Mais de 20 anos depois, a karateca portuguesa mais medalhada de sempre e campeã nacional por 15 vezes, Patrícia Esparteiro, despediu-se este fim de semana da competição na K1 Premier League, em Matosinhos, terra em que nasceu.

“[A despedida neste torneio] Foi coincidência, porque não era suposto acontecer em Matosinhos. Mesmo a trabalhar, fiz um esforço e terminei a carreira em ‘casa’, porque é bom ter aqueles que sempre estiveram comigo neste processo de há muito tempo: família, amigos, colegas, os meus atletas, foi um bom momento para terminar. Claro, sem expectativas de pódio, mas para desfrutar”, afirmou a número 30 do ‘ranking’ mundial de ‘kata’, em entrevista à agência Lusa.

Começou na modalidade aos seis anos praticando as duas disciplinas – ‘kata’ e ‘kumite’ –, venceu o seu primeiro campeonato nacional de ‘kata’ com nove anos, no escalão de infantis, e, em 2009, foi chamada à seleção nacional, dedicando-se “a 100%” a essa disciplina daí para a frente, uma escolha que lhe valeu seis medalhas europeias.

Agora, com 27 anos, despediu-se do ‘tatami’ e ditou o sorteio que o seu último duelo fosse com “uma referência e atleta excecional”, a vice-campeã olímpica em Tóquio2020, a japonesa Kiyou Shimizu, numa retirada anunciada logo após vencer o 15.º campeonato nacional, em março, altura em que apanhou toda a comunidade de surpresa.

Pelo meio, licenciou-se em enfermagem em 2016, sem que tenha exercido porque “bastava dizer que era atleta de alta competição” que as portas se fechavam. Acabou por aceitar empregos noutras áreas, mas “depressa se tornou evidente” que teria que se dedicar totalmente ao desporto, algo que se tornou mais fácil depois de integrar o projeto olímpico para Tóquio2020.

“Chegar ao topo é fácil, o mais difícil é manter esse estatuto. Tive anos menos bons, outros melhores, os dois anos que tive de estágio na faculdade foram muito difíceis de gerir, fazia os horários dos enfermeiros tutores e foi a pior época pessoal e em termos de resultados desportivos. Mas mantive a motivação, sempre gostei disto, dava-me prazer e foi por causa de tudo aquilo que me proporcionava que me motivou estes anos todos”, indicou.

A ‘reforma’ da competição aconteceu por “um misto de fatores”: recebeu uma oportunidade “muito boa” de trabalho que “caiu do céu”, a saída do karaté do programa olímpico, que se traduz numa perda de apoios, a incerteza do futuro profissional com um “diploma na gaveta” e a renovação da seleção nacional.

“Foi um conjunto de tudo, quando apareceu a proposta nem pensei duas vezes. Ainda por cima na área que queria, medicina estética, uma oportunidade única, com qualidade de vida. Além de já não ter muitas pessoas na seleção que, entretanto, foram saindo. Eu era uma das mais velhas da seleção e já me questionava, também para dar espaço a outros. Vi muita gente a sair e eu a ficar. Faltaram-me essas pessoas com quem me identificava e eram um fator de motivação”, revelou.

No entanto, este não é um adeus à modalidade. A matosinhense vai continuar a dar aulas no seu clube, não o que representa [Sporting de Braga], mas no Wolfpack, em Matosinhos, no qual dá aulas a uma turma de competição com atletas que integram a seleção nacional e podem competir no próximo campeonato europeu de cadetes e juniores.

“Quero ficar ligada ao karaté, nem que seja na prática ou com os meus atletas. Não é um ponto final dramático, vou praticando, mas em termos competitivos abandono. Até porque não me sinto bem. Se é para competir tenho de estar a 100%, tenho que me dedicar e fazer tudo bem feito. Portanto, não me sinto bem em aparecer sem ser no meu melhor, prefiro colocar um ponto final na competição e praticar sem pressão”, apontou.

Ao mesmo tempo, vê “muita matéria-prima” para motivar na nova geração de atletas da seleção e defende que deve ser feita uma aposta “na renovação” da equipa, porque há “muita gente com muita qualidade, mas é preciso investir neles” e pediu um maior carinho para as gerações que ficaram para trás.

“Olha-se para os modelos internacionais e despreza-se o produto nacional, mas também temos qualidade e menos condições do que os de fora. Espero que façam mais e melhor do que fiz, espero ter passado essa mensagem, principalmente a raparigas. Este é um desporto que era muito associado a rapazes, mas agora já não é bem assim. Era um mito, temos que o desfazer. E quero ajudar, podem vir falar comigo e questionar, no que puder vou estar cá sempre”, vincou.

Sem o karate-gi, Patrícia Esparteiro tem agora uma nova estrada para andar, para trás fica por concretizar o sonho olímpico e a certeza de que ajudou a quebrar estigmas.

“As raparigas que praticam este desporto geralmente têm um ar ‘másculo’ e não é necessário. Sou muito feminina, maquilho-me, faço penteados, tudo conta. Na ginástica fazem-no e nós também o podemos fazer. Quando comecei na seleção não tinha modelos a seguir, seguia atletas estrangeiras, mas reparei que nos fomos aprimorando. Agora há raparigas de 10 anos que gostam de se arranjar para competir. Tenho a certeza que estimulei uma visão um pouco diferente do karaté”, finalizou.

*** André Guerra, da agência Lusa ***