Ainda pouco se sabia sobre o novo mundial de clubes e já havia vozes discordantes. Com o calendário cada vez mais apertado, com muitos jogos e pouco descanso, a FIFA decidiu acrescentar mais uma competição às pernas dos jogadores, o que gerou muita polémica no seio dos clubes e dos atletas na Europa.

Para a maior parte dos 12 clubes europeus que vão participar na prova, de 15 de junho a 13 de julho de 2025, mais jogos significa mais risco de lesão, menos descanso e maior probabilidade de perder os craques que pagam a peso de ouro. Para os restantes das outras federações de África, América do Sul ou América central, Caraíbas e Pacífico, é uma oportunidade para mostrar o seu valor, sem contar com a verba que cada um irá arrecadar.

Com 32 clubes das suas seis confederações, a FIFA criou um Mundial de clubes alargado a todo o planeta. O organismo fala em "marco significativo" na "missão de tornar o futebol verdadeiramente global".

"Estamos a falar de algo nunca antes visto. O Mundial de clubes do próximo ano trará a magia de um Campeonato do Mundo de seleções nacionais para o nível dos clubes. Este torneio será o início de algo histórico, algo que mudará o nosso desporto para melhor e para todas as gerações futuras que virão a amá-lo como nós o amamos”, garantiu o presidente da FIFA, Gianni Infantino, numa mensagem enviada para a 'Olé Sports Summit', que decorreu em Buenos Aires.

O Mundial que a Europa não quer

Uma das vozes mais discordantes da nova competição da FIFA é a FIFPro. Em setembro, o sindicato internacional dos jogadores publicou um estudo onde mostrava que 54% dos 1.500 jogadores analisados tiveram níveis de carga excessivos ou elevados na época 2023/24, situação que os deixou mais expostos a lesões devido ao menor tempo de recuperação entre jogos.

Mais do que o aumento do número de jogos, jogadores, treinadores e clubes queixam-se de ciclos de treinos mais curtos, do aumento do número de viagens, dos muitos estágios, das muitas horas passadas longe de casa e das constantes mudanças de fuso horário, devido as várias viagens transcontinentais.

O organismo alertou para o agravamento da situação em 2024/25, com o aumento do número de jogos nas provas europeias e ainda o Mundial de Clubes no final da época, já que os clubes de topo poderiam ser obrigados a fazer mais 15 jogos que na época anterior. Em 2023/24, por exemplo, o argentino Julian Alvarez foi o jogador com mais jogos nas pernas - 75 - (ainda que muitos deles como suplente no Manchester City). Em em 2024/25 há jogadores que poderão fazer mais de 80 jogos, entre clubes e seleções.

"Vamos ter de pedir à FIFA ou à UEFA para que o ano passe a ter 400 dias em vez de 365 para jogarmos mais jogos", Pep Guardiola, treinador do Manchester City

Já em maio a Associação Mundial de Ligas de Futebol e a Federação Internacional de Jogadores Profissionais de Futebol (FIFPro) tinham apelado à FIFA para rever o calendário do novo Mundial de Clubes em 2025, sob pena de avançarem com processos judiciais. Os dois organismos consideram as mudanças de calendário criaram “danos económicos” às ligas nacionais e levaram os jogadores “além dos seus limites”.

Queixa contra FIFA na Comissão Europeia

Com a recusa da FIFA em dialogar, a FIFPro, juntamente com a ECA (Associação de Ligas Europeias), presidida pelo português Pedro Proença, avançou com uma queixa-crime contra o organismo junto da Comissão Europeia. Os dois organismos acusam a FIFA de "abuso de posição dominante" e a queixa apresentada em Bruxelas incide diretamente sobre o alargamento das competições internacionais, das quais se destacam o Campeonato do Mundo de 2026 e o Mundial de clubes de 2025.

Os dois organismos que representam os clubes e os jogadores lembram as decisões da justiça europeia nos casos da Superliga e do antigo internacional francês Lassana Diarra, contrárias às pretensões da FIFA.. No futuro, os dois organismos querem ser "incluídos nos processos de decisão relacionados com a elaboração dos calendários", algo que deve ter "força de lei", defendendo que a situação atual, de "falta de envolvimento dos parceiros sociais, infringe o direito da concorrência da UE".

Para sustentar a queixa, a FIFPro avançou com dados concretos, mas relativos a 2023/24, ano em que o calendário já estava mais do que sobrecarregado. Entre jogos, treinos, viagens e estágios, o jogador Marquinhos, do PSG, passou 80 por cento do seu tempo em ambiente de trabalho, tendo participado em 59 jogos, num total de cinco mil minutos. 63% dos jogos disputados foi feito sem um intervalo superior a três ou quatro dias. O capitão do PSG esteve 74 horas a andar de avião, num total de mais de 55 mil quilómetros, além de ter mudado 30 vezes de fuso horário. Trabalhou 293 dias e descansou apenas 72 dias num ano, metade de um cidadão comum. E até beneficiou do facto de o Brasil ter caído cedo nas eliminatórias do Mundial 2024.

Pedro Proença
Pedro Proença Pedro Proença

Após a queixa da ECA e da FIFPro, a Liga Espanhola veio fazer pressão junto da FIFA, pedindo ao organismo presidido por Gianni Infantino que retirasse o Mundial de clubes de 2025 do calendário internacional, "porque não é necessário para jogadores e clubes".

Criticas dos jogadores e ameaça de greve

As críticas chegaram também dos jogadores, os principais prejudicados da sobrecarga de encontros numa época. Pela primeira vez em muitos anos, ouviu-se falar, embora que de forma ténue, na possibilidade de os atletas fazerem greve face ao aumento do número de jogos por temporada. Para já, não passam de ameaças esporádicas e isoladas, mas no futuro tudo pode mudar.

