A violência no desporto é um problema real e o futebol um dos seus principais meios de proliferação. Dos escalões amadores, passando pela formação, até ao futebol profissional, árbitros, pais, treinadores e jogadores são constantemente vítimas e/ou causadores de constantes episódios de agressão física e verbal.
Segundo dados da Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto (APCVD), desde 2018 o organismo estatal já instruiu 410 processos envolvendo árbitros. Aplicou 60 medidas de interdição, 48 delas relativas a incidentes no futebol, 10 no futsal, uma no hóquei e outra no voleibol. No futebol, quase metade das interdições ocorrem devido a situações de violência no campeonato distrital (46%) e a sua grande maioria no distrito do Porto, com 28 casos. Lisboa, por exemplo, em segundo lugar, regista 8. 10 meses é o tempo médio de interdição, 870 euros o valor médio da coima aplicada.
O Sapo Desporto falou com dois árbitros, um pai de um jovem jogador de futebol, com o presidente da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol, com a APCVD e ainda com um dos embaixadores do Plano Nacional de Ética no Desporto.
Em comum entre todos eles existe a certeza de que em Portugal há uma comprovada falta de cultura desportiva. A punição é um dos caminhos a seguir, asseguram, mas todos referem a educação e a sensibilização como a melhor via para mudar o rumo do futebol português.
"Morreu? Enterra-se."
Tudo aconteceu num jogo entre os infantis do Beira-Mar e do Académico de Viseu. A partida deveria ter ocorrido dias antes, mas o falecimento de um dos atletas da equipa aveirense, vítima de cancro, impediu que se cumprisse a data inicialmente estipulada.
Confrontado com um pedido de adiamento jogo, a formação beirã consentiu a alteração. Lá se realizou, semanas depois, por ocasião de um feriado. O jogo não corria de feição ao Académico, equipa que tinha aceitado adiar o jogo e, de repente, da bancada, ouve-se um homem gritar para o relvado: "Nunca devíamos ter adiado o jogo. Morreu? Enterra-se!"
"Isto foi dito assim com um vozeirão grande, por segundos toda a gente parou, mesmo os miúdos que estavam no banco ficaram a olhar para trás, para ver quem era, o próprio árbitro, ficou tudo paralisado (...) e passado esse primeiro choque, como seria de esperar, o conflito instalou-se e começaram as agressões. Veio a GNR, que tirou o pai da bancada, levou-o para o carro e lá ficou até ao final do jogo."
O episódio é-nos contado por Vítor Santos, um dos embaixadores do Plano Nacional de Ética no Desporto, função que concilia com a de vice-presidente do Conselho de Arbitragem da Associação de Futebol de Viseu. Tem décadas de ligação ao desporto, nomeadamente na formação de jovem atletas no futebol, e não esconde a profunda insatisfação pelo estado atual do futebol português - da cauda ao topo.
Ainda sobre o caso acima descrito, Vítor fez-nos um enquadramento social dos intervenientes e apresentou-nos o desfecho da história.
"Depois do que aconteceu, o próprio filho sentiu-se mal, os colegas cochichavam entre eles a dizer que tinha sido o pai dele, e o miúdo percebia que estavam a falar disso, o que é péssimo. O rapaz acabou por dar a volta por cima e o pai, que nem sequer acompanhava muito o filho por motivos profissionais - era médico -, acabou por aparecer no treino a pedir desculpa. Foi uma cena muito chocante, mas infelizmente comum", recorda.
"Há muitos insultos por parte dos encarregados de educação, o que já ultrapassou todos os limites e parece não haver modo de parar. Justifica-se a ameaça gratuita? As pessoas não têm cultura desportiva nenhuma, são mal formadas",
A situação acima descrita é, pelo que nos descreve, apenas uma gota no oceano. "Acima de tudo falamos de insultos, falta de respeito, arrogância, prepotência, a necessidade de enxovalhar", acusa Vítor Santos, que também foi treinador das camadas jovens do Académico de Viseu e do Benfica de Viseu.
O problema, diz, é de base, e sobretudo promovido pelos pais. "Na formação, o grande público são os familiares. Há muitos insultos por parte dos encarregados de educação, o que já ultrapassou todos os limites e parece não haver modo de parar. Justifica-se a ameaça gratuita? As pessoas não têm cultura desportiva nenhuma, são mal formadas", lamentou o também autor do livro 'Educar o sonho: ética e envolvimento parental na prática desportiva'.
"Temos situações de presidentes de câmara, vereadores , que a nível nacional têm a importância que têm, mas naquela comunidade têm uma influência tremenda. É o primeiro-ministro lá do sítio. Muitas vezes estas pessoas são as grandes instigadoras, pela sua classe social, pelo seu posicionamento na sociedade".
À primeira vista, Luciano Gonçalves rejeita o rótulo de elo mais fraco colado aos árbitros, mas é o primeiro a reconhecer que a classe é, de facto, a mais desprotegida neste tipo de ambientes. Do amador ao profissional, o presidente da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol identifica quase de cor uma enxurrada de casos recentes em que os juízes foram vítimas de agressões. Ao Sapo Desporto, deixa uma garantia: "não há jogo em que não haja insultos dirigidos aos árbitros, a grande maioria da responsabilidade dos pais, que são a grande percentagem de público", em alguns casos, diz, a totalidade.
