Sabia que no final de janeiro, entre os dias 20 e 26 se realizou em Odivelas o Campeonato da Europa de Jiu-Jitsu?
Deste 2004 que Portugal é a casa de um dos maior eventos da modalidade organizado em parceira entre a Federação Portuguesa de Jiu-Jitsu Brasileiro e a IBJJF (International Brazilian Jiu-Jitsu Federation) a maior Federação do Mundo.
A 'arte suave' ganhou nos últimos anos muito admiradores e é hoje um dos desportos de combate em maior expansão em todo o mundo.
"O jiu-jitsu é a arte marcial que mais cresce cá em Portugal, e cada vez mais se pratica. Cada vez mais os pais têm a noção o quanto é importante os seus filhos praticarem jiu-jitsu. Não é só chão, temos que dominar, sabermos estar em posições em que somos dominados. Todos podem praticar. O jiu-jitsu é como se estivéssemos a jogar xadrez. É uma arte muito inteligente", começa por nos contar Nelton Pontes, uma das lendas dos jiu-jitsu português.
"O jiu-jitsu é como se estivéssemos a jogar xadrez"
O xadrez e o jiu-jitsu são de facto uma analogia bastante forte, já que o praticante em cada luta tenta resguardar a cabeça, as pernas, os braços e o quadril à semelhança do jogo de tabuleiro.
Já passaram 16 anos desde que Portugal foi o país escolhido para ser, por um mês, o centro de uma modalidade desenvolvida pela família Gracie no Brasil, considerados os pais fundadores do Jiu-Jitsu. Em conjunto desenvolveram uma técnica em que o lutador mais fraco poderá derrotar o mais forte.
"Não tínhamos muitas expetativas para atrair estrangeiros, já que se tratava do mês de janeiro, numa altura de inverno, mas tivemos um crescimento exponencial", recorda Augusto Silva, Presidente da Federação Portuguesa de Jiu-Jitsu brasileiro e um dos organizadores da prova.
Quase duas décadas depois da primeira edição, a organização teve que "fechar as inscrições" antes do previsto, batendo todos os recordes. "Este ano tivemos mais de 20% de inscritos e tivemos que encerrar as inscrições aos 5000 atletas."
A ligação simbiótica entre o Jiu-Jitsu e o MMA
Foi em 1993, que Royce Gracie - da família que está na génese do Jiu-Jitsu -, se tornou no primeiro lutador a vencer a primeira luta organizada UFC. Para quem não sabe, a grande ferramenta do MMA ou Mixed Martial Arts é o Jiu-Jitsu. "Nos primórdios do desenvolvimento da arte, o Jiu-Jitsu conseguiu vencer todas as outras modalidades. Contra o boxe, Taekwondo, Karaté. Contra todas, mostrou a sua superioridade. Com a visibilidade destes combates, todo o mundo ficou a perceber a importância do jiu-jitsu.”, explica-nos Nelton Pontes, antes de estabelecer fronteiras entre os dois.
"Muitas pessoas confundem o Jiu-Jitsu com o MMA. O MMA envolve todas as modalidades de combate. O jiu-jitsu envolve uma luta corpo a corpo, que pode ser no chão e termina quando o atleta é finalizado ou acaba o tempo.”
Jiu-Jitsu, arte sim, violência não
Sim, meu caro leitor. Aqui não há socos, não há pontapés, não há golpes baixos. A má publicidade de que por vezes a modalidade é alvo, descrita por alguns que nada sabem sobre ela, como uma actividade violenta, em não condiz em nada com a filosofia da arte.
"Um criminoso é um criminoso. Não se pode associar o comportamento das pessoas, com o desporto que se pratica"
"Pensamos que houve uma falta de conhecimento das pessoas. Às vezes víamos notícias que de que o atleta de Jiu-Jitsu fez isto ou fez aquilo, mas podia ser um atleta de futebol, ou de uma outra profissão qualquer. Um criminoso é um criminoso. Não se pode associar o comportamento das pessoas, com o desporto que se pratica", justifica Augusto Silva.
