Três anos de seca de títulos com treinadores nacionais fizeram o Benfica romper com a tradição recente a apostar num técnico estrangeiro. 13 anos depois, os encarnados viravam para fora, acabando com mais de uma década de um registo de técnicos só portugueses. O último estrangeiro a comandar os encarnados tinha sido o espanhol Quique Flores, entre maio de 2008 e junho de 2009.

A aposta recaiu no alemão Roger Schmidt, técnico que estava nos neerlandeses do PSV Eindhoven e que chegou para inverter o ciclo na Luz, com um segundo lugar (2019/20) e dois terceiros (2020/21 e 2021/22) na I Liga, depois do 37.º título, em 2018/19.

O treinador de 55 anos tinha comandado clubes como Beijing Guoan, Bayer Leverkusen, Salzburgo e Paderborn e no seu currículo contava apenas com um campeonato conquistado durante toda a sua carreira, ao serviço do Salzburgo, em 2013/14.

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Além deste título, tinha ganho também uma Taça na Áustria, título que também venceu na China, com Beijing Guoan, e também nos Países Baixos, com o PSV Eindhoven.

Romper com a tradição recente para devolver a glória ao Benfica

Rui Costa assumiu o risco e apostou num técnico conhecido pelo seu futebol ofensivo, caótico às vezes, com uma média de dois marcados por jogo em praticamente todos os clubes em que passou. Com o Salzburgo, Schmidt ultrapassou mesmo a fasquia dos 100 golos numa temporada (chegou 110 no campeonato).

Na sua apresentação, mostrou-se "orgulhoso em ser o novo treinador do Benfica" e prometeu uma equipa a lutar pelo título. Schmidt tinha todos os olhos de Portugal em si, ele que era e é o único técnico estrangeiro no futebol profissional em Portugal, entre Primeira e Segunda Liga.

Das palavras aos atos, logo cedo se viu que este Benfica nada tinha a ver com as últimas versões. O futebol ofensivo entusiasmava, os muitos golos nos jogos empolgavam e crescia nos adeptos cada vez mais crença de um Benfica esmagador, a lutar pela vitória em todos os jogos.

As seis vitórias em outros tantos jogos na pré-época já tinham deixado água na boca dos aficionados encarnados, mas as 13 vitórias nas 13 primeiras partidas oficiais da temporada, incluindo os quatro jogos nas duas eliminatórias que colocaram as águias na fase de grupos da Champions, atestavam isso mesmo: o grande Benfica estava de volta.

Cedo Schmidt deu conta que vencer o campeonato não seria tarefa fácil. O técnico ficou ainda mais convencido da tarefa que tinha em mãos quando viu os rivais FC Porto e Sporting perderem com Rio Ave e GD Chaves, duas equipas que tinham acabado de serem promovidas à Primeira Liga.

"Estou surpreendido com a qualidade da Liga portuguesa, para ser sincero. Já jogámos contra o Casa Pia e foi um jogo muito difícil, apenas consentiram um golo em três jogos. Isso mostra a sua qualidade. E as vitórias do [Desportivo de] Chaves e do Rio Ave contra Sporting e FC Porto mostram que há muita qualidade na Liga […]. Estou surpreendido não tanto com os resultados, mas mais com a prestação das equipas que são novas na Liga e talvez não contem para as equipas de topo", comentou o técnico alemão, em conferência de imprensa de antevisão do encontro com o Paços de Ferreira.

Chegada de craques ajudaram Schmidt a formar equipa difícil de bater

A estratégia de Schmidt foi criar um onze base e confiar nesses jogadores, de forma a também criar rotinas o mais cedo possível, já que a primeira tarefa era apurar a equipa para a fase de grupos da Liga dos Campeões. E conseguiu.

O onze do Benfica era quase sempre o mesmo: Vlachodimos na baliza, Grimaldo e Alexander Bah nas laterais, sendo que à direita o dinamarquês ia alternando com Gilberto. Otamendi começou a época a fazer dupla com Morato, cedeu o seu lugar ao jovem António Silva na 4.ª ronda diante do Boavista e na seguinte, já era o jovem central o seu companheiro à frente da baliza, no lugar do brasileiro que perdeu o posto.

Florentino e Enzo Fernández formaram durante muito tempo a dupla de médios, à frente de João Mário, Rafa Silva, David Neres e Gonçalo Ramos.

Para atacar a época, a SAD liderada por Rui Costa, que assumiu a presidência do clube após o afastamento de Luís Filipe Vieira, envolvido em vários casos na justiça, deu ao técnico as armas que precisava para derrotar o FC Porto.

Alexander Bah chegou do Slavia Praga a troco de 8 milhões de euros para ser titular na direita; Enzo Fernández veio do River Plate por 20 milhões de euros para ser um dos pilares do meio-campo (até ser vendido em janeiro, passado cinco meses, por 121 milhões de euros), David Neres, internacional brasileiro de 25 anos que brilhou no Ajax, veio por 15 milhões de euros do Shakhtar. E ainda Fredrik Aursnes, que chegou do Feyenoord por 13 milhões de euros, numa das melhores compras do Benfica.

