Doze épocas a treinar os escalões de formação do Sporting dão a Luís Gonçalves bagagem mais do que suficiente para falar da atualidade leonina. Pelas mãos do técnico luso passaram craques como Rui Patrício, Eric Dier, Ricardo Quaresma, William Carvalho, Daniel Carriço, Rui Patrício, Mário Rui, entre outros.
Em entrevista ao SAPO Desporto, o ex-treinador do Interclube de Luanda e da seleção principal de Moçambique abordou a troca de treinadores em Alvalade, com a aposta em João Pereira após a saída de Rúben Amorim para o Manchester United.
O treinador de 52 anos, que conta com passagens por clubes como Estoril, Atlético, Belenenses, FC Porto e Tondela, perspectivou o que poderá ser o campeonato português daqui para a frente e falou dos desafios de João Pereira, um jovem técnico com um herança muito pesada.
Luís Gonçalves falou ainda de Geny Catamo, um jogador cuja história internacional ficara ligado umbilicalmente ao treinador português: foi o técnico, nascido há 52 anos na antiga Lourenço Marques, atual Maputo, capital de Moçambique, quem lançou o jovem extremo, aos 18 anos, na seleção principal dos Mambas.
João Pereira: uma herança pesada
SAPO Desporto: Esta mudança técnica no Sporting pode relançar tanto o Benfica como o FC Porto na discussão do título? Será uma luta a três, com o Braga, num processo de encontrar a melhor equipa por parte do treinador Carvalhal, ele que entrou a meio. Apesar desta troca de treinador, o Sporting continua a ser o principal favorito a vencer o campeonato?
Luís Gonçalves: "O Sporting, neste momento, é uma máquina oleada, joga futebol de uma forma muito competente, tem um jogo avassalador, como se viu nesta [11.ª] jornada, a perder em Braga ao intervalo por 2-0, consegue virar para 4-2. Mas aqui viu-se a componente emocional, os jogadores queriam despedir de Ruben Amorim com uma vitória.
Estou muito curioso para ver o João Pereira. Na sua apresentação, ele disse uma coisa, que ele não estava ali para imitar ninguém, mas para ser ele próprio. É uma herança pesada para o João. Feliz o treinador que herda esta equipa, com esta capacidade, com a sua forma de jogar, com o conhecimento que todos têm uns dos outros, está bem na classificação, está no seu melhor momento dos últimos anos. Feliz do treinador que herda esta equipa mas, naturalmente, com uma grande responsabilidade porque, ao mínimo deslize, vai tudo começar a comparar o João com o Ruben, que de alguma forma é injusta mas é assim mesmo.
Não sei se o Sporting é o favorito neste momento. Será naturalmente por ser o campeão em título, está à frente [33 pontos em 11 jornadas], a jogar um bom futebol. Mas atenção! Acredito que, com mais tempo, o Benfica conseguirá estabilizar o seu jogo, ser mais competitivo, aproximar-se. O FC Porto precisa um pouquinho mais de tempo, o SC Braga é uma incógnita, tem tido um rendimento muito irregular, apesar do seu grande treinador, o Mister Carvalhal, uma pessoa que aprecio bastante. Será uma luta a três, eventualmente a quatro, se o Braga conseguir intrometer-se.
Estou curioso para ver como será o Sporting, se foi uma opção inteligente do presidente Frederico Varandas. O João [Pereira] esteve ali, por assim dizer, em estágio, a treinar primeiro a equipa sub-23 e depois a equipa B [do Sporting], havia uma grande comunhão de ideias entre ele e o Ruben Amorim."
SAPO Desporto: O João Pereira pega numa equipa oleada, a jogar quase de olhos fechados. Obviamente que ele vai querer que a equipa tenha o seu cunho, mas como treinador, qual a primeira tentação nos primeiros jogos num caso como este? Olhar para a equipa e dizer, 'Onde vou mexer e como vou mexer?'
Luís Gonçalves: "Qualquer treinador que chega, e ele também falou nisso na sua apresentação, tem as suas ideias. Agora, numa fase inicial, ele não vai mexer muito, vai deixar as coisas correrem naturalmente e depois, com o tempo, vai introduzindo as suas ideias, as suas noções. Estamos a falar de uma equipa que joga muito bem, de jogadores que se conhecem bem, que jogam quase de olhos fechados.
Aqui a principal questão será a gestão do plantel. Hoje em dia toda a gente aceitava com naturalidade a rotatividade que Amorim fazia. Não me lembro de um jogo em que o Sporting tenha repetido a linha defensiva, por exemplo. Havia alterações quase sempre em todos os sectores, havia uma grande rotatividade promovida por Ruben Amorim e isso faz com que a competividade interna seja saudável, os jogadores estejam melhores preparados para, numa eventual lesão, serem apostas.
Tivemos a lesão do Nuno Santos que vai perder toda a época. Pessoalmente acho que é um jogador com caraterísticas muito únicas na equipa do Sporting, o Ruben [Amorim] recorreu às alternativas e a equipa não se ressentiu. Significa que a equipa não depende de A, B ou C. Mas o Sporting tem muito a agradecer a Gyokeres e ao seu rendimento e a sua capacidade goleadora - é realmente um fenómeno. Acredito que se sair em janeiro, que o Sporting já esteja à procura de uma solução - é possível que saia - mas não sei se conseguirá substitui-lo."
Ruben Amorim, o 'happy one'
SAPO Desporto: Como português e como treinador, como olha para este fenómeno, que é um colosso adormecido, como o Manchester United, que quer mudar depois de tantas apostas falhadas, olhar para um treinador jovem, que treinou duas equipas em Portugal, e pensar, 'É o Ruben Amorim'.
