalizar: "Mer#a, todos os outros árbitros apostam! Eu era como um consumidor de cannabis a passar para cocaína"– Tim Donaghy
Para além das viagens ao casino e das apostas nos jogos de golfe, Concannon trabalhava com Peter Ruggieri, um 'bookie' (apostador profissional) que, para além de dar umas tacadas de golfe com o grupo de West Chester, fazia as apostas de Jack nos mais variados jogos de futebol americano profissional e universitário.
Em outubro de 2002, Donaghy e Concannon começaram a fazer apostas através de Ruggieri. Contudo, e como acontece com a maioria dos apostadores, os dois acabaram por subir a parada (e o risco). Um dia, em 2003, e após mais um jogo de golfe, Jack e Tim decidiram começar a apostar, não só em jogos da NBA, mas em jogos arbitrados pelo próprio Tim Donaghy.
A partir daí, Ruggieri começou a ver um aumento significativo do valor das apostas de Concannon em jogos da NBA. Com acesso ao histórico de apostas de Jack, e sabendo da sua amizade com Tim, não demorou muito para que se percebesse que o árbitro da NBA estava a dar dicas sobre os potenciais vencedores dos jogos.
"Eu sabia que certos relacionamentos de árbitros com jogadores, treinadores e presidentes acabavam por influenciar os resultados dos jogos. Consegues perceber quando os árbitros gostam ou não gostam de certos jogadores, treinadores, 'managers' ou presidentes dos clubes. Eu conhecia os meus colegas, sabia de quem eles gostavam, quem desprezavam e quem ajudariam ou prejudicariam", disse Donaghy em entrevista ao programa "60 Minutos"
Perante esta nova informação o grupo de apostas de Ruggieri ('The Animals'-Os Animais) começou também a fazer apostas nas escolhas de Donaghy e Concannon (entre 30 a 100 mil dólares por jogo) e com grandes resultados.
"Se eu achava que o Tim estava a manipular os resultados? Sim, achava. Mas não queria saber, pois era fantástica informação. De 2003 a 2007, nunca falhávamos um jogo que ele estivesse a apitar", disse um dos antigos utilizadores da empresa de apostas de Ruggieri.
Jimmy, Tommy e uma proposta irrecusável
Jimmy Battista e Tommy Martino eram dois colegas de Tim desde os tempos de liceu. Após concluída escola, Battista começou a trabalhar num restaurante, na altura gerido por uma das famílias da máfia de Filadélfia. Aí o jovem Battista aprendeu a movimentar-se no mundo das apostas clandestinas.
"Formei um grupo chamado 'The Animals'. Passávamos o dia inteiro no escritório simplesmente a fazer apostas e a tratar das apostas dos nossos clientes. Apostávamos milhares de dólares nos jogos e as pessoas queriam os nossos serviços pois tínhamos contactos um pouco por todo o lado. Nós construímos a nossa empresa com base em informação privilegiada", afirmou Battista.
"Caí num vício de apostas. Começou em jogos de golfe e jogos de cartas nos clubes e nas casas das pessoas. E foi evoluindo até começar a apostar em desportos profissionais"– Tim Donaghy
Depois da falência da empresa que construiu com Ruggieri, Jimmy Battista, antigo colega de Tim no liceu resolve aventurar-se no mundo da apostas por conta própria, concentrando-se primordialmente no árbitro da NBA. Para tal Battista decide pedir a Tommy Martino, amigo em comum com Donaghy, para marcar uma reunião com este.
Apesar de haverem versões díspares de como a reunião no Hotel Marriot junto ao aeroporto de Filadélfia decorreu, o acordo ficou alinhavado: Tim recebia dois mil dólares por cada aposta certa, não sendo obrigado a pagar nada caso escolhesse a equipa errada.
O sistema foi posto logo em prática na noite seguinte quando os favoritos Philadelphia 76ers receberam os Boston Celtics; Tim sugeriu que se apostasse nos Celtics e a aposta resultou. Na noite seguinte Battista, Martino e Donaghy encontraram-se os três e o árbitro recebeu os dois mil dólares combinados, levando ainda mais três mil como bónus, aquela foi a última vez que Battista e Donaghy comunicariam presencialmente.
Por telefone Tim dava as dicas através de código. Se a aposta fosse na equipa da casa usava o nome 'Chuck', referente ao irmão de Tony que morava em Filadélfia, se o palpite caísse na equipa visitante, então aí falava em 'Johnny', outro irmão de Tony e que morava em Nova Jérsia.
"Acho que me dava uma emoção maior porque eu conseguia prever o resultado dos jogos. Êxtase. Êxtase real. Acho que apostei em mais de 100 jogos"- Tim Donaghy
A investigação do FBI
Tudo corria pelo melhor dentro do esquema montado por Battista, Martino e Donaghy, de tal forma que o árbitro já nem sabia o que fazer com tanto dinheiro, nem sabia como o conseguiria esconder da esposa. Tim ia acertando na maioria dos jogos (cerca de 70% de apostas corretas) e todos estavam felizes.
