“Árbitro de 17 anos agredido em jogo de futsal feminino”, “treinador agride árbitro em jogo de andebol” e “agressões entre adeptos em jogo de infantis” são alguns dos títulos que chegaram recentemente ao comum adepto de desporto. Em pouco mais de dois anos, a violência no desporto passou de pontual a regular e despertou a atenção do país para uma calamidade que cresce a olhos vistos.
À medida que os casos de violência aumentam, as instituições ligadas ao desporto, nomeadamente ao futebol, viram-se obrigadas a levantar a voz numa tentativa desesperada de pôr fim a esta nova “moda”.
Em 2017, foram agredidos 43 árbitros principais ou assistentes. Já a 11 de fevereiro deste ano, o presidente da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF), Luciano Gonçalves, alertou para o facto desse número estar a aumentar, principalmente nos jogos dos escalões de formação.
Desde a época 2016/2017 até ao final do mês de fevereiro deste ano, a Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol registou 118 agressões a árbitros de futebol e futsal.
"Infelizmente, desde a última vez que intervim nesta casa, na casa da democracia, há sensivelmente um ano, onde se falou sobre a violência no desporto, cerca de 40 árbitros foram agredidos nas modalidades de futebol e futsal. Só esta época desportiva, que teve início a 1 de julho de 2018, já contabilizámos 21 agressões a árbitros de futebol e futsal", disse, no âmbito de uma audição pública sobre o desporto na Assembleia da República, em Lisboa.
O representante da classe da arbitragem portuguesa salientou também que "a maioria das agressões, mais concretamente mais de 95% das agressões, ocorrem em jogos das distritais" e que "mais de 50%" acontecem em jogos das camadas jovens.
Ou seja, desde a época 2016/2017 até ao final do mês de fevereiro deste ano, a Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol registou 118 agressões a árbitros de futebol e futsal.
"O balanço dos últimos anos é muito negativo", começou por dizer Luciano Gonçalves, em entrevista ao SAPO Desporto. O presidente da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol admitiu que a violência nos escalões jovens é a que "mais preocupa" e refere que o aumento dos episódios em atletas cada vez mais novos está ligado ao "mau exemplo que recebem dos escalões profissionais".
"Os atletas jovens têm assistido à violência que ocorre entre os mais velhos e acabam por não ter um bom exemplo. É preciso mudar isso", acrescentou o dirigente da APAF.
Para mudar o paradigma do desporto atual, Luciano Gonçalves salientou que "é preciso também educar os intervenientes", como jogadores, mas também pais e dirigentes.
Agressões dentro de campo
Na semana passada, o ‘Diário de Notícias’ divulgou a história de Fernando Pinto, antigo árbitro assistente da Associação de Futebol do Porto. A 20 de novembro de 2011, em Sobrado, Valongo, Fernando foi agredido em campo no final de um jogo entre o Sobrado e o Atlético de Rio Tinto, da 1.ª divisão do Campeonato Distrital do Porto.
"Parti os ossos da cara em três lados; deslocaram-me o maxilar e, durante um mês, só me alimentei a líquidos" - Fernando Pinto
“É uma coisa que não sai da cabeça. Só me lembro de receber uma pancada e a partir daí apaguei. Estive inanimado no chão 20 minutos, a receber pontapés em todo o lado, pelo que me disseram. Foi bater num morto”, descreveu ao jornal a vítima.
"Parti os ossos da cara em três lados; deslocaram-me o maxilar e, durante um mês, só me alimentei a líquidos, eram umas dores... Sofri uma lesão no tornozelo que me obrigou a estar mais de um mês em fisioterapia. Tive um desvio de seis milímetros na vista”, contou Fernando Pinto, que esteve internado durante um mês após os incidentes.
O aumento do número de ocorrências de violência tem também causado estragos entre os árbitros. O presidente da Associação Portuguesa de Árbitros Profissionais revelou que "tem registado uma quebra no número de indivíduos a querer enveredar por esta profissão".
