André Villas-Boas inicia esta quarta-feira, dia 17 de janeiro de 2024, uma espécie de dia zero do FC Porto. Não porque a sua candidatura se sobreporá à história de um clube que soube tornar-se baluarte do norte e do país, com sete títulos internacionais, mas porque independentemente do desfecho das próximas eleições, o clube azul e branco nunca mais será o mesmo.
42 anos depois, pela primeira vez desde a chegada de Pinto da Costa, há real dúvida sobre qual será o futuro do FC Porto. E isso, aconteça o que acontecer, só Villas-Boas o conseguiu fazer ao longo de mais de quatro décadas. A candidatura agora apresentada encontrará um clube dividido, como raras vezes esteve na era Pinto da Costa, e com um impasse entre mãos depois de tantos anos de certeza assentes na devoção ao homem forte dos azuis e brancos.
André Villas-Boas: O homem que quer o lugar do "presidente dos presidentes" do FC Porto
A 23 de abril de 1982, dia em que Pinto da Costa se tornou presidente do FC Porto, André Villas-Boas tinha quatro anos. Provavelmente não se lembrará da tomada de posse e muito menos de Américo de Sá, dirigente que antecedeu o líder azul e branco. Agora, já com 46 anos, muito mudou. Muito, mas não tudo.
Passaram-se 42 anos, mas o presidente dos dragões é o mesmo. Há dias, por ocasião do 86.º aniversário de Pinto da Costa, sócio número 26636 dos portistas, Villas-Boas parabenizou o dirigente mais titulado do mundo - mais de 1000 troféus -, reconhecendo-o como o "presidente dos presidentes do FC Porto". Mas então, impõe-se a questão: o que levará Villas-Boas a querer tomar o lugar do, como referiu, "presidente de todos presidentes"?
Há 14 anos, já enquanto treinador do FC Porto após uma escolha pessoal - e arriscada - de Pinto da Costa, André Villas-Boas dizia estar sentado na sua "cadeira de sonho". Disse-o, antes de um clássico com o Sporting, procurando evitar falar no interesse de clubes europeus no seu trabalho. Afinal, sabe-se agora, havia outra cadeira - um pouco mais acima da hierarquia.
Agora, o lugar que lhe "está destinado", como o próprio já confessou, pode chegar mais cedo do que pensava. E a promessa outrora lançada, de que nunca se candidataria às eleições do FC Porto contra Pinto da Costa, já só estará dependente do próprio dirigente portista para que não seja cumprida. Houve um volte face no percurso do FC Porto a que o antigo treinador não quis virar as coisas.
Reunimos algumas das principais ideias já reveladas por Villas-Boas nas últimas semanas e que servirão de esboço para a apresentação da sua candidatura, ao final da tarde desta quarta-feira, na Alfândega do Porto.
O que defende André Villas-Boas?
Ao longo dos últimos anos, as vozes de protesto relativamente à gestão financeira e desportiva do clube têm subido de tom. De acordo com o último relatório e contas, a SAD do FC Porto apresenta capitais próprios negativos na ordem dos 191,5 milhões de euros, sendo que os capitais próprios da SAD atingem os 175,98 milhões de euros negativos.
Em paralelo, a saída de vários jogadores a custo zero - Taremi pode ser o próximo no final da época - tem revelado a dificuldade da SAD em gerir os contratos em vigor. Um problema que não diz apenas respeito à instituição azul e branca, mas a uma grande fatia dos emblemas fora das chamadas Big-5, sem capacidade para segurar talento perante a dimensão astronómica da concorrência estrangeira, mais poderosa, nomeadamente a árabe.
A recuperação financeira
Villas-Boas cedo defendeu uma "gestão financeira responsável”, que diz ser “fundamental para o sucesso do clube a longo prazo”. Para isso, o antigo técnico lembra que é preponderante "reduzir a dívida" e "garantir o equilíbrio das finanças". Resta saber como.