Mas em outubro de 2006 chegou aos ouvidos de Phil Scala, agente do FBI responsável por investigar a família Gambino, uma das cinco famílias de crime organizado em Nova Iorque, que um árbitro da NBA estava a colaborar com personagens do mundo das apostas desportivas, que por sua vez tinham ligações aos Gambino. Através de extensa investigação e análise de chamadas telefónicas, o FBI descobriu o nome de Tim Donaghy.
A partir daí, o processo acelerou e em Maio de 2007 Tommy Martino foi chamado para depor perante um júri, tendo informado Donaghy poucas horas depois. Segundo o antigo árbitro, quando tal aconteceu, Donaghy só estava preocupado em salvar a sua própria pele.
"Eu realmente não percebia as consequências das minhas ações. Sabia que podia arranjar problemas, isso estava na minha cabeça, mas ia com a ideia de que não ia ser apanhado. Eu achava que ia sair impune" - Tim Donaghy
Em Junho Tim Donaghy foi chamado a depor. Aí o árbitro acabou por admitir que fazia apostas em jogos da NBA que o próprio dirigia, mas que nunca os tentou intencionalmente manipular. Para além disso, Donaghy garantiu que quase todos os outros árbitros da liga também eram corruptos.
"Ele disse: sabendo o que eu sabia, não precisava fazer nada para escolher uma equipa. Eu poderia escolher um vencedor 80% das vezes apenas sabendo o que eu sabia uma hora antes do jogo. E ao assistir às gravações dos jogos, pudemos ver que nunca houve nada de extravagante ou deliberado. Ele nunca marcou ou deixou de marcar uma falta porque queria que uma equipa específica vencesse. Nunca vimos isso", disse Phil Scala.
Poucos dias depois o FBI deslocou-se à sede da NBA em Nova Iorque para reunir com o presidente David Stern. Aí os agentes apresentaram toda a situação aos responsáveis da liga, tendo esta disponibilizando-se para cooperar totalmente nas investigações. Scala afirmou mais tarde que cometeu um erro em ir diretamente à NBA com este caso.
"Se me perguntas se eu faria as coisas de maneira diferente, digo que sim. Eu não iria informar Stern. Estávamos preparados para colocar uma escuta no Donaghy para que pudéssemos corroborar a sua história e apanhar outros alegados árbitros corruptos", disse Scala em entrevista à ESPN.
Coincidentemente ou não, um mês após a reunião do FBI com a NBA o jornal 'New York Post' obteve informações acerca desta investigação, publicando-as de imediato.
"A publicação deitou os nossos planos por terra. Se a história não tivesse sido publicada, o Donaghy tinha usado uma escuta e não sabemos até onde isto poderia ter ido. As coisas poderiam ter sido bem diferentes" - Phil Scala
No final, Tim Donaghy e Tony Martino consideraram-se culpados dos crimes de conspiração por fraude eletrónica e conspiração de transmissão de informação relacionada com apostas ilegais. Já Battista chegou a um acordo, acabando por se declarar culpado apenas do crime de conspiração de transmissão de informação relacionada com apostas ilegais. Donaghy e Battista foram condenado a quinze meses de pena efetiva, enquanto que Martino ficou-se pelos doze.
Ao FBI, Tim Donaghy confessou, não só os seus próprios pecados, como também denunciou a própria NBA, alegando que esta tende a favorecer equipas de mercados maiores, procurando tirar o máximo partido da participação destas nos 'playoffs'.
"A NBA faz de tudo para estender as séries e ajudar as equipas de grandes mercados a avançar. 'Playoffs' mais longos com essas equipas escolhidas significam mais dinheiro para a NBA", afirmou Donaghy.
A NBA negou estas acusações, classificando-as de absurdas e que apenas serviram para Donaghy tentar reduzir o tempo da sua pena. O na altura comissário David Stern e outros árbitros argumentaram que Tim Donaghy não tem qualquer tipo de credibilidade, e que não é pessoa de confiança
"Não falei sobre isso há dez anos atrás e não vou falar agora" … "Recuso-me a falar sobre o assunto" … Ninguém quer falar sobre assunto. Ou mesmo dar-lhe qualquer tipo de destaque. É desprezível" … "Acho que já se escreveu o suficiente sobre Tim Donaghy", foram alguns dos comentários de alguns antigos colegas do árbitro.
Ironicamente, Donaghy afirma que este escândalo acabou por melhorar a arbitragem da NBA, isto porque obrigou a liga a fazer várias mudanças por forma a evitar que os árbitros se deixassem influenciar pelos seus preconceitos durante os jogos.
Tim Donaghy saiu em liberdade em 2009, segundo o próprio, nunca mais assistiu a um jogo de basquetebol, e sublinha que também nunca mais irá arbitrar.
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