Início de janeiro do novo ano. Frio e dia de sol em todo o país. Partimos logo de manhãzinha em direção a geografias ainda mais amenas. Destino: Algarve. Objetivo: Descobrir o paradeiro de João Vieira, a grande referência da marcha portuguesa e vice-campeão do mundo na prova dos 50 quilómetros em Doha, no Qatar.

A uma terça-feira de manhã, o caminho não nos toma muito tempo. Com uma A2 praticamente despida de veículos dirigimos-nos, sem hesitar, para o sotavento algarvio, às portas de Espanha, onde vamos encontrar o refúgio do atleta de 43 anos.

Quase sempre nesta altura do ano, João Vieira ruma a sul em direção às origens com o objetivo de carregar baterias e preparar a época desportiva, num ano particularmente importante. Na mira estão os Jogos Olímpicos de Tóquio no próximo verão. Na bagagem está a responsabilidade de ter sido medalha de prata nos últimos Mundiais de Atletismo.

Nascido em Portimão, rumou a Rio Maior com dois anos de idade, onde acabou por fazer toda a sua formação, como atleta e como homem. Mas é no Algarve, entre Castro Marim e Vila Real De Santo António, que inicia as 'hostilidades', já com o pensamento no campeonato nacional de 35 e 50 quilómetros, que terá lugar no dia 26 de janeiro.

Às portas da fronteira, o atleta não só encontra a tranquilidade, a temperatura ideal, mas também a motivação para encarar o resto da temporada.

"O Algarve permite-me treinar sem chuva e frio, descansar, comer e fazer a recuperação e saio sempre daqui satisfeito com o resultado que obtenho dos treinos", conta-nos o atleta.

À chegada à unidade hoteleira, onde o marchador está instalado com a inseparável treinadora e esposa, não nos passa despercebido o número de atletas que nesta altura escolhem o Algarve para projetar a época que aí vem. Em trajes veraneantes e de sorriso no rosto, passeiam-se pelas ruas de Monte Gordo num cenário bem diferente da paisagem pintada de branco do centro-norte europeu.

"Tenho muitos colegas meus na marcha que se deslocam nesta altura do ano ao Algarve para treinar e cruzamos-nos muitas vezes como aconteceu hoje com polacos e franceses. Motiva ter outros atletas cá a treinar."

Ao primeiro contacto com o algarvio encontramos uma personalidade calma, racional e que não descura os pormenores, logo a começar pelo descanso, já que não dispensa as 10 horas de sono diárias. Fundamental, para quem faz treinos bi-diários, que se iniciam de manhãzinha por volta das 8h30.

No olhar do luso, é perceptível uma incrível ambição numa carreira recheada títulos, e que aponta já a mais uma conquista no final de janeiro.

"Vou alinhar nos 35 quilómetros, para tentar ganhar mais um [título de campeão nacional] para o palmarés desportivo."

O menino que quis ser atleta aos 8 anos depois de ver Carlos Lopes conquistar o ouro

Voltando a ampulheta atrás no tempo, regressamos ao verão de 1984. Nesse ano, Carlos Lopes fazia história em Los Angeles com o ouro na Maratona, na primeira vez em que Portugal subiu ao mais alto lugar do pódio em Jogos Olímpicos.

De pé, já de madrugada e em horas impróprias para um menino de 8 anos, a conquista do maratonista português haveria de ter uma enorme influência na futura carreira. Crescia já então o 'bichinho do atletismo'.

"O atletismo começou por um sonho, um sonho que veio de um ídolo que é Carlos Lopes, medalha de ouro da Maratona em Los Angeles."

"O atletismo começou por um sonho, um sonho que veio de um ídolo que é Carlos Lopes, medalha de ouro da Maratona em Los Angeles. Estive acordado até às três da manhã. Eu sempre fui grande fã de atletismo e essa prova foi o que me deu o alento. A partir daí foi o desencadear de um carreira desportiva que está próxima dos 30 anos e é a vida que gosto de ter: Que é competir e trazer resultados para o meu país", recorda.

Na escola não teve grande trajeto e não olhou para trás quando desistiu do liceu para agarrar com as duas mãos a carreira desportiva.

"Era um aluno mediano. Tinha as minhas positivas e negativas. Desisti no 11.º ano. As notas não eram grande coisa. Esse foi o ponto de viragem da minha carreira estudantil. Deixei de estudar para praticar atletismo e não estou arrependido. A minha carreira desportiva está recheada de sucessos e sinto-me realizado pelo que conquistei até hoje."

"Desisti da escola no 11.º ano. As notas não eram grande coisa. Esse foi o ponto de viragem da minha carreira estudantil. Deixei de estudar para praticar atletismo e não estou arrependido."

