Maior evento desportivo do mundo, os Jogos Olímpicos são associados à excelência desportiva mas, ao longo da História, foram muitos os Jogos marcados por momentos de enorme significado cultural, socioeconómico e, claro, político.
O Comité Olímpico Internacional (COI) anunciou antes dos Jogos Olímpicos de Tóquio que esta sexta-feira terão a sua cerimónia de abertura novas diretrizes que proíbem os atletas de levarem a cabo quaisquer tipos de manifestações e protestos políticos, religiosos ou étnicos. Os Jogos Olímpicos "não são nem devem ser uma plataforma usada para fins políticos ou outro tipo de difusões", frisou o presidente do COI, Thomas Bach. "A nossa neutralidade política é colocada em causa sempre que alguém tenta usar os Jogos Olímpicos como palco para promover a sua própria agenda, por mais legítima que ela seja", acrescentou.
A verdade é que ao longo dos tempos desde o seu renascimento, para a Era Moderna, os Jogos Olímpicos foram frequentemente marcados por questões políticas e protestos. Recordamos dez dos mais marcantes.
Boicotes, boicotes e mais boicotes, exclusões e mais exclusões
Ao longo das 31 edições dos Jogos Olímpicos da Era Moderna foram várias as que ficaram marcadas pela ausência de inúmeros países que, por motivos políticos, se recusaram a participar no evento, por se consideraram injustiçados por alguma razão ou por protesto para com o país organizador e as suas políticas. Tratou-se de algo bastante visível, sobretudo, nos tempos da descolonização europeia em África e da Guerra Fria.
Em 1956, por exemplo, Egito, Líbano e Iraque não compareceram aos Jogos de Melbourne em protesto contra a intervenção militar franco-britânica no Canal de Suez. Também nesses Jogos, Espanha, Suíça e Holanda recusaram-se a participar, em protesto para com a presença da União Soviética a repressão desta às manifestações contrárias ao regime em Budapeste. Outra ausência em Melbourne foi a da China, que se retirou devido à presença de uma delegação de Taiwan.
Vinte anos mais tarde, nos Jogos de Montreal 1976, os países africanos recusaram-se a participar no evento. Esse boicote deveu-se à digressão da equipa nacional de râguebi da Nova Zelândia pela África do Sul durante a era do 'apartheid'. As nações africanas exigiram ao COI que excluísse a Nova Zelândia dos Jogos e, face à recusa do COI, 28 países africanos boicotaram o evento.
Nos dois Jogos Olímpicos seguintes verificaram-se os boicotes 'cruzados' aos Jogos de Moscovo 1980 - pelos americanos e uma parte de seus aliados, devido à invasão do Afeganistão pela União Soviética - e aos Jogos de Los Angeles 1984 pelo bloco soviético.
Para lá dos boicotes, houve também lugar a várias exclusões de países em algumas edições. Os países derrotados da I Guerra Mundial (Alemanha, Áustria, Hungria, Turquia, Bulgária) foram excluídos dos Jogos de Antuérpia-1920 e os derrotados da II Guerra Mundial (Alemanha e Japão) foram excluídos de Londres-1948. A África do Sul foi excluída de 1964 a 1988 por culpa do regime do 'apartheid' e a Jugoslávia, vítima de sanções internacionais, ficou de fora dos Jogos de Barcelona 1992.
A 'Black Power Salute' em plenas Olímpiadas de 1968
Muitos anos antes do movimento 'Black Lives Matter' surgir no mundo do desporto, a questão da discriminação racial esteve em foco nos Jogos Olímpicos de 1968, no México.
Naquele que foi, talvez, a mais evidente demonstração política da História das Olimpíadas, os atletas afro-americanos Tommie Smith e John Carlos, depois de terem conquistado, respetivamente, as medalhas de ouro e bronze nos 200 metros, ergueram os punhos durante a cerimónia do pódio, fazendo a 'Black Power Salute', associada à luta pelos direitos dos cidadãos negros nos EUA, enquanto o hino soava e a bandeira do seu país era erguida.
O protesto teve lugar numa altura em que a luta dos movimentos pelos direitos civis nos EUA estava no auge, com muitos a apelarem aos atletas negros para boicotarem os Jogos. Smith e Carlos optaram, em vez do boicote, por um gesto que trouxe reconhecimento internacional à luta.
Anos mais tarde, Smith vincaria que o protesto foi mais pelos direitos humanos do que em particular pelo movimento 'Black Power', explicando que os três homens no pódio – incluindo o atleta australiano, caucasiano, Peter Norman, segundo classificado - envergaram os emblemas do Projeto Olímpico pelos Direitos Humanos durante essa cerimónia do pódio.
