Conseguir conciliar uma carreira de futebolista profissional com uma formação académica não é fácil e não são muitos aqueles que o conseguem. Mas há exemplos de que é possível jogar futebol ao mais alto nível, nos escalões principais, e ainda assim nunca descurar os estudos.
O caso mais mediático, nos últimos tempos, é o do antigo médio do Rio Ave, Tarantini, que em 2006 terminou a licenciatura em Ciências do Desporto; em 2014 concluiu o mestrado na mesma área, e que recentemente se tornou no primeiro futebolista profissional em Portugal a concluir um doutoramento. Algo que, explicou na altura, teve por base um "enorme esforço pessoal", lamentando que os clubes, na sua maioria, se foquem apenas nos resultados desportivos.
"Fiz o meu trajeto com um enorme esforço pessoal, mas não pode ser assim", salientou então. "Sempre quis acrescentar algo mais à minha carreira e mostrar que era possível fazer um percurso profissional no futebol, mas ao mesmo tempo estudar. Claro que não foi fácil, passei por algumas privações pessoais, mas senti que através do conhecimento académico estaria mais preparado para qualquer cenário no futuro. Em Portugal, no ensino secundário há cerca de 800 miúdos a estudar e a competir ao mais alto nível, mas no ensino superior há um longo caminho a percorrer", referiu.
Dois exemplos a seguir
Apesar das crescentes preocupações sobre a relação entre o desporto e a educação, conciliar o futebol com os estudos é ainda uma tarefa desafiante. Um processo repleto de dilemas, percalços, dificuldades e sacrifícios que os futebolistas têm de enfrentar, dividindo-se entre estudos, treinos e jogos. Há, ainda assim, cada vez mais atletas que, mesmo conscientes destas dificuldades, decidem fazer esse percurso.
E, se grande parte dos futebolistas que não deixam os estudos após a escolaridade obrigatória aposta numa bem mais natural licenciatura na área do desporto, há quem opte por cursos bem distintos. O SAPO Desporto foi conhecer dois desses casos: Talocha e Capela.
São vários os pontos em comum entre os dois. A começar pela curiosidade de ambos serem conhecidos no mundo do futebol por alcunhas que vêm das suas famílias.
"A alcunha vem do meu pai. E eu, como primeiro filho, fiquei com ela. Já me chamavam assim antes do futebol, por isso não tive como escapar", brinca João Carlos Araújo Fonseca Silva, mais conhecido por Talocha, que depois de na I Liga ter representado Boavista e Gil Vicente, joga agora no Farense.
A razão da alcunha de Capela - Fernando Jorge Barbosa Martins - não é muito diferente. "Vem de família, já por parte do meu bisavô, que vivia ao lado de uma Capela. Foi passando por várias gerações e eu também a herdei", explica o agora jogador do Académico de Viseu, que no escalão principal do futebol português representou o Penafiel.
Mas há mais semelhanças no percurso destes dois futebolistas, agora já trintões. Os dois militam, por estes dias, na II Liga e tentam ajudar as respetivas equipas a regressarem ao convívio dos grandes. Os dois chegaram a atuar no estrangeiro e os dois fizeram questão de nunca deixar de estudar, mesmo abraçando o profissionalismo no futebol, seguindo licenciaturas pouco comuns para desportistas: um licenciou-se em engenharia mecânica, o outro em ciências farmacêuticas.
Talocha: a dura realidade na subida aos seniores e a engenharia como futuro
Para Talocha a ligação ao futebol começou bem cedo. O pai, Carlos Fonseca, chegou a capitanear o Famalicão na década de 1990. "Desde pequeno que cresci num campo de futebol e claro que ganhei o gosto. Entrei para as camadas jovens do Famalicão com 9 ou 10 anos e foi lá que fiz a minha formação toda", conta-nos.
Crescer ao lado de um pai que era futebolista fê-lo ver a realidade das dificuldades que os desportistas podem enfrentar. Foi um dos motivos que o levou a nunca deixar de estudar.
"Claro que o meu pai sempre me incutiu a ideia de nunca largar os estudos, até pelo que ele já tinha visto. Depois, com o tempo, quando subi aos seniores - ainda muito jovem, com 17 anos - apanhei uma fase complicada do Famalicão a nível financeiro. Estava a terminar o secundário e já tinha a noção de que não ia parar de estudar, mas aí tive ainda mais a certeza", explica.