"A FIFA sabe que não tem os patrocínios que tinha antecipado e que as ligas e o sindicato dos jogadores não querem este Mundial. Retire-o já [do calendário]", exigiu Javier Tebas, presidente da La Liga.

Os atletas que têm abordado a questão acusam a FIFA e a UEFA de só pensarem em dinheiro e nunca na saúde dos atletas.

Rúben Dias, internacional por Portugal e um dos capitães do Manchester City, criticou as organizações futebolísticas mundiais, que, no seu entender, "não querem saber" dos atletas ao sobrecarregar o calendário, prejudicando o desempenho e o espetáculo. Durante a Web Summit 2024 que decorreu em Lisboa, o defesa central entende o apetite dos adeptos que querem mais e mais jogos, mas lembrou que é preciso "centralizar a questão nos atletas", já que são eles que entram em campo.

"Percebemos a indústria que temos à nossa volta, mas são os nossos corpos que estão em questão. Precisamos de descansar e respirar", apelou o central, deixando no ar a possibilidade de uma greve se nada for feito.

"Se tiver de ser, é importante estarmos todos juntos e fazê-lo todos juntos, como uma outra situação extrema. Se tivermos de levantar a voz e fazer greve, fazêmo-lo. Todos estamos focados no dia a dia agora, mas, no seu tempo devido, temos de pensar nisso seriamente", considerou Rúben Dias

O médio espanhol Rodri, companheiro de equipa de Rúben Dias em Manchester e recentemente consagrado como melhor futebolista do mundo, foi um dos jogadores que já abordou uma possível greve, de forma a "levantar a voz" e alertar para o problema criado pelas organizações.

"Se continuar assim, não teremos alternativa. Preocupa-nos, somos nós que sofremos [...]. Entre 40 e 50 é o número de jogos em que um jogador rende ao mais alto nível. Depois há uma quebra, porque é impossível manter o nível. Este ano, talvez sejam 70 ou até 80 e é demasiado. Alguém tem de cuidar de nós, somos os personagens principais deste desporto. Nem tudo tem a ver com dinheiro ou marketing, mas sim com a qualidade do espetáculo. Quando não estou cansado, o meu desempenho é melhor", alertou, em setembro deste ano.

A ideia de uma greve teve eco em Dayot Upamecano, defesa internacional francês do Bayern Munique: "Por que não avançarmos para uma greve? Já o disse antes que há demasiados jogos. É um assunto que precisamos de discutir entre nós. Na minha opinião, há jogos a mais e espero que compreendam isso um dia", afirmou.

A questão da greve dos jogadores tinha sido levantada por Pep Guardiola, treinador do Manchester City e um dos mais críticos do calendário do futebol mundial.

Rodri
Rodri Rodri lesionou-se gravemente frente ao Arsenal. créditos: epa11619330

Carlo Ancelotti, do Real Madrid, Didier Deschamps, da seleção francesa, e Vincent Kompany, treinador do Bayern Munique, todos antigos jogadores que atingiram o mais alto nível no passado, defenderam recentemente uma negociação para que seja fixado um número máximo de jogos a disputar numa temporada.

Estudos mostram que jogadores estão mais propensos a lesões

Muitas das críticas feitas à FIFA e à UEFA por causa do calendário tem por base alguns estudos que têm sido feitos ultimamente sobre o tema. Nos finais de novembro, por exemplo, Liliana Pitacho, investigadora e docente no Instituto Politécnico de Setúbal, alertava para as consequências de um calendário de jogos cada vez mais preenchido sobre a saúde mental dos futebolistas de topo a nível mundial.

"O negócio pode dispensar treinadores, diretores, dirigentes, meios de comunicação, empresários e proprietários, mas sem jogadores não há jogo. São os únicos que podem mudar qualquer coisa", disse Pep Guardiola

Liliana Pitacho explica que quando os atletas são colocados "de três em três dias em elevados níveis de competição", aumentando-lhes os níveis de cortisol no sangue, a endomorfina, o organismo "não tem tempo suficiente para metabolizar", criando sobrecarga.

"Pode gerar situações de maiores níveis de ansiedade, desproporcional, fora dos períodos de competição, à fadiga mental, que pode conduzir a 'burnout' e depressão. Em termos comportamentais, também se alteram padrões. Ao falarmos de fadiga emocional e fadiga psicológica, há recursos que ficam diminuídos, como a concentração, a capacidade de tomada de decisão", avisa.

Já Henrique Jones, ortopedista especializado em medicina desportiva, alertou para a crescente vaga de roturas ligamentares do joelho nos futebolistas provocada por uma maior densidade do calendário competitivo, aliada à recuperação passiva da fadiga.

A época oficial em 2024/25 ainda nem chegou a meio e jogadores como Dani Carvajal (Real Madrid) e Rodri (Manchester City) Tiago Santos (Lille), Josip Stanisić (Bayern Munique), Alessandro Florenzi (AC Milan), Hamari Traoré (Real Sociedad), Bremer (Juventus), Dan-Axel Zagadou (Estugarda), Marc Bernal (FC Barcelona), Valentín Carboni (Marselha), Gianluca Scamacca (Atalanta, Duván Zapata (Torino) sofreram roturas ligamentares e foram forçados a encarar paragens prolongadas.

A rotura do LCA já tinha fustigado figuras de topo mundial como Thibaut Courtois e Éder Militão (ambos do Real Madrid), Gavi (FC Barcelona) ou Neymar (Al Hilal).