A marcha surgiu logo aos 13 anos. Quando era júnior fazia meias-maratonas, provas de corta-mato e provas de pista. Acabou por abraçar em exclusivo uma modalidade que pela sua dureza nem sempre pisca o olho aos mais jovens.

"A marcha atlética é um desporto de sofrimento. Temos que fazer grandes volumes de treino e os jovens, neste momento, não estão virados para esse caminho."

A rivalidade com o irmão gémeo dentro das pistas

Durante o seu percurso, na subida à elite da marcha portuguesa teve durante muitos anos, no irmão gémeo, o grande adversário. Ligados pelo sangue, mas adversários nas pistas, um no Sporting e o outro do Benfica, João Vieira conta que durante a competição a relação entre ambos era tudo menos pacífica.

Revista do ano 2019: Outubro
Revista do ano 2019: Outubro João Vieira corta a meta em segundo lugar na prova da marcha créditos: AFP

"Não podemos dizer que era uma rivalidade saudável, porque quando éramos adversários raramente conversávamos. Mais tarde, eu fui para o Sporting e ele foi para o Benfica e nós os dois é que dávamos espectáculo nas provas de marcha. Foi um momento difícil, mas isso ultrapassa-se quando acaba a carreira de atleta. Afinal de contas somos irmãos e vamos ser irmãos até ao final da nossa vida."

O fim da carreira mais precoce no caso de Sérgio Vieira, acabou por ditar a aproximação e a ligação reforçou-se novamente.

"Agora já não somos adversários. Encontramos-nos em família, o meu irmão é padrinho da minha filha. No ano passado fiz uma prova de 50 quilómetros e ele foi o meu apoio na mesa de abastecimento."

A relação entre João Vieira e a treinadora / esposa

A vida de João Vieira sempre foi a respirar atletismo. Foi lá onde fez amigos e acabou por encontrar a pessoa com quem divide a vida, a mulher Vera.

"Estávamos os dois no mesmo clube, que era o clube de natação de Rio Maior. Ela era marchadora e eu também. Estávamos dentro do mesmo grupo e começamos a namorar."

Encontrar uma companheira no atletismo acabou por ser o desfecho ideal tendo em conta os sacrifícios da profissão. Uma filosofia de vida que nem sempre é compreendida por quem está 'fora da bolha' e não entende o amor pela profissão.

"É difícil para uma companheira entender os sacrifícios necessários que se fazem pela modalidade que nós amamos. Eu não ia a discotecas, não saia com os meus amigos. Tendo uma companheira que também praticava atletismo facilitou"

"É difícil para uma companheira entender os sacrifícios necessários que se fazem pela modalidade que nós amamos. Eu não ia a discotecas, não saia com os meus amigos. Tendo uma companheira que também praticava atletismo facilitou. Íamos os dois para os mesmos estágios, para a mesmas competições. Estávamos sempre juntos e assim é muito mais fácil superar", atira.

Da relação nasceu a filha Sofia, agora com 20 meses, motivo que serviu para juntar a família, que anda muitas vezes distante.

"Praticamente não estou com a família. Passo muito tempo fora de casa. Por acaso antes do Campeonato do Mundo do ano passado fiz o batizado da minha filha e consegui juntar a família."

Com a experiência de muitos anos adquirida na estrada, e já com atletas ao seu cargo, incluindo na altura a sua mulher Vera, João Vieira optou a dada altura por começar a treinar-se sozinho, decisão que acabou logo por dar frutos: "Logo um mês depois fiquei em 8.º numa Taça do Mundo, resultado que nunca tinha atingido. Ainda hoje, ainda estou a aprender a introduzir coisas novas no meu plano de treinos. A Vera também era minha atleta e foi fácil ultrapassar essas dificuldades", recorda.

Na marcha atlética há duas regras fundamentais: Os atletas não podem ter o joelho dobrado no momento em que atacam o pé ao solo até passar a vertical do tronco; os atletas têm que ter sempre um pé no solo.

Findo esse período, inverteram-se os papeis e passou a ser a mulher a assumir as rédeas do treino.

"Ela [Vera Santos] sabe o que é que um atleta sofre na marcha. Ela foi uma excelente atleta e nós estávamos a ter um percurso em conjunto. Sabia que com a ajuda dela, determinadas situações seriam muito mais fáceis e por isso, ela passou a ser a minha treinadora. Está neste momento a planear a minha época, os meus treinos e isso tem trazido resultados", refere.

Apesar de passarem praticamente todo o tempo juntos, nem isso aumenta a tensão de um casal que trabalha como uma equipa, tanto a nível pessoal como profissional.

"As coisas são fáceis porque somos uma equipa que consegue ultrapassar as dificuldades que encontramos no nosso caminho."