Luís Gonçalves: "Olho para isto com muita satisfação, um treinador português na melhor liga do Mundo. O Manchester United é um dos melhores do Mundo, apesar de nos últimos tempos não andar muito bem de 'saúde'. É mais um treinador português no alto nível, é sempre de salutar. Como treinador e como português, fico satisfeito. Claro que os responsáveis do Manchester United não tomaram a decisão de ânimo leve. Estudaram bem, tentaram perceber bem as caraterísticas do Ruben Amorim, não só enquanto treinador mas também as relações e a personalidade, uma coisa que Erik Ten Hag, por exemplo, não tinha, a acreditar no que foi escrito e dito em Inglaterra: o relacionamento com os jogadores, a empatia, a motivação que é preciso transmitir. Mas o futebol não é só motivação e empatia, é preciso 'expertise', é preciso conhecimento tático, é preciso capacidade no terreno. Penso que os responsáveis do United fizeram essa avaliação em relação ao Ruben Amorim.
Não deixa de ser uma aposta... ele treinou dois clubes em Portugal mas o que ele fez no Sporting vai deixar marcas. Ainda hoje as pessoas não entendem a importância que o Ruben Amorim teve no Sporting. Por isso é que o João Pereira terá uma herança pesada.
Espero que ele seja igual a ele próprio. Vai ter um grande aliado, que é o Bruno Fernandes, capitão de equipa, português, de certeza que já devem ter conversado, tem outros colegas, como o Diogo Dalot. Faço uma comparação como a do Bruo Lage: o United está tão mal que o Ruben vem trazer uma lufada de ar fresco. Acredito nele, que os resultados vão começar a aparecer. É uma liga supercompetitiva... vê-se o caso do City com quatro derrotas consecutivas, treinado pelo melhor treinador do Mundo, ou um dos melhores."
Geny, um talento do Catamo
SAPO Desporto: Lançou o Geny Catamo a nível oficial na Seleção principal de Moçambique aos 18 anos, numa vitória por 2-0 diante das Ilhas Maurícias, numa pré-eliminatória de acesso à fase de grupos do apuramento africano para o Mundial de 2022, e logo com golo. Na altura já via nele o potencial que está a revelar agora no Sporting?
Luís Gonçalves: "Conheci o Geny em 2016 quando cheguei a Moçambique como adjunto do Abel Xavier [selecionador de Moçambique na altura], ele, sendo sub-15, jogava na seleção de sub-17 porque não havia seleção de sub-15. Logo aí se destacava pela sua qualidade, inteligência, capacidade técnica. Depois fui acompanhando a sua carreira e crescimento. Ele passou por diversas situações. Fez estágios na África do Sul, na Academia do Bidwest [Bidvest Wits FC da África do Sul], que hoje não existe, que era o clube do Dominguez, capitão de Moçambique na altura, também passou pela Turquia, andou à procura até que o Sporting o resgatou quando ele estava no Amora. Aí eu disse , 'está no sítio certo para evoluir, melhorar as suas qualidades'.
Tinha conhecimento da sua qualidade desde jovem. Na primeira vez que fiz a convocatória como selecionador de Moçambique quando assumi o cargo em agosto de 2019, não hesitei em chama-lo. Na altura fui bastante criticado pela comunicação social local que dizia que o Geny não podia entrar em Moçambique, caso contrário não conseguiria regressar a Portugal. Questões legais, burocráticas que não domino muito bem. Na altura fiz todo o esforço para que fosse resolvido, falei pessoalmente com o embaixador de Portugal em Moçambique para resolver a questão, conseguimos ultrapassar isso.
Lancei-o no segundo jogo de qualificação para o Mundial, em setembro, foi titular, correu-lhe bem. Inicialmente entrou nervoso, mas foi melhorando, estabilizando e beneficiou de uma coisa chamada companheirismo. Todos os companheiros já o conheciam muito bem e no momento da marcação de uma grande penalidade, o Mexer [antigo central do Nacional, Estoril e Rennes], que era capitão e um dos marcadores, foi lá e disse-lhe, 'oh miúdo, não queres marcar'? E ele, com o meu consentimento, marcou, fez o golo, ficou marcado com essa estreia logo com golo.
O Ruben Amorim teve muito mérito em ter paciência com ele. Teve duas cedências, Vitória de Guimarães e Marítimo, que não correram assim tão bem, também motivados por algumas lesões pelo meio. Mas o Ruben Amorim soube esperar, e Geny hoje é um jogador muito mais forte, principalmente no aspeto defensivo."
SAPO Desporto: Olha para o Geny mais como extremo ou como ala? Onde é que ele rende mais?
Luís Gonçalves: "Comigo jogava como ala porque jogava num 4-3-3 mas também jogava como interior, nas costas do ponta de lança, faz compensações defensivas, tem visão de jogo, remata bem, lança bem os homens da frente. Como ala fazia diferença, mas usava-o por dentro porque tinha dois alas com muita capacidade técnica, o Clésio [antigo jogador do Benfica] e o Witi [que esteve Nacional].
No Sporting o ala tem de fazer todo o corredor, mas isso em qualquer modelo os jogadores têm de ser eficientes. E no Sporting naquele sistema, o jogador que joga na direita ou na esquerda e não corresponder defensivamente, é muito complicado para a equipa que fica muito desequilibrada em muitos momentos. Ele evoluiu muito defensivamente, hoje em dia é fundamental qualquer jogador defender, a não ser que o treinador, por uma questão estratégia, diga ao jogador, 'fica aí na frente à espera de uma transição'. Mas aí é lado estratégico do jogo.
Mas ele melhorou muito nesse aspeto defensivo: muito mais forte na reação à perda, os posicionamentos também melhores a defender mais por dentro, a fazer esperar o momento, a fazer contenção que tem de fazer. Temos de dar mérito ao Amorim."
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