Como cresceu o Jiu-Jitsu em Portugal?
Mas afinal porque é que o Jiu-Jitsu teve e está a ter tanta implantação em Portugal? No início dos anos 2000, a vaga de emigração de brasileiros para o nosso país contribuiu para que mais professores quisessem melhorar as condições de vida das suas famílias dado o contexto sócio-económico em ‘Terra de Vera Cruz’. Houve um intercâmbio grande, com a abertura de escolas, e o trabalho desenvolvido nos últimos anos começou a dar frutos.
Manuel 'Nelton' Pontes, agora com 33 anos, foi um dos primeiros a desbravar esse caminho, no que aos portugueses diz respeito. O encontro com o 'Tatami' aconteceu quase por acaso na vida do atleta da Amora, localidade na margem sul do Tejo.
"Ia a passar na rua e convidaram-me para fazer jiu-jitsu. Fui treinar e senti-me bem."
O atleta que compete na categoria dos Super Pesados (mais de 100 quilos) relembra uma lição de humildade que recebeu mal começou a praticar Jiu-Jitsu. Recorda o dia em que percebeu que a força física e o peso não são decisivos para se ser dominante nesta arte marcial.
"Logo ao início [quando comecei] um atleta que era mais pequeno do que eu, mais magro do que eu, deu-me a volta e venceu-me e eu questionei-me: 'Como é que é possível?'
"Logo ao início [quando comecei] um atleta que era mais pequeno do que eu, mais magro do que eu, deu-me a volta e venceu-me e eu questionei-me: 'Como é que é possível'. Fui para casa com esse pensamento e pensei: 'Não vou desistir enquanto não conseguir dar a volta àquele atleta. Fui continuando e fui-me apaixonando pela arte", conta.
Com uma carreira recheada de sucessos, com destaque para o pódio num Mundial da IBJJF, - é aliás o único português a tê-lo conseguido -, a que se somam mais dois títulos em campeonatos da Europa, o atleta sente-se "um privilegiado" por ter conquistado o que conquistou.
As graduações no Jiu-Jitsu, do nível mais baixo ao mais alto: faixa branca, azul, roxa, castanha e preta
"Sinto-me um privilegiado por ter conquistados vários títulos internacionais, fui o primeiro português a conseguir esses feitos e acredito que consegui abrir muitas portas e sinto-me muito feliz por isso", refere.
E os que se seguiram bem se podem apelidar de geração de ouro. Pedro 'Paquito' Ramalho, Guilherme Jardim e Bruno Lima são já alguns dos nomes grandes do jiu-jitsu português.
Puxando o filme atrás, antes da prova em Odivelas fomos falar com alguns dos representantes desta geração, começando por uma rivalidade que tem apaixonado a modalidade em Portugal: A de Guilherme Jardim e Bruno Lima, lutadores da equipa 'Focus' e da 'Alex Machado Academy' , respetivamente.
"Às vezes fica aquela azia”, começa por nos dizer Bruno Lima. "No início ficava muito afetado quando perdia, agora acho que lido muito melhor com isso. Estou sempre pronto para tudo: Para ganhar, para perder, o que interessa é mesmo evoluir. Às vezes havia uma boca ou outra e estamos a falar de alguns anos atrás, agora já nem isso. Eu e ele somos profissionais, e agora já nem há bocas nem nada. Estendemos a mão e segue-se em frente", atira.
"É uma rivalidade só dentro dos tatamis. Nós já lutámos 16 ou 17 vezes, é a maior rivalidade do jiu-jitsu, mas é só por isso que as pessoas falam disso. Não tenho rivalidade nenhuma fora”, confirma-nos Guilherme Jardim.
"Eu fazia musculação e lanchava a ver os treinos de jiu-jitsu. Comecei a treinar duas vezes por semana, mas agora faço disso vida."
O nortenho deu os primeiros passos na modalidade com 17 anos e nunca mais quis parar. "Eu fazia musculação e lanchava a ver os treinos de jiu-jitsu. Comecei a treinar duas vezes por semana, mas agora faço disso vida", recorda o atleta que para além de lutar, dá aulas e tem uma marca de equipamentos.