"As coisas são fáceis porque somos uma equipa que consegue ultrapassar as dificuldades que encontramos no nosso caminho. Ela compreende as minhas dificuldades e puxa por mim para eu ultrapassar essas dificuldades."

Vera Santos
Vera Santos Vera Santos, esposa e treinadora de João Vieira. @SAPO Desporto

A treinadora também confessa que é fácil gerir os momentos de tensão, já que conhece o marido como ninguém.

"É muito fácil separar as águas. Todos trabalhamos para o mesmo objetivo, queremos o máximo de sucesso. É muito fácil trabalhar com ele. O único problema é quando as coisas não estão a correr bem, ele poderá dar uma resposta menos boa. Mas eu também já o conheço, também sei interpretar", explica.

A aposta nos 50 km de marcha

Com preferência pelos 20 km de marcha, mas com os anos de competição a começarem a pesar nas pernas, o atleta virou definitivamente baterias para os 50 quilómetros e não se arrepende da escolha.

"Não posso negar que os 20 quilómetros foi sempre a minha prova de eleição, mas tenho consciência que a prova de 50 km é que me pode trazer melhores classificações a nível mundial e daí a minha aposta. A minha velocidade não é mesma".

Mesmo nos 50 quilómetros, a adaptação não foi fácil. A imensidão da distância pode fazer com que tudo saia ao contrário do planeado.

"Como costumamos dizer: o mais difícil nos 50 quilómetros é treinar para os 50 quilómetros."

"Com esta idade treinamos bem, mas depois no dia da prova as coisas podem acontecer ao contrário. Os 50 quilómetros são um bico de obra: A preparação pode correr bem e a prova pode correr mal. Mas, como costumamos dizer: o mais difícil nos 50 quilómetros é treinar para os 50 quilómetros."

Rio 2016: 20 km marcha João Vieira
Rio 2016: 20 km marcha João Vieira O atleta português João Vieira, em ação na prova dos 20 km marcha dos Jogos Olímpicos Rio 2016, disputada no Rio de Janeiro, Brasil, 12 de agosto de 2016. A XXI edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna, decorrem no Brasil entre os dias 06 - 21 de agosto. ANTÓNIO COTRIM/LUSA créditos: Lusa

E o que é facto, é que a realidade acabou por confirmar essas dificuldades. As primeiras tentativas nos 50 km marcha nos Jogos Olímpicos acabaram por resultar em desilusão, com inúmeras desistências, como aconteceu por exemplo em Londres em 2012 e no Rio em 2016.

"Em Londres, houve um momento em que me 'passei-me da cabeça' e não consegui concluir a prova, acabei traído pela emoção. No Rio de Janeiro realizei a prova dos 20 km, onde fiquei em trinta e tal. Tive um problema de saúde, que não consegui debelar. E durante a prova dos 50 km, tive falta de ar e tive que desistir", recorda.

Uma questão que tem dividido a disciplina e a opinião pública é a aprovação ou não da distância dos 50 km marcha na vertente feminina nos próximos Jogos Olímpicos. Alguns consideram discriminatório apenas haver 50 km na marcha masculina. Outros argumentam com questões de ordem fisiológica e desportiva como é o caso de João Vieira.

"É legítimo elas querem correr essa prova [50 km marcha]. Mas não concordo porque os 50 km são um sofrimento bastante grande para as mulheres"

“É legítimo elas querem correr essa prova [dos 50 km marcha]. Mas não concordo porque o nível das mulheres em relação aos homens ainda é bastante baixo. Se for para a frente, certamente vão retirar 10 lugares aos homens nos 50 km. Não concordo porque os 50 km são um sofrimento bastante grande para as mulheres, concordo se houver uma prova de 35 km”, atira.

A preparação para os Mundiais de Atletismo em Doha, no Qatar

Para a prova em Doha, no Qatar, a preparação fez-se com pinças. Para lidar com as altas temperaturas, João Vieira treinou-se em Coimbra, numa sala térmica que simulava as condições que iria encontrar: Com temperaturas entre os 32 e os 35 graus e uma humidade de 70%. Outra questão a ter em conta foi a dos horários: Com a prova a iniciar às 23h30, o atleta teve que fazer a adaptação, com sessões noturnas, chegando ao Qatar cinco dias antes da prova dos 50 quilómetros.

"Eu às 22h00 já estou deitado porque normalmente acordo todos os dias às 8h30 da manhã para ir treinar. Se não fizesse aquela adaptação, o meu corpo iria adormecer durante a competição."

