De Cabul a Lisboa são nove mil quilómetros, 13h30 de avião e 93 horas de carro. O Afeganistão voltou a ser invadido pelo medo e pela incerteza quanto ao futuro. Nos últimos dias temos sido invadidos por imagens e histórias que nos chocam. E são muitos os que vêem a história a acontecer de novo.
Há 24 anos, a família Taheri viu-se obrigado à fugir à guerra que os Talibãs acabavam de impôr no Afeganistão, semeando - à semelhança do que acontece atualmente - a incerteza e o medo entre os locais. Em 1997, Omed e Hamid Taheri faziam parte dessa família que partiu à procura de um lugar melhor.
Um grupo de pais, irmãos, tios e primos passaram pelo Paquistão, Irão, Tajiquistão até chegarem a Kharkiv, na Ucrânia. Este percurso foi todo feito a pé. São quase quatro mil quilómetros, num total de 800 horas, divididas por vários meses.
Hamid Taheri fez este trajeto com as chuteiras calçadas.
"Fuji por medo da guerra. Tinha quatro anos. Não me lembro de nada. Quando saímos do Afeganistão foi em busca de uma vida melhor, não tínhamos destino marcado. A Ucrânia foi o país que nos pareceu melhor para viver inicialmente", conta o afegão, hoje com 28 anos, ao SAPO Desporto.
Na Ucrânia ficou por durante 12 anos. Ele e a família depararam-se com muitas dificuldades por terem o estatuto de refugiados. Todos os meses tinham de renovar a papelada e a situação económica não melhorava. Hamid trouxe de Cabul o sonho de ser um jogador de futebol. No país do leste começou por fazer parte de uma equipa de futebol, com sucesso, sendo apresentado como filho do treinador para não pagar as quotas de inscrição. Eram 40 rublos, cerca de 50 cêntimos.
Durante o período na Ucrânia, com pedidos mensais de visto de residência, a família nunca chegou a obter o papel. Até que em 2009 surgiu a oportunidade de se mudar para Portugal, numa altura em que estava a treinar apenas há duas semanas na equipa do Shakhtar Donetsk, uma das mais importantes da Ucrânia
Onde fica Portugal?
Esta foi a primeira pergunta que a família se fez após conhecer a proposta.
"Queríamos uma vida melhor e aceitamos logo, mesmo sem saber onde ficava. Mas conhecia pelo jogadores de futebol: Deco e Luís Figo", contou-nos Hamid, que vive com os pais em Lisboa.
Em Loures, aos 17 anos, começou por procurar clubes onde pudesse mostrar o seu talento. O Sanjoanense foi o primeiro a abrir-lhe as portas, passando pelo ASCEO, Povoense, Pinheiro Loures e Vila Rosário. No ano passado regressou ao Sanjoanense e este ano veste a camisola do Bobadelense.
"A língua não foi fácil, mas aprendemos rápido. A adaptação foi espetacular e fomos bem recebidos. Os portugueses sempre foram simpáticos para nós, mas houve alguns casos em que não se portaram tão bem.."
Hamid, que trabalha atualmente na restauração, não se quis alongar muito neste tema, mas Omed, o irmão mais velho dois anos, não tem problemas em contar-nos o episódio que ainda hoje os magoa.
"Há dez anos, fomos a uma sessão de captação para jogadores profissionais, uma iniciativa do Sacavenense e aceitaram-nos, a mim e ao meu irmão. Até surgiu uma oportunidade para viajarmos para que clubes como Ajax ou Inter vissem jovens jogadores com potencial. Mas recebi uma chamada do Centro de Acolhimento para os Refugiados [na altura ainda tinham esse estatuto] e disseram-nos que não podíamos viajar e eu perguntei o porquê", contou Omed Taheri, guarda-redes do Bobadelense, ao SAPO Desporto.
"Têm de ser os portugueses a seguir em frente e não os estrangeiros!"
Foi esta a frase que Omed Taheri ouviu da boca de Dora Estoura, coordenadora do Conselho Português para os refugiados.
Contatada e confrontada pelo SAPO Desporto, a responsável pela ONG portuguesa respondeu de imediato: "Jamais diria isso."