Isto porque em Portugal, à semelhança de muitas outras modalidades, ser atleta de alto nível não é suficiente para pagar as contas.
"Para pagar todas as suas contas, não. Em Portugal ainda não existe essa possibilidade. É possível viver do Jiu-Jitsu a dar aulas, a gerir uma Academia. Como professor e dono de escola sim. Como atleta, ainda não. Não existem muitos patrocínios e as equipas não conseguem pagar salários aos seus atletas. O jiu-jitsu não alimenta milhões. Assim fica difícil aos patrocinadores investirem forte", explica Nelton, que para além de atleta é professor.
Com os atletas a terem que pagar muitas vezes as inscrições em campeonatos do próprio bolso, qual é então a principal motivação? O mérito e a vontade de superação, como nos explica Guilherme Jardim.
“Eu por acaso não paguei, já que fui campeão nacional e um dos prémios foi ter garantida a inscrição no Europeu [de Odivelas]. Os outros atletas que pagam têm como motivação a adrenalina e o mérito. É um evento com cinco mil pessoas inscritas, de todas as faixas, de todos os pesos e de todas as idades e traz-nos muita felicidade poder pensar em alcançar os primeiros lugares.", conta-nos o atleta que sonha ser campeão em todas as faixas.
Se no futebol, por exemplo, se olha para os Ronaldos e Messis, no Jiu-Jitsu o portuense confessa não ter ídolos, o herói esse mora em casa.
Guilherme Jardim já foi Campeão Mundial em faixa azul
"Não tenho ídolos. Há pessoas que sigo com mais atenção em relação àquilo que fazem mas ídolo não tenho nenhum. Se tenho um ídolo na minha vida é o meu pai."
O MMA como chamariz para os campeões do Jiu-Jitsu
O que é que afinal leva os campeões do Jiu-Jitsu a experimentarem o MMA e a almejarem chegar a patamares como o UFC? As razões financeiras e mediáticas têm aqui um peso importante. A diferença está num factor evidente: O jiu-jitsu é ainda um desporto amador, enquanto que o MMA é um desporto profissional, mas que no entanto está intimamente ligado à arte marcial brasileira.
"O MMA tem como base o Jiu-Jitsu, os atletas depois desenvolvem o jogo em pé. É o caso da Mackenzie Dern, foi campeã mundial várias vezes e agora está no MMA,”, refere Augusto Silva, que não tem dúvidas que o mediatismo da milionária UFC ajuda o Jiu-Jitsu.
"Claro que ajuda e vê-se bem quem é que treina jiu-jitsu e quem não treina. Se nós tivermos dois bons 'strikers', um que tenha bom chão vai com certeza ter uma grande vantagem.”
Conor McGregor, uma das fíguras de proa do UFC, é faixa roxa em Jiu-Jitsu. "Não continuou é a treinar, mas claro que ele sabe de chão, não tem como preferência o chão porque parou de treinar", atirou.
Para já os campeões portugueses, não olham para o MMA como um rumo para a carreira, até porque as lesões podem não compensar a mudança.
Bruno Lima chegou a experimentar o MMA, na 'Lions UFC' da Suíça, mas o 'bichinho' fê-lo voltar ao Jiu-Jitsu.
"A minha paixão é o Jiu-Jitsu, obviamente que gostei muito das lutas que fiz. Gostei de representar o desporto dentro da 'cage', mas o meu foco é o jiu-jitsu. Há lesões em todos os desportos, mas não levamos pancada na cabeça como no MMA e a esse nível é melhor."
"Há lesões em todos os desportos, mas não levamos pancada na cabeça como no MMA e a esse nível é melhor."
Guilherme tem a noção de que no MMA se pode "ganhar dinheiro a sério", mas lembra que o Jiu-Jitsu é possível "praticar-se até aos 50, 60 anos", o que não acontece no MMA.