Um dado que parece praticamente certo é o apoio de Angelino Ferreira à candidatura de Villas-Boas. O antigo administrador da SAD portista, que deixou o clube por divergências com a atual gestão, é visto pelo agora candidato como tendo sido o responsável por uma "década de gestão eficaz, qualificada e rigorosa” ao serviço do emblema azul e branco.
A 27 de Outubro, numa extensa entrevista ao 'Expresso', Villas-Boas deixou já criticava a "forma leviana" como se apresentava o prejuízo das contas da SAD, questionando os prémios recebidos pela administração apesar da situação financeira que os dragões enfrentam.
"O que me parece é que há ponderadores positivos que estão relacionados com a parte desportiva, que acabam por premiar os administradores quando o clube se encontra em ruína absoluta (...) Há uma grande disparidade entre sucesso desportivo e desequilíbrio financeiro e isso corresponde especificamente à gestão da organização. O FC Porto tem gastos absurdos não só na sua massa salarial, mas também nos seus serviços externos, nas comissões da administração" (...) O que mais me choca é a forma leviana e de bom tom e de cavaqueira com que se apresentam contas de 50 milhões de euros de prejuízo. Isso é grave e acho que é isso que leva à saturação atual", criticou.
A nova academia do FC Porto
A construção de uma nova academia de formação já anunciada por Pinto da Costa, um novo centro de rendimento situado na Maia, está na base de mais uma divergência entre a atual direção e os planos de Villas-Boas. O antigo técnico é contra a escolha do local e já apresentou uma alternativa junto ao atual centro de treinos do Olival. Um terreno, segundo o próprio já negociado e com um pré-acordo assinado, que permitiria a extensão da habitual casa da equipa principal e dos escalões de formação.
“Não faz sentido dividir a equipa principal da formação. A nossa alternativa é, em proximidade do atual centro de treinos do Olival, criar um centro de alto rendimento para as equipas profissionais, a equipa principal, equipa B e sub-19. Dotamos as equipas de formação da melhor infraestrutura possível, como é a do atual Centro de Treino e Formação Desportiva do Olival. Este espaço ficará a um quilómetro de distância. Temos um contrato de promessa de compra e venda assinado com o proprietário deste terreno e não teremos nenhum problema em ceder esta posição contratual ao FC Porto caso não sejamos eleitos” (Villas-Boas ao 'Jornal de Notícias', a 2 de janeiro de 2024)
A reformulação da comunicação do clube
Outro tema caro a Villas-Boas está relacionado com a forma como tem sido pensada a comunicação do clube. O agora candidato questiona a estratégia definida e lamenta que, segundo ele, a comunicação seja entregue a Sérgio Conceição, uma espécie de porta-voz na ótica do antigo técnico, condenando a inação dos dirigentes portistas quanto a esta responsabilidade.
"Acho que, naturalmente, uma pessoa que se vê, às vezes, isolada na gestão da organização se encontre, por vezes, em situações de poder absoluto e daí achar que é dona da comunicação da sua própria organização. Isto é muito normal nos treinadores, principalmente nas propriedades, já que, como o dono não está presente, a grande comunicação é feita pelos treinadores, visto que os CEO ou presidentes não estão tão presentes na comunicação", lamentou.
Mas Villas-Boas vai mais longe. "Se a comunicação não for ditada a partir do topo, o treinador rege-a. Como conhecedor do fenómeno diria que esses desencontros têm a ver com a falta de comunicação interna. Dá-me a entender que, no FC Porto, a comunicação está perdida, faz-se a partir das vontades e desejos do treinador. Penso que não deveria ser assim, porque uma organização deveria obedecer a determinados parâmetros de comunicação e creio que as divergências internas acontecem por via de falta de entendimento comunicacional entre as partes", disse ao 'Expresso' a 27 de Outubro do ano passado.