"Eu às 22h00 já estou deitado porque normalmente acordo todos os dias às 8h30 da manhã para ir treinar. Eu e a minha treinadora tivemos que fazer sessões noturnas, com treinos a partir das 11h00 até à 00h00, 00h30, para o meu corpo estar adaptado àquela competição. Se não fizesse aquela adaptação, o meu corpo iria adormecer durante a competição."

Bonés, um pano e um saco de gelo abriram caminho para a prata em Doha

Com o calor e humidade da capital do Qatar, um dos truques seria refrescar o corpo com gelo de forma a sobreviver ao inferno de Doha.

"Tinha dois bonés que foram preparados para essa competição. Fazia troca de boné, volta a volta. Tinha quatro bolsas dentro do boné para colocar gelo, e refrescar a cabeça. Desde o pano que era para por à volta do pescoço para arrefecer", explica.

A vitória tática de João Vieira

Começou devagar, devagarinho na prova dos 50 quilómetros. Aos 20 km, era apenas 13.º. Mas fazia tudo parte da gestão tática do atleta luso. "A minha treinadora decidiu que eu tinha que fazer uma prova calma desde o início. Fui para a prova trabalhando com a margem de pulsação que fiz nas provas anteriores e por isso é que a prova saiu bem."

No dia da prova, o atleta acordou a pensar que tinha metade da idade e a acreditar que podia fazer grandes feitos.

"Eu quando acordo de manhã, muitas vezes penso que ainda sou um jovem. Até a nível de treino, as coisas saem muitas vezes perfeitas. Só tenho que acreditar na minha cabeça que isso é verdade e por isso as coisas têm-me saído bem."

Num misto de emoção, João Vieira só em sonhos pensaria em conquistar a prata nos Mundiais, numa conquista que soube a ouro.

"Só em sonhos eu poderia pensar que poderia ganhar uma medalha. Tentei preparar-me o melhor possível. A minha treinadora esteve ao meu lado a 100%. Tive um psicólogo que trabalhou comigo e um fisiologista de esforço. As coisas correram bem. Nós sabíamos que não seriam os melhores atletas a ganhar as medalhas em Doha. Os atletas que se adaptaram melhor às condições foram os trouxeram as medalhas", analisa.

Quando subiu ao pódio e com a bandeira portuguesa aos ombros, o português lembrou-se de todos os problemas que o tinham assolado ao longo do ano, não esquecendo o problema de saúde da esposa que a levou a estar internada no hospital.

"A minha esposa teve um problema de saúde, esteve uma semana internada num hospital. Todos os dias ia visitá-la e era durante a altura dos Campeonatos de Portugal, mas como eu sou um profissional fui competir e ganhei a competição, mas a minha cabeça estava um pouco perdida nessa altura, foi um momento difícil", relembra.

O atleta mais velho de sempre a conquistar uma medalha em Mundiais de Atletismo

Foi no dia 29 de setembro de 2019 que João Vieira viveu o momento mais alto da carreira no estádio Khalifa, em Doha. A medalha de prata foi o prémio merecido para uma vida dedicada à marcha. Para além do galardão, o português tornou-se no atleta mais velho de sempre a conquistar um medalha em Mundiais, com 43 anos.

As melhores imagens do terceiro dia dos Mundiais de Atletismo
As melhores imagens do terceiro dia dos Mundiais de Atletismo João Vieira com a bandeira portuguesa em Doha, no Qatar. MUSTAFA ABUMUNES/AFP créditos: Lusa

"Esta medalha em Doha considero a medalha da minha carreira desportiva, por toda a minha dedicação. É a medalha da minha carreira, porque ganhar uma medalha num Mundial é muito difícil. Ainda por cima ao ser o atleta mais velho da história."

Para os jogos de Tóquio, onde vai competir exclusivamente nos 50 km, e já nessa altura com o peso dos 44 anos, João Vieira promete "fazer o melhor naquele dia" até porque a "comunicação social" nunca o dá "como possível medalhado".

"Jogos Olímpicos de Tóquio? Não vou prometer medalhas a ninguém, não vou prometer lugares a ninguém. Vou trabalhar o melhor possível, com a minha treinadora para chegar lá e fazer um bom resultado.

"Não vou prometer medalhas a ninguém, não vou prometer lugares a ninguém. Vou trabalhar o melhor possível, com a minha treinadora para chegar lá e fazer um bom resultado. Muita gente já me disse que Sapporo [local onde irá decorrer a prova] não será o local ideal para mim. Vou trabalhar o máximo possível para atingir um grande resultado."

Com o fim dos 50 km marcha no horizonte em 2021, o atleta já planeia deixar nesse ano o atletismo, decisão que no entanto ainda não está tomada.

"Não é uma decisão irreversível. Em 2021 vamos analisar se vamos continuar ou não. Também vai depender do panorama na marcha atlética", finaliza.