Sábado – 25/01/2020 - Quisemos confirmar e sentir o ambiente do Pavilhão Multiusos de Odivelas. O cartaz era mais do que apelativo com nomes como Keenan Cornelius, Bruno Malfacine, Mahamed Aly, Mayssa Bastos e Claúdia do Val a serem os grandes cabeças de cartaz. Também a nível de portugueses, Nelton Pontes, Pedro "Paquito" Ramalho, Guilherme Jardim e Bruno Lima partiam com ambições redobradas para a prova portuguesa.
Tínhamos sentido um 'cheirinho' da competição em conversa ao telefone com o presidente da Federação, Augusto Silva.
"Este barulho que está aqui a ouvir [palmas e ovação]…neste momento um atleta de 70 quilos acabou de finalizar um atleta com 160 quilos (na categoria de absolutos, onde não há distinção de pesos)", é esta a magia do Jiu-Jitsu.
O dia escolhido foi sábado. Pavilhão cheio, kimonos de todas as cores, representando várias Academias, misturavam-se no Tatami, no meio das lutas cronometradas ganhas por submissão ou aos pontos.
Cruzámos-nos com Nelton durante o Campeonato da Europa em Odivelas, um dia depois do atleta ter adicionado mais um título à sua carreira, ao sagrar-se campeão europeu em Masters 1 (categoria para atletas com mais de 30 anos).
Na conversa a meio da semana já tinha vincado a sua vontade em fazer coisas positivas "perante o caloroso público português."
"Quando comecei a minha preparação, era para lutar em adultos [Categoria até aos 30 anos]. Mas como tive pouco tempo para me preparar, aconselharam-me a lutar nos Masters. O risco de lesionar não seria tão grande."
O Campeonato Europeu acabou por ser muito positivo para as cores portuguesas. A somar-se à medalha de ouro de Nelton, Portugal averbou ainda dois títulos de vice-campeão europeu.
O portuense Pedro 'Paquito' Ramalho conquistou a medalha de prata nos pesos médios, ao ser derrotado só na final pelo norueguês Tommy Langaker por finalização por estrangulamento, quando o português estava a ganhar por 4-2 nos pontos.
Já Bruno Lima também arrecadou o segundo lugar, ao ser finalizado, também por estrangulamento na final na categoria acima, peso médio pesado, para o brasileiro Manuel Ribamar.
"Tinha o objetivo de ser campeão da Europa. Na luta contra o Manuel Ribamar, senti um estalar nas costas e acabei por desistir, mas fiquei contente com o resultado", afirmou Bruno Lima.
Pelos resultados, pelo aumento de número de praticantes, e pelo já tradicional Campeonato Europeu, a modalidade em Portugal tem tudo para continuar a evoluir, haja para isso dedicação suficiente à 'arte suave'.
"Se os atletas tiverem boa alimentação, bons preparadores físicos, se forem dedicados vão também conseguir atingir os seus objetivos. Nós aqui em Portugal juntamente com a comunidade emigrante, africanos, brasileiros, pessoal do leste, somos todos muito competitivos e acabamos por elevar o nível das academias. E também pelo facto do Campeonato da Europa ser desde sempre em Portugal, isso também tem grande impacto", analisa Nelton Pontes.
Para quem ainda tem dúvidas sobre se deve ou não praticar jiu-jitsu ou se deve colocar os seus filhos nesta modalidade, Guilherme Jardim esclarece de que forma esta arte marcial faz evoluir o corpo e o espírito.
"É um desporto nada violento. É saudável para as pessoas que treinam duas a três vezes por semana. Dá para desanuviar a cabeça do trabalho, da família, do stress. É um desporto que dá para começar muito cedo, a partir dos cinco, seis anos. Temos atletas de 60 anos que treinam de segunda a sábado. É um desporto para todos. Tem o aspeto de defesa pessoal, as pessoas ficam mais confiantes. Os que são tímidos deixam de o ser tanto, porque tem que haver contacto físico, temos que falar com as outras pessoas para conseguirmos evoluir e acho que ajuda", atira.
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