"Os clubes têm taxa de inscrição diferentes para portugueses e para estrangeiros e privilegiam aqueles que custam menos a inscrever. Na altura, tentou-se até um financiamento para ajudar o clube a pagar a inscrição para que os jovens pudessem praticar futebol. Lutamos diariamente para que eles [refugiados] tenham acesso às oportunidades. Fizemos várias reuniões com a Federação Portuguesa de Futebol e Sindicato de Jogadores para tentar desbloquear estas situações, mas tudo tem as suas limitações, por mais que tentemos", conta-nos Dora Estoura.
Existe discriminação em Portugal?
A Federação Portuguesa de Futebol lançou em julho deste ano a plataforma online Futebol Para Todos, "um novo instrumento proporciona um meio de fácil acesso a todos os agentes desportivos para denúncia de situações e comportamentos discriminatórios com base em raça, etnia, nacionalidade, religião, identidade ou orientação sexual, convicções políticas e ideológicas, situação económica ou outros fatores", pode ler-se no site da organização.
Tentamos averiguar o número de reclamações recebidos até à data, mas a FPF não respondeu ao SAPO Desporto.
Apesar de desconhecer este caso, uma vez que os irmãos afegãos não chegaram a entrar para os quadros do clube, entramos em contato com a direção do Sacavanense, tendo o vice-presidente Carlos Miguel lamentado esta situação.
"Pelo Sacavanense já passaram egípcios, tunisinos, coreanos, chineses, nepalenses... O nosso clube não trata assim as coisas. Temos provas mais do que dadas de jogadores, portugueses ou estrangeiros, que saem para clubes profissionais. Não podemos prender qualquer tipo de atleta, isso é contra a filosofia do nosso clube", disse o dirigente.
João Palhinha, Rui Fonte e José Fonte são alguns dos jogadores que saíram da formação do Sacavenense.
A Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR) tem registado uma tendência de aumento no número de queixas e participações de práticas discriminatórias em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem desde 2014, passando de 60 nesse ano para 436 em 2019i e 655 em 2020, fruto designadamente do reforço da atuação da CICDR, e da informação, sensibilização e literacia de direitos.
Afinal, o que se passa no Afeganistão?
Os talibãs conquistaram, há duas semanas, a capital Cabul, culminando uma ofensiva iniciada em maio, quando começou a retirada das forças militares norte-americanas e da NATO.
As forças internacionais norte-americanas estavam no Afeganistão desde 2001, no âmbito da ofensiva liderada pelos Estados Unidos contra o regime extremista (1996-2001), que acolhia no seu território o líder da Al-Qaida, Osama bin Laden, principal responsável pelos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001.
A tomada da capital põe fim a uma presença militar estrangeira de 20 anos no Afeganistão, dos Estados Unidos e dos seus aliados na NATO, incluindo Portugal.
Uma enorme ponte aérea foi posta em curso, desde a tomada de poder dos talibãs, com aviões de todo o mundo a chegarem ao aeroporto de Cabul, cujos acessos são controlados e que foi tomado por pessoas que querem asilo noutro país.
Depois de terem governado o país de 1996 a 2001, impondo uma interpretação radical da 'sharia' (lei islâmica), teme-se que os extremistas voltem a impor um regime de terror, reduzindo a zero ou quase os direitos fundamentais das mulheres e das raparigas, embora estes tenham já assegurado que a “vida, propriedade e honra” vão ser respeitadas e que as mulheres poderão estudar e trabalhar.
A temer pela nação afegã à distância
Hamid e Omed olham para toda esta situação no Afeganistão com muita apreensão e tristeza, até porque já viram isto acontecer uma vez. Estão preocupados com familiares e com a nação afegã.
"Temos tios e primos que não sabemos nada deles. Não sabemos se estão bem ou se estão vivos. Tem sido impossível entrar em contato com eles", conta-nos Omed, a trabalhar atualmente numa empresa de turismo em Lisboa.
Estes dois irmãos têm a certeza de duas coisas: a primeira é que não vão voltar a viver no Afeganistão; a segunda é que acreditam que se tivessem nascido em Portugal, as suas carreiras de futebol teriam sido muito melhores.
"Quero desejar toda a sorte aos afegãos, que tenham muita força e fé, seja para os que fugiram ou para os que estão a tentar fugir neste momento. Só desejo toda a sorte do mundo". É a mensagem de Omed e Hamid.
Comentários