Os Jogos Olímpicos do regime Nazi e o mito da raça superior desmistificado por Jesse Owens
Muitos anos antes, em Berlim, em pleno regime Nazi na Alemanha, em 1936, Jesse Owens tinha deixado outro marco na História dos Jogos Olímpicos e na luta pela igualdade racial. Nuns Jogos que Adolf Hitler pretendia serem um expoente da superioridade da raça ariana.
Mas Jesse Owens, atleta norte-americano negro, estragou-lhe os planos e foi a grande figura desses Jogos Olímpicos de Berlim 1936, ao conquistar quatro medalhas de ouro.
A 'humilhação' foi ainda maior para Hitler ao ver, durante a competição de salto em comprimento, a sua principal estrela, Luz Long, alemão e ariano puro, fazer amizade com Owens e dar-lhe até algumas dicas, depois de Owens realizar dois ensaios nulos. Owens acabaria por conquistar o ouro nesse evento. Long viria a falecer durante a II Guerra Mundial, mas Owens manteve depois o contacto com a família deste por muitos anos após a guerra.
Cathy Freeman e a Austrália 'fazem as pazes' com o passado
A questão da raça e da descriminação de outros povos voltou a estar em destaque nos Jogos Olímpicos de Sidney 2000, com a celebração da igualdade. O país da casa, a Austrália, escolheu a atleta aborígene Cathy Freeman para acender a pira olímpica na cerimónia de abertura dos Jogos.
Freeman era a favorita à vitória nos 400 metros planos nessas Olimpíadas e acabou mesmo por conquistar a medalha de ouro, correndo com um icónico fato treino que lhe cobria a cabeça. Depois da vitória, Freeman deu a volta de consagração ao estádio olímpico com as bandeiras aborígene e australiana às costas (apesar de bandeiras não oficiais como era o caso da bandeira aborígene, se encontrarem banidas pelo COI), como forma de recordar o racismo e a discriminação sofridos durante largos anos pelo povo aborígene na Austrália.
Depois de abandonar as pistas, Freeman abraçou diversas ações de ativismo e solidariedade, tendo sido nomeada Embaixadora da Fundação para a Educação dos Australianos Indígenas.
A breve 'unificação olímpica' das Alemanhas e das Coreias
Os Jogos Olímpicos serviram, também, para unir (ainda que por breves momentos) países divididos. De 1956 a 1964, A República Federal Alemã e a República Democrática Alemã uniram-se como uma só equipa, antes de as tensões políticas crescerem ainda mais e as afastarem em definitivo (até à queda do Muro de Berlim) também no panorama desportivo.
Nas três edições dos Jogos Olímpicos de Verão em que participaram juntas (pelo meio participaram noutras três dos Jogos Olímpicos de Inverno), RFA e RDA totalizaram mais de 100 medalhas. A partir de 1968 as divergências políticas não permitiram, mais, esta união e só em Barcelona 1992 a Alemanha voltaria a participar como nação unificada.
O exemplo de RFA e RDA foi replicado nos XXIII Jogos Olímpicos de Inverno, em 2018, pelas duas Coreias, do Norte e do Sul, com os atletas das duas delegações a entrarem juntos e a marcharem sob um bandeira unificada. Um gesto aplaudido de pé pelos espectadores.
Tragédia em Munique
De duas histórias felizes para aquela que será, certamente, a mais trágica. Estávamos em 1972 e os Jogos Olímpicos de Munique iriam ficar marcados pelo terrorismo.
Numa edição em que a Alemanha (República Federal Alemã, para ser mais exato) procurava mostrar a imagem positiva de um país desenvolvido, que tinha colocado para trás das costas todos os crimes cometidos três décadas antes no regime Nazi, os Jogos acabariam manchados com sangue. Terroristas da facção palestina 'Setembro Negro' invadiram a Aldeia Olímpica e fizeram reféns um grupo de atletas e técnicos da delegação de Israel.
Os criminosos exigiam a libertação de 200 palestinos presos em solo israelita e pediam um avião para fugir de Munique. O governo de Israel não cedeu, as autoridades alemãs ofereceram dinheiro para o resgate e outras saídas diplomáticas, mas nada surtiu efeito. Durante as negociações, um dos reféns foi morto. Depois, numa tentativa de emboscada, a polícia alemã atraiu os sequestradores para o aeroporto e, com os terroristas já na pista, abriu fogo. Os criminosos ripostaram e mataram os reféns. Ao todo, a ação resultou na morte de 11 reféns israelitas, um polícia alemão e cinco sequestradores.
O protesto silencioso de Věra Čáslavská em 1968
Os Jogos Olímpicos de 1968, no México, foram pródigos em eventos políticos antes do seu início e durante o evento, com o mundo em sobressalto pelos protestos estudantis na Europa e o início da Guerra do Vietname, entre outros acontecimentos.