A chegada do médio norueguês mudou o figurino, já que nunca mais deixou o onze. A sua versatilidade leva Schmidt a coloca-lo como médio direito, médio centro e até lateral direito. David Neres foi a vítima em vários jogos.

Fredrik Aursnes foi a resposta da SAD ao pedido de reforços apresentado por Schmidt, na antevisão do segundo encontro com o Dínamo Kiev. Ricardo Horta, o sonho do Benfica durante vários meses, acabaria por não aterrar na Luz.

"Acho que já temos uma boa equipa, mas precisamos de fazer alguns ajustes. Para todas as posições, defesa, meio-campo, ataque, temos de analisar se há opções no mercado que possamos analisar para melhorar o plantel. É o que posso dizer. Temos uma boa equipa e precisamos de alguns ajustes", disse, na altura, recordando que os jogadores à disposição não iam fazer 50 a 60 jogos.

Início avassalador faz adeptos sonhar

Nos 25 jogos disputados antes da inusitada pausa para o Mundial2022, disputado no Qatar no inverno, o Benfica somou 21 vitórias e quatro empates, incluindo 12 triunfos e uma igualdade, em Guimarães, para a I Liga. Entre a dúzia de vitórias, destaque principal para o 1-0 conseguido face ao FC Porto, em pleno Estádio do Dragão. Um triunfo que acabou com uma série de nove jogos de Sérgio Conceição sem perder face ao Benfica (sete vitórias e dois embates).

Neste trajeto, o Benfica também conseguiu, sensacionalmente, vencer o seu grupo da ‘Champions’, superiorizando-se a Paris Saint-Germain (1-1 nos dois jogos) e Juventus (2-1 fora e 4-3 em casa). Apenas no campeonato, os encarnados fecharam a ronda 13 com mais oito pontos do que o FC Porto, nove face ao Sporting de Braga e 12 em relação ao Sporting.

O Benfica estava em primeiro lugar no campeonato, apurado para a quarta eliminatória da Taça de Portugal, qualificado para os oitavos de final da Liga dos Campeões e a dar início a caminhada na Taça da Liga. A época desenhava-se para um Benfica a sonhar com a Champions e a vencer tudo o que havia para vencer. Não era de admirar a euforia que se vivia pelos lados da Luz. Os adeptos elogiavam o treinador que tinha colocado o Benfica a jogar à Benfica e o técnico sabia-o. No entanto, lembrava que nada estava ganho.

"Ainda estamos no início da época. É claro que estamos numa boa série, o começo no Benfica foi muito bom para todos nós, mas, neste momento, não penso em nada disso. Ainda não conquistámos nada", advertiu, em início de novembro.

Queda após Mundial2022 não trava caminhada

O Mundial2022 veio mudar muita coisa no Benfica e trazer alguma instabilidade. Enzo Fernández, eleito Melhor Jogador Jovem do torneio, depois de se sagrar campeão do Mundo com a sua Argentina, deixou o Qatar como um dos jogadores mais desejados do momento. Caiu de rendimento, forçou a saída, consumada em janeiro e deixou Schmidt a fazer contas ao meio-campo. Chiquinho foi a aposta, mas o ex-Moreirense nunca será Enzo Fernández.

Após o Mundial2022, chegaram os primeiros dissabores, nomeadamente uma derrota, ainda única da época, ao 29.º jogo, em Braga (0-3), e uma igualdade a dois na receção ao Sporting na penúltima ronda da primeira volta. O ponto conquistado face aos leões selou desde logo o título de campeão de Inverno, com o Benfica e fechar a primeira volta com um convincente triunfo (3-0 nos Açores) e quatro pontos à frente do Sporting de Braga, cinco do FC Porto e já 12 de um Sporting que parece fora da corrida ao título.

A equipa empatou com o Moreirense, perdeu o seu grupo e ficou fora dos quartos de final da Taça da Liga. Foi ainda eliminada da Taça de Portugal pelo SC Braga nas grandes penalidades. Na Liga, viu a vantagem cair de 10 para quatro pontos, após as derrotas com FC Porto e GD Chaves. Na Liga dos Campeões, foi eliminado pelo Inter Milão (0-2 e 3-3) nos quartos de final da prova, depois de ter afastado o Club Brugge com duas vitórias nos oitavos.

Apesar das tremideiras, Schmidt reuniu as tropas para atacar o resto da época e nem mesmo o empate com o Sporting na 33.ª ronda, travou o voo da águia. O Benfica consumou a festa em casa diante dos seus adeptos, na última jornada frente ao já despromovido Santa Clara.

O alemão é um dos grandes obreiros do 38.º título de campeão do Benfica.