"Vi colegas com salários em atraso, a chorarem porque tinham filhos em casa e precisavam do dinheiro. Aí foi mesmo a confirmação de que não ia nunca deixar os estudos", recorda Talocha.
A chegada ao plantel principal do Famalicão coincidiu então com o início da licenciatura. "Subi aos seniores, que na altura treinavam também à noite, e foi quando tirei o curso. Era mais complicado. Levantava-me às 7h00, no máximo, para apanhar o autocarro, porque ainda nem carta tinha. Depois voltava e o treino era às 19h00. Treinava, chegava a casa por volta das 21h30 e no outro dia a rotina repetia-se", explica.
Para além das aulas, ainda era preciso encontrar tempo para estudar para os exames e conciliar tudo isso com os treinos, os jogos e os cuidados que os desportistas têm de ter com os seus tempos de repouso. "Tentava tirar todos os períodos que conseguia para estudar e nas aulas tentava estar super atento, para assim poder reduzir um pouco o tempo de estudo necessário. Tentava ir às aulas todas para não perder nada da matéria", sublinha.
Licenciou-se em engenharia mecânica, ao contrário de grande parte dos desportistas que seguem cursos superiores e que, por norma, privilegiam formação académica na área das ciências do desporto.
"Desde logo disse 'vou para a faculdade, mas não vou para o desporto'. Era uma coisa que não ia querer. Então optei por uma engenharia, porque a área das matemáticas sempre me cativou. Achei engraçado a engenharia mecânica e foi por essa que optei". Acabou por se licenciar na ESEIG, Escola Superior de Estudos Industriais e de Gestão, em Vila do Conde, em 2012.
Nessa altura ainda não era futebolista profissional. Estava no Famalicão e depois rumou ao Vizela e até começou a trabalhar na área em que se licenciou.
"Trabalhava na minha área e nessa altura talvez tenha passado um pouco o futebol para segundo plano. Tinha 23 anos, achei que já não ia dar para fazer carreira e, para andar naquelas divisões mais baixas mais valia treinar à noite e trabalhar de dia, já que tinha estudado", recorda o lateral esquerdo.
"A nível de dinheiro, até via ali uma melhor fonte de rendimento. Foi também por isso, mas também mais por aquela ideia de não andar numa ilusão", justifica.
"Já que tinha o curso e que me tinha esforçado tanto para o ter, optei por tirar partido disso e trabalhar na área", acrescenta Talocha.
Mas depois, em 2016, surgiu a oportunidade de abraçar o profissionalismo como futebolista. E de retomar os estudos. "Quando já não esperava surgiu a oportunidade de ser profissional e ir para o Boavista. Decidi também voltar aos estudos e fazer o mestrado. Matriculei-me no ISEG, e agora estou quase a acabar o mestrado - já entreguei a tese e falta-me só uma cadeira. É um mestrado ligado à gestão industrial, ainda dentro da engenharia mecânica", explica.
Talocha faz questão de destacar a importância de ter seguido os estudos e nunca ter desistido. "Primeiro que tudo, sabemos que no futebol a carreira é curta e o dinheiro que se pode ganhar ali dificilmente vai dar para a vida toda. Por isso, é importante ter um curso em que uma pessoa possa, quando acabar a carreira, trabalhar. Até porque eu não queria ficar ligado ao futebol, pelo menos na área do treino", frisa.
Uma preocupação que sente que está cada vez mais presente entre os jovens, mas que não estava tão enraizadas nos futebolistas sua geração. "Da minha idade, conheço poucos e são muito raros os casos de jogadores que têm cursos superiores. Agora já se começam a ver mais porque se passa mais a mensagem de que é importante ter algo para fazer depois da carreira de futebolista", sublinha.
"Agora há mais apoios. Na minha altura, na faculdade, às vezes tive cadeiras que não conseguia fazer porque no mundo do futebol ainda era incompreensível eu chegar um pouco atrasado ao treino por estar a vir da faculdade. Era visto como um problema. Mas agora há mais essa liberdade e o Sindicato, sobretudo, ajuda muito os jogadores e faz questão de lhes demonstrar a importância de terem um curso", acrescenta.