Além disso, Luciano Gonçalves admitiu ainda que "há também muitos árbitros a desistir" do ofício, não tanto por serem vítimas de violência, mas "por assistirem ao que ocorre atualmente em jogos de todos os escalões".
Além dos árbitros, também os próprios atletas se envolvem algumas vezes em situação de violência ao longo dos jogos. Rui Moura, coordenador do gabinete de psicologia no Sport Clube União Torrense, considera que a excessiva competitividade que envolve a sociedade é a responsável por estes episódios.
"A sociedade reflete-se a todos os níveis na parte desportiva. Nós estamos cada vez mais orientados para uma vertente de competição, somos constantemente impelidos para ganhar e incutimos em nós, ou é nos incutida, uma excessiva necessidade de chegar em primeiro lugar. Por nós queremos estar em primeiro, isso significa inevitalmente que os outros não estejam, porque só pode haver um primeiro, o que faz com que alguém tenha de perder. Às vezes para chegar aí passa-se a uma prática em que tudo é válido, tudo é possível", lamenta o psicólogo.
Em janeiro do ano passado, o encontro entre Cesarense e FC Porto, do Campeonato Nacional de Juniores A (19 anos ou menos) terminou com agressões entre jogadores das duas equipas e os elementos da Guarda Nacional Republicana que faziam o policiamento no recinto foram mesmo obrigados a intervir.
O Cesarense venceu o jogo por 3-1 e já depois do apito final, no tunel de acesso aos balneários, os jogadores das duas equipas envolveram-se numa cena de violência. Depois da intervenção policial, um dos jogadores chegou mesmo a agredir um militar da GNR.
Quando as agressões saltam para as bancadas
Tal como acontece no futebol profissional, também no futebol amador há episódios que mancham o desporto. Os casos de violência nos relvados têm aumentado, mas também as agressões fora de campo têm sido cada vez mais frequentes.
Em janeiro deste ano tornou-se viral um vídeo divulgado pelo antigo árbitro Duarte Gomes, em que era possível assistir a uma cena de violência no jogo entre o Real Sport Clube de Massamá e o Despertar de Beja, no escalão de iniciados (entre os 14 e 15 anos). Nas bancadas, os pais dos jogadores agrediam-se violentamente.
Quem já assistiu a um jogo de futebol de formação sabe que os ânimos se exaltam com facilidade. Os pais e mães nas bancadas atacam-se mutuamente, na maior parte das vezes de forma apenas verbal. Mas, na grande parte das vezes são feitas ameaças. Noutros casos as ameaças são reais e a violência acaba por ser inevitável.
Nesses casos, o presidente da APAF lamenta que a resposta dada não seja "célere". "Muitas vezes não acontece nada às pessoas que provocam esta violência e outras vezes quando chegam a ser punidas já passou demasiado tempo. É necessário dar uma resposta mais rápida na punição destes indivíduos", garantiu Luciano Gonçalves.
Do campo para as ruas
Infelizmente, o pior ainda está para vir. Se agressões entre jogadores, a árbitros e entre pais já são preocupantes o suficiente, a situação complica-se quando a violência passa os muros de um estádio e chega a casa dos intervenientes.
No passado mês de dezembro, o Operário de Antime, de Fafe, e o Santa Maria, de Barcelos defrontaram-se num jogo da divisão de honra de juniores A que terminou empatado.
O árbitro não estava em casa, mas o indivíduo deixou "recado” ao pai do mesmo: Lucas Martins poderia ter “o azar de sofrer um atropelamento” ou de “aparecer com as pernas partidas”
Um alegado penálti por assinalar levou alguns jogadores e respetivos pais a perseguir a equipa de arbitragem, já depois de, durante o encontro, terem cuspido várias vezes na direção de um dos árbitros.
Lucas Martins, de 21 anos, e a restante equipa de arbitragem deixou o estádio e dirigiu-se a Fafe, onde estavam estacionados os carros dos restantes. Quanto chegaram, o carro em que seguiam foi encurralado por dois outros, um à frente e outro atrás.