A renovação de Sérgio Conceição
Não raras vezes, André Villas-Boas já confessou publicamente a admiração pessoal que tem por Sérgio Conceição. Aliás, como já aconteceu, vendo-o como o principal responsável pelos títulos conquistados nos últimos anos. Numa das entrevistas concedidas recentemente, no caso ao Jornal de Notícias, a 2 de janeiro, o antigo técnico dos dragões não deixou dúvidas de que, caso vença, será o seu treinador.
“Quando formos eleitos, sentamo-nos com o treinador [Sérgio Conceição] imediatamente ou no fim da época, nos 'timings' que ambos entendermos, para saber o interesse que tem na continuidade”, disse o antigo treinador do FC Porto ao Jornal de Notícias. André Villas-Boas insiste, assim, que tem interesse na continuidade do técnico portista, já depois de ter dito estranhar o facto da direção não ter avançado com um acordo de renovação com o treinador.
"É muito estranho, numa relação tão amorosa como a que o Sérgio tem com o FC Porto e que o seu presidente tem com o seu treinador, que ainda não tenha havido espaço para uma renovação", disse Villas-Boas.
Dias depois, confrontado com estas declarações, Sérgio Conceição afastou o tema para o final da época, garantindo não ser uma prioridade a discussão da sua continuidade à frente do FC Porto.
O futebol feminino no FC Porto
"É um ponto de vergonha e deveria ser um ponto de honra. (...) Corresponde a anos de atraso e falta de visão e antecipação, o que poderá estar relacionado com a falta de infraestruturas para o receber. É uma urgência absoluta que se criem no FC Porto todos os escalões de formação de futebol feminino (...) A entrada no futebol feminino sénior terá de ser feita com uma equipa para ganhar", prometeu Villas-Boas em entrevista o Expresso, no passado mês de Outubro.
"Só há um FC Porto". Será?
13 de novembro de 2023: Assembleia Geral é suspensa após desacatos
É num momento de profunda divisão que se aproximam as próximas eleições, marcadas para abril. Prova disso foi a primeira assembleia geral ou tentativa de, que acabou por ser interrompida por desacatos e atos de violência, com agressões entre sócios filmadas e rapidamente partilhadas nas redes sociais e nos meios de comunicação.
Antes, do lado de fora, uma longa fila esperou horas para entrar, mas o espaço era pouco para tantos associados - uma participação acima da média. Lá no meio estava André Villas-Boas, que repudiou prontamente o sucedido naquela noite. Em causa, entre outros assuntos, estava a revisão dos estatutos com influência direta nas próximas eleições - quer no mês escolhido para a sua realização, quer na atribuição do peso de voto dos sócios mediante a sua idade. A título de exemplo, um sócio com 18 anos não poderia votar nas eleições mesmo que tivesse mais anos de filiação na categoria júnior.
29 de Novembro de 2023: Assembleia Geral já depois cair a revisão dos estatutos (com Villas-Boas a discursar)
16 dias depois, os associados voltaram a reunir-se, mas para discutir e votar o Relatório de Gestão e das Contas Individuais e o Relatório de Gestão e das Contas Consolidadas do FC Porto respeitantes ao período de 1 de julho de 2022 a 30 de junho de 2023. A revisão de estatutos que seria discutida 13 de Novembro a reagendada para o da 20 acabou por cair por decisão do Conselho Superior, desconvocando assim desconvoca assembleia.
Em comunicado, o órgão consultivo, que é comandado, por inerência, por José Lourenço Pinto, referiu que procurava "apaziguar o divisionismo que se quer criar na família portista".
Nessa noite, Villas-Boas discursou e foi interrompido por um sócio, o que levou a advertência imediata do presidente da Mesa da Assembleia Geral. A atitude de Lourenço Pinto mereceu aplausos a André Villas-Boas, que não poupou nas críticas aos administradores da SAD.