Talocha jogou na Grécia, no Atromitos, e na Letónia, no Riga FC. E diz que, pelo que viu, nesses países o número de futebolistas licenciados será ainda mais reduzido. "Lá fora poucos ou nenhuns tinham cursos superiores. Na Grécia, então, a mentalidade era mesmo aproveitar a vida e o momento sem pensar no futuro. Começam a ser profissionais no futebol muito cedo e poucos são os que estudam", reporta.
Agora com 33 anos, Talocha ainda não sabe quando irá pendurar as chuteiras, mas pensa no futuro. "Tenho contrato com o Farense por mais uma época e depois...é o que ocorrer. Já disse que se não houver mais nada vou trabalhar outra vez e não tenho problemas com isso. Gosto muito deste clube e das pessoas e já disse que se calhar o Farense ia ser o meu último clube. Não sei é se fico só estes dois anos ou se fico três ou quatro", garante.
Seja daqui a dois, seja daqui a quatro anos, a ideia é, para já, desligar-se do futebol. Mas...nunca se sabe. "Digo a toda a gente que vou passar para adepto, mas pode sempre haver qualquer coisa que nos faça mudar a forma de pensar". E que coisa seria essa? "Um projeto como diretor, ou algo por aí. Mas sinceramente penso que nada me vai fazer mudar. Prefiro trabalhar para aquilo que estudei", termina.
Capela: o melhor aluno no futebol e o melhor futebolista na faculdade
A história de Capela não é muito diferente. "Comecei a participar em alguns torneios locais de futebol jovem para aí desde os meus 6 anos...depois entrei para as camadas jovens do Arouca nos iniciados e fui até aos seniores", começa por contar. "Durante esses anos sempre foi possível conciliar os estudos com o futebol de uma forma muito tranquila, pois não havia conflito de horários. Era escola durante o dia e futebol ao final do dia", lembra.
Apesar da paixão pelo futebol, os estudos estiveram sempre em primeiro lugar. "Os estudos sempre me foram incutidos pelos meus pais como algo de extrema importância e desde muito cedo que passaram a ser uma prioridade para mim", reforça.
À medida que foi crescendo e chegando a escalões superiores, Capela começou a sentir mais dificuldades em conciliar futebol e estudos. "Quando cheguei aos seniores, como jogava no Arouca e o Arouca competia nos distritais, a conciliação foi fácil, mas complicou-se com as subidas de divisão, principalmente com a subida aos nacionais, onde o clube já se começava a comportar como clube semi-profissional, treinando em horários que coincidam com os da faculdade. Então fui forçado a encontrar alternativas", explica. Dessa forma, para continuar a estudar, Capela viu-se 'obrigado' a sair do seu clube de sempre, o Arouca e jogar pelo Milheiroense, da 3.ª divisão, até terminar o curso.
A licenciatura, tal como a de Talocha, foi numa área que nada tem a ver com o desporto. "Licenciei-me em Ciências Farmacêuticas na Escola Superior de Saúde Jean Piaget, em Vila Nova de Gaia. Na altura que escolhi o curso pensei em algo que gostasse e, de certa forma, em algo que me desse algumas garantias futuras em termos de emprego, um curso que não estivesse muito saturado", justifica.
E como era Capela visto de um lado e de outro: na faculdade pelos colegas por seres futebolista e no clube pelos colegas por andar a estudar?
"No clube era visto como o melhor aluno e na faculdade era visto com o melhor a jogar futebol", brinca Capela.
"Mais a sério, acho que em ambos os lugares me olhavam, sobretudo, como sendo um bom exemplo", afirma.
Para já, Capela ainda não exerceu nenhuma atividade a nível profissional ligada com o curso, tendo apenas feito alguns estágios em farmácia hospitalar e comunitária. Mas não tem dúvidas do papel fundamental que os estudos tiveram, têm e terão ao longo da sua vida, dentro e fora do futebol.
"Acho que a escola, desde a primária até à faculdade, tem um papel importantíssimo para tudo na vida. Tem a importância do conhecimento, do desenvolvimento pessoal, da preparação para o dia a dia e para o futuro. E serve também como exemplo de resiliência para os meus filhos e para os mais jovens", sublinha.