Desses mesmos carros saíram cerca de 10 indivíduos que começaram a ameaçar os árbitros e a tentar abrir a porta do veículo em que estes seguiam. Sem sucesso, os indivíduos pontapearam o carro, mas acabaram por abandonar o local.
No dia seguinte, o pai de um dos jogadores do Antime foi a casa de Lucas Martins para exigir que retirasse a queixa que tinha apresentado. O árbitro não estava em casa, mas o indivíduo deixou "recado” ao pai do mesmo: Lucas Martins poderia ter “o azar de sofrer um atropelamento” ou de “aparecer com as pernas partidas”.
Das palavras às ações
O que é então preciso fazer para acabar com este fenómeno que mancha com regularidade o desporto-rei? O Torreense responde.
O clube de Torres Vedras quer prevenir a violência no desporto e, com esse objetivo, criou uma escola para pais, que é inovadora no país.
O diretor da formação do Torreense, Fernando Agostinho, explicou ao SAPO Desporto que o ideia do projeto é “melhorar os comportamentos dos pais perante a competição, em termos de postura” através de “um trabalho de prevenção e de educação quanto à ética desportiva, para que tudo corra pelo melhor dentro e fora de campo”.
"Tem de haver uma linha que separa os pais dos filhos que estão no campo e do treinador que é quem manda ali dentro” - Fernando Agostinho
Com recurso à psicologia, o emblema de Torres Vedras trabalha “com os pais para que saibam lidar com o sucesso e o insucesso dos filhos. Trabalhamos a comunicação e o discurso que um pai deve ter ao longo de uma época com o filho enquanto atleta.”
Para educar os pais, o Torreense reúne todos os intervenientes para divulgar “um documento interno com as normas de conduta dos pais parceiros, que inclui regras e deveres, assim como formas de estar nos jogos e nos treinos”.
Apesar de a prevenção da violência ser um dos quatro pilares da Escola Pais Parceiros - juntamente com o ensinamento da nutrição, o apoio escolar e o acompanhamento psicológico -, Fernando Agostinho garante que “felizmente, nunca houve episódios de violência no clube”.
Mesmo nunca tendo assistido a episódios dessa natureza, o diretor de formação do Torreense garante que a mensagem transmitida pelos pais é essencial para o comportamento dos atletas. “Eu acho que a forma de dar suporte a um atleta pode causar consequências realmente negativas. Tem de haver um acompanhamento dos pais ao jogador, mas os atletas têm de se sentir bem e não devem sentir pressão para realizar determinadas coisas”, referiu o dirigente.
“Muitas das vezes os pais quando estão a assistir a um jogo ou um treino têm tendência a interferir e isso não é benéfico para o atleta. Tem de haver uma linha que separa os pais dos filhos que estão no campo e do treinador que é quem manda ali dentro”, lembrou ainda.
A escola Pais Parceiros “surge para combater os episódios de violência no desporto que temos vindo a assistir quase todos os fins de semana", explicou Rui Moura, coordenador do Gabinete de Psicologia no Desporto do clube, acrescentando que o objetivo do projeto é "transmitir valores de ordem ética e moral e fornecer competências no âmbito da inteligência emocional, de autoconsciência e autoregulação emocional."
O coordenador do projeto explicou que se trata de uma “medida preventiva para não se chegar a situações de violência propriamente ditas”, facultando aos pais “ferramentas e conhecimentos de autorregulação das emoções”, através de workshops, ações de trabalho em equipa ou simulações de casos reais.
O projeto "está apoiado em três frentes: pais, atletas e clube" e tem também como missão transmitir princípios, como o respeito e a cooperação, por oposição à competição, visto que é imperativo "atentar numa cultura de cooperação e não de competição", segundo Rui Moura.