"Não existe visão, nem planeamento, nem modelo de negócio que garanta a sustentabilidade financeira do FC Porto. Ao longo dos últimos 12 anos, o passivo mais do que duplicou, o que é revelador da indiferença da atual administração para com a existência do FC Porto enquanto clube de associados. Lamentavelmente, e em face deste cenário, já não vamos lá apenas com retoques na equipa diretiva, que se avizinham, ou recorrendo a meras retóricas comunicacionais, ou ainda com acordos de confidencialidade em contraponto com as mais elementares regras de rigor e transparências e obrigações de uma empresa cotada em bolsa. Pergunto a vossas excelências, membros da direção, se seriam capazes de hipotecar o futuro das vossas famílias à proporção e velocidade com que hipotecam o futuro do FC Porto".
Por fim, deixou um repto à atual administração. "Não tenho outra alternativa que não seja manifestar a minha reprovação às contas aqui hoje apresentadas, condicionando a aprovação das mesmas à devolução da remuneração variável recentemente recebida pela atual administração".
O passado (quase) perfeito no FC Porto. E o futuro?
Depois de ter sido coordenador técnico das Ilhas Virgens Britânicas em 1999, Villas-Boas começou um longo percurso no cargo de observador. Primeiro no FC Porto, de 1999 a 2004, depois no Chelsea, de 2004 a 2008 (ao lado de Mourinho), e por fim no Inter de Milão de 2008 a 2009, altura em que se estreou como treinador ao serviço do Académica de Coimbra. Ao fim de uma temporada com 11 vitorias em 30 jogos, o pulo foi grande. Depois da saída do experiente Jesualdo Ferreira, Pinto da Costa viu em Villas-Boas a irreverência de um treinador ainda com provas dadas, mas sobre quem tinha uma certeza: conhecia o clube como poucos, para além de ser um feroz defensor da cidade e da região norte. A aposta era arriscada, mas dificilmente poderia ter sido mais acertada.
Foi com quatro troféus numa só época - 2010-2011 - que André Villas-Boas se mostrou ao universo azul e branco. As conquistas da Supertaça, do Campeonato, da Liga Europa e da Taça de Portugal - só faltou mesmo a Taça da Liga - oferecem ao antigo treinador portista um estatuto de que poucos se podem orgulhar e que não é indiferente à massa associativa portista.
No final: 58 jogos, 49 vitórias, 5 empates e 4 derrotas. 145 golos marcados contra 2 sofridos. Viria a deixar os dragões com uma média de 2,62 pontos por jogo.
E tudo porque o sucesso não passou ao lado do Chelsea, que viria a conseguir arrancar Villas-Boas da sua "cadeira de sonho". Seguiu-se o Tottenham, o Zenit, o Shanghai e o Marselha. Quanto ao palmarés internacional, destaque para uma Taça de Inglaterra e uma Liga dos Campeões ao serviço do Chelsea (esteve apenas na fase de grupos), e ao serviço do Zenit ao conquistar na Rússia uma Taça, um campeonato e uma Supertaça.
As memórias que deixou no Dragão enquanto técnico são inequivocamente positivas - os números provam-no - e nem o facto de ter deixado o clube logo ao fim de uma época e de forma tão repentina para rumar a 'Stamford Bridge', parece ter retirado força a esta nova aventura de dimensão hercúlea.
André Villas-Boas foi 'Dragão de Ouro' de melhor treinador do ano, meses após a saída para Londres, com o galardão a ser entregue em mãos por Pinto da Costa.
Nos últimos meses, o apoio ao antigo treinador tem chegado de todos os lados - sobretudo através das redes sociais, mas também nas bancadas do Dragão. Há em Villas-Boas uma espécie de imagem quase imaculada que parece atrair alguns sócios portistas, sobretudo a uma fação mais nova de associados. Resta saber se o percurso praticamente intocável enquanto treinador dos dragões pode ser transposto para o que poderá oferecer enquanto presidente. Mas isso, já se sabe, só tempo o dirá. E primeiro, importa lembrar, há que vencer as eleições. Com ou sem Pinto da Costa? Fica a pergunta, que não deverá ficar sem resposta por muito mais tempo.
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