"Na altura que fiz o curso estava no futebol amador e a maioria dos meus colegas trabalhava e jogava. Hoje em dia já noto nos futebolistas uma maior preocupação em preparar o futuro e as ferramentas para o fazer já são mais do que muitas para potenciar a conciliação entre as duas carreiras", reforça.
Quatro anos mais velho do que Talocha, Capela, de 37 anos, olha com satisfação para a sua carreira, na qual chegou a jogar na I Liga, passou pelo estrangeiro (alinhou no Bravos do Maquis, em Angola) e tenta agora ajudar o Académico de Viseu a subir ao primeiro escalão.
"Orgulho-me de ter conseguido uma formação a nível académico e do trajecto que tenho feito no futebol, apesar de ter chegado ao nível profissional apenas aos 26 anos", destaca Capela.
"Não sei se as decisões que tomei foram a melhores, mas foram as mais conscientes no momento. A única dúvida que me fica é se poderia ter prolongado a carreira numa I liga, mas tenho um orgulho muito grande no que já conquistei. São mais de 300 jogos no futebol profissional!", destaca.
E o futuro? Aqui, ao contrário de Talocha, Capela gostava de se manter ligado ao futebol, olhando para a sua licenciatura apenas como um porto segundo ao qual poderá eventualmente recorrer.
"Apesar de ainda me sentir muito bem fisicamente, com a minha idade não adianta pensar muito para a frente. Se tiver de terminar já a carreira de jogador, vou com toda a certeza procurar algo que me faça feliz. Apesar de ter o curso de farmácia e isso me dar algum conforto em termos de emprego, neste momento tenho muitas duvidas que o vá exercer. Estou mais inclinado para algo ligado ao futebol. O principal desejo que tenho neste momento é estar perto da família, seja qual for a profissão que vá exercer, que me permita estar perto da minha mulher e dos meus filhos", conclui.
Sindicato dos Jogadores apoia e incentiva, mas números mais recentes não são (muito) animadores
O Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF) tem tentado, ao longo dos últimos anos, fazer passar a mensagem de que o futebol não garante emprego. Desta forma, tem procurado oferecer uma oferta formativa aos futebolistas para que tenham, depois, uma inserção mais facilitada no mercado de trabalho.
Estando qualquer carreira desportiva sujeita a condicionamentos como as lesões ou a idade, a ausência de formação académica limitará depois de forma significativa essa integração no mercado de trabalho à margem do futebol, incapaz de absorver todos os ex-atletas.
"O SJPF assume a sua responsabilidade e por isso não poderia estar fora de jogo no que à formação e futura empregabilidade dos seus associados diz respeito. Contudo, é também responsabilidade da sociedade civil, particularmente das organizações desportivas implicadas, encontrarem as alternativas necessárias para fazer frente às necessidades que o sistema desportivo demonstra actualmente e cuja velocidade e dinâmica o Estado não tem possibilidade de acompanhar", escreve Bruno Avelar Rosa, coordenador do Gabinete de Educação e Formação do Sindicato dos Jogadores, no site daquele organismo.
O contexto atual será mais favorável do que há duas ou três décadas, altura em que o futebol, em termos organizativos, estava bem distante das dos dias que correm. Agora, cada vez mais os jovens que sonham enveredar pelo futebol profissional são incentivados também a dedicar-se aos estudos.
Ainda assim, os números mais recentes não são os mais animadores, segundo dados fornecidos pelo Sindicato dos Jogadores ao SAPO Desporto.
Um estudo sobre as habilitações dos jogadores nas Ligas profissionais realizado na época 2015/2016 concluiu que apenas 4% dos futebolista das I e II Ligas tinham um curso superior.
Tratam-se do dados mais recentes disponíveis sobre o assunto, de acordo com o SPJD.
Além disso, o mesmo estudo mostra que nessa época de 2015/2016, na I e II Ligas de Futebol profissional, cerca de metade dos jogadores inquiridos estavam na posse do 12º ano de escolaridade, enquanto só 11% dos jogadores profissionais (I e II Ligas) inquiridos estavam naquela época a estudar. Metade desses 11% estavam a fazê-lo ao nível de Licenciatura.
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