Dez dias antes da cerimónia de abertura, um número incerto de estudantes (há quem fale em dezenas e quem fala em centenas) em protesto contra o facto de o governo mexicano ter gasto dinheiro na organização dos Jogos e não em casas sociais acabou por ser morto, levando a que muitos atletas abdicassem de participar. Depois, já durante o evento, teve lugar a 'Black Power Salute' de Tommie Smith e John Carlos.
E teve ainda lugar outro gesto simbólico de protesto, protagonizado pela ginasta checoslovaca Věra Čáslavská, que se tornou numa heroína do seu país ao, durante a cerimónia de medalhas, virar as costas à bandeira da União Soviética, em protesto contra a invasão da URSS à Checoslováquia. Um protesto silencioso, mas em que uma imagem valeu mais do que mil palavras.
O jogo de pólo aquático que manchou a piscina olímpica de sangue
"O Jogo do Sangue na Água". Foi assim que ficou conhecido o encontro do torneio olímpico de polo aquático entre Hungria e URSS em Melbourne 1956, depois de o jogador húngaro Ervin Zádor ter disputado os dois últimos minutos da partida com sangue a escorrer do olho depois de ter levado um murro do jogador soviético Valentin Prokopov.
A tensão era já grande entre as duas equipas de polo aquático, com os soviéticos a tirarem partido do controlo político que tinham na altura sobre a Hungria para estudarem e copiarem os métodos de treino e as táticas dos húngaros, campeões olímpicos em título. E aumentou quando, pouco antes do início dos Jogos, tanques de guerra soviéticos entraram em Budapeste para reprimir um protesto de estudantes húngaros contra o seu governo.
Os húngaros partiram para Melbourne encarando os Jogos como uma forma de salvarem a honra do seu país e, no dia do encontro de Polo Aquático com a URSS, encontraram uma forma de provocar os soviéticos, cuja língua tinham sido forçados a estudar. Desde o início da partida foram constantes os pontapés e os agarrões entre os jogadores das duas seleções. E, já bem perto do fim, com a Hungria a vencer por 4-0, Zádor trocou algumas palavras com Prokopov e este deu-lhe um murro, deixando-o a sangrar abundantemente. Foi a gota de água num jogo já bem quente, com muitos espectadores (que estavam do lado da Hungria) a saltarem mesmo da bancada para ameaçar os soviéticos. Foi preciso a intervenção da polícia para evitar males maiores.
Judoca iraniano recusa-se a combater com adversário israelita
Arash Miresmaeili era, já, uma glória do desporto iraniano. Campeão do mundo, foi ele o porta-estandarte do seu país nos Jogos Olímpicos de 2004 e, aos 23 anos, era apontado como um dos favoritos a conquistar o título olímpico na categoria de -66 Kg no Judo.
Porém, na primeira eliminatória do torneio olímpico desses Jogos Olímpicos de Atenas deveria defrontar Ehud Vaks, de Israel. Miresmaili acabou por ser desqualificado sem chegar a competir, por exceder o peso limite da sua categoria em mais de dois quilos. Os responsáveis olímpicos estranharam, por não ser normal tal suceder num atleta com a sua experiência. E, de facto, tê-lo-á feito deliberadamente, como ficou depois comprovado pelos seus comentários. "Apesar de ter treinado durante meses para estar em boa forma, recuso defrontar um adversário israelita, por solidariedade para com o sofrimento do povo da Palestina. Não me sinto desapontado por não lutar", afirmou na altura à agência noticiosa IRNA.
Um elemento do Comité Olímpico Iraniano admitiu que era uma "política natural" no Irão evitar competir com atletas israelitas e que Miresmaeili tinha seguido o protocolo do país. Declarações de políticos iranianos seguiram no mesmo sentido e, em declarações à IRNA, o presidente do país, Mohammad Khatami, afirmou mesmo que as ações de Miresmaeili seriam "lembradas na história das glórias do Irão".
COI introduz a Equipa de Refugiados
Antes dos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro, o COI criou uma equipa com o objetivo de conferir visibilidade internacional e ajudar a causa dos refugiados.
Dez atletas refugiados, originários da Séria, Sudão do Sul, Etiópia e República Democrática do Congo foram selecionados para integrar a equipa e cada um deles treinou noutro país que o acolheu (Quénia, Bélgica, Luxemburgo, Brasil e Alemanha). Entraram, depois, na cerimónia de abertura dos jogos ostentando a bandeira Olímpica.
No seguimento do sucesso da iniciativa no Rio 2016, o COI voltou a formar uma Equipa Olímpica de Refugiados (EOR) para participar nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. E, desta feita, essa equipa será composta quase o triplo dos atletas. Ao todo, serão 29, oriundos de dez países (figurando Portugal entre os países de asilo, ao acolher o congolês Dorian Keletela, que vai participar nos 100 metros de atletismo).
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