O que está por trás desde tipo de comportamentos? Rui Moura explica. "O envolvimento parental às vezes ocorre de forma excessiva e errada e isso interfere com o clube e com o atleta. A criação desmesurada de expetativas é um problema e pode ser extremamente prejudicial para a criança. Os pais têm de diferenciar o que são os seus desejos e quereres do que são os reais interesses do atleta", começou por esclarecer.
"A outra questão é o facto de as crianças serem cópias dos seus modelos de referência. Quando esses modelos têm comportamentos desajustados, as crianças acabam por reproduzir esses mesmos comportamentos nos jogos e nos treinos. Se há um pai que está constantemente a agredir verbalmente um árbitro, o atleta vai fazer desse o seu modus operandi sempre que a equipa de arbitragem tenha uma ação que não lhe agrade ou favoreça. Há uma transferência da falta de consciência de pais para filhos", garantiu.
Mas, o Torreense não é o único protagonista nesta “triste” história. Também a Câmara Municipal de Almeirim criou um projeto para educar os pais.
Na luta contra a violência
Lançado em maio do ano passado, o projeto "Pais de desportistas, são pais responsáveis" nasceu de uma parceria com clubes, associações e federações das várias modalidades.
Já em novembro, Pedro Ribeiro, presidente da Câmara, fez um balanço do projeto e afirmou que desde o lançamento do projeto, foram realizadas reuniões de sensibilização com federações, associações e clubes, e destes junto de pais, treinadores, jogadores, sublinhando o facto de alguns dos clubes terem inserido nos seus regulamentos internos as regras preconizadas e que prevêem penalizações a maus comportamentos, que podem ir de advertências a expulsões.
A Câmara de Almeirim (distrito de Santarém) entregou às associações e federações fichas para os árbitros registarem comportamentos que fomentem atos de violência, não tendo existido até agora qualquer comunicação, adiantou.
"Estes incidentes não são o resultado de claques organizadas, mas de pais e agentes desportivos que estão a extremar a sua ação, manchando o nome dos clubes, do concelho e o futuro dos atletas" - Eduardo Vítor Rodrigues
Já a Câmara Municipal de Gaia foi mais radical e passou à ação, ao suspender os apoios a dois clubes na sequência de episódios de violência em jogos da formação.
A decisão surgiu depois de num jogo entre o Águias Sport Clube e o Clube de Futebol de São Félix da Marinha, a contar para o Campeonato Distrital de Juniores B, 2.ª Divisão, que decorreu no estádio municipal da Lavandeira, se terem registado situações de violência.
A Câmara de Vila Nova de Gaia, distrito do Porto, descreveu que "no final da partida, diversos jogadores, técnicos e dirigentes de ambos os clubes, bem como elementos não identificados que se encontravam no recinto de jogo sem a devida autorização, envolveram-se em graves distúrbios, com múltiplas agressões físicas que levaram à intervenção das forças policiais e a algumas situações de tratamento hospitalar".
O autarca Eduardo Vítor Rodrigues apontou que "estes incidentes não são o resultado de claques organizadas, mas de pais e agentes desportivos que estão a extremar a sua ação, manchando o nome dos clubes, do concelho e o futuro dos atletas".
"A Câmara não pode, de modo algum, tolerar estes distúrbios, ocorridos sobretudo nos equipamentos desportivos municipais, maioritariamente cedidos de forma gratuita aos clubes. A partir de agora a câmara tem tolerância zero para qualquer ato de violência e levará até às últimas consequências todas as ações que levem ao fim desta situação", terminou o presidente.
Assim, na sequência do caso relatado, a autarquia informou que decidiu suspender os apoios e a utilização gratuita por este escalão da formação dos dois clubes envolvidos.
O mundo do futebol junta-se assim para combater uma praga que tem contaminado os campos ao longo dos últimos anos, mas há ainda muito caminho pela frente: controlar o sentido de competitividade e proporcionar melhores exemplos aos atletas são a peça chave nesta 'luta', na opinião de quem sabe do que fala.
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