"Muitas vezes estamos num jogo de formação e é vergonhoso, o tipo de linguagem, as ofensas, isso cada vez acontece mais. Hoje em dia os pais acompanham muito mais os miúdos do que há vinte anos. É transversal a todas as classes. Vemos até pessoas que pelo nível social é percetível que têm outro posicionamento, outra formação, mas depois nas bancadas transformam-se completamente." Para o responsável máximo dos árbitros portugueses, "as pessoas com mais responsabilidades são, muitas vezes, o principal gatilho para episódios de violência nos campos de futebol.
"Temos situações de presidentes de câmara, vereadores, que a nível nacional têm a importância que têm, mas naquela comunidade têm uma influência tremenda. É o primeiro-ministro lá do sítio. Muitas vezes estas pessoas são as grandes instigadoras, pela sua classe social, pelo seu posicionamento na sociedade. As pessoas pensam: 'se até o presidente da câmara, o vereador, aquele empresário, fazem aquilo, vou também'. São eles, por norma, os mais desprotegidos socialmente, os que acabam por ser punidos depois de terem sido espicaçados. E, num 'flash', recorda-se uma histórica concreta.
"O patrão e o empregado tinham os filhos a jogar na mesma equipa. O patrão provocou, ameaçou o árbitro, o empregado sentiu-se empolgado pelo facto do patrão estar a liderar os protestos. Fez-se ali um escabeche, começa a aquecer a temperatura e lá começou: foi o empregado que saltou a rede, foi ele que deu o pontapé no árbitro, tinha policiamento, a polícia agarrou-o logo, no outro dia foi logo presente a tribunal. Depois o homem detido dizia à juíza: 'mas foram outras pessoas também, não foi o único'...mas isso já não interessava."
"A intolerância ao erro é curta. Temos de compreender que um árbitro que está a começar tem de ter uma margem de erro muito maior do que um árbitro veterano. O erro faz parte do processo de evolução"
'João', nome fictício por querer manter o anonimado, tem 29 anos. É árbitro há 10 anos. Costuma arbitrar as duas principais ligas da Associação Futebol de Viseu, neste caso, a Divisão de Honra e a 1ª Divisão Distrital. No que sobra do fim-de-semana diz participar nos escalões de formação, chegando a fazer entre 4 a 5/6 jogos entre sábado e domingo. Na opinião de 'João' há pouca tolerância para os árbitros que estão a dar os primeiros passos, o que prejudica a respetiva evolução.
"O trabalho dos árbitros que acabaram de tirar o curso é um bocado ingrato. Aliado à falta de experiência, muitas vezes têm falta de confiança neles próprios, já que é um meio totalmente diferente do habitual. Os clubes procuram que os jovens juízes sejam muito mais profissionais do que, por vezes, eles próprios. A intolerância ao erro é curta. Temos de compreender que um árbitro que está a começar tem de ter uma margem de erro muito maior do que um árbitro veterano. O erro faz parte do processo de evolução".
"Não houve um único jogo em que não tivesse sido insultado. E já fiz mais de 100"
Da bancada para o relvado, Miguel Carvalho, árbitro de futebol há um ano, deixa de pronto uma garantia: "não houve um único jogo em que não tivesse sido insultado. E já fiz mais de 100."
Licenciado em Ciências Políticas, o jovem de 26 anos, atualmente a frequentar um mestrado em Filosofia, quis ingressar na arbitragem pela curiosidade de conhecer o outro lado do jogo; um fator potenciado pela menos aptidão com os pés, reconhecida pelo próprio, apesar da paixão pelo futebol.
"Queria tentar perceber o que um árbitro sente quando está dentro de campo, vendo da perspetiva diferente da do adepto ou do jogador. Agora consigo ver o jogo de outra maneira, consigo perceber melhor as decisões dos árbitros, mesmo que pareçam absurdas, diz Miguel, antes de recordar um dos jogos em que foi mais insultado. "O pior caso que apanhei foi o de um homem que passou o jogo todo a dizer 'és uma grande filho-da-****, por isso é que vocês levam nos cornos (...) a tua mulher está a ser comida pelo padre'".
A pessoa em causa tinha cerca de 40 anos e só mais tarde se soube quem era.
"Ao intervalo fui falar com o polícia, queixei-me do que estava acontecer e o polícia disse-me que ia falar com ele. Depois cumprimentou-o, um 'grande bacalhau', percebi que ele o conhecia, e o polícia depois disse-me quem era: o vice-presidente do clube da casa. É grave, porque a falta de respeito, por norma, contagia-se da bancada para o relvado, com alguns jogadores a agirem empolgados pelo que ouvem."
No geral, o árbitro da Associação de Futebol de Lisboa acusa os jovens de alguma falta de conduta desportiva, perante a qual, não raras vezes, a pedagogia não é suficiente.
"No outro dia um miúdo com 13 anos mandou-me para o caralh* e expulsei-o. Com os miúdos tentamos ser mais pedagógicos, mas um 'vai para o caralh*' pode ter muitas nuances. Olhou-me nos olhos e disse-me 'vai para o caralh*. Se me tivesse dito isso de costas, talvez dissesse para ele se ele moderar, isso depende muito da forma como eles protestam", recordando depois a reação do treinador.
"Veio queixar-se de que eu não tinha sido pedagógico. Disse-me que o meu papel era o de educar os jogadores e que isso não cabia aos treinadores". Mas alerta: "também já apanhei treinadores com situações semelhantes, nas quais no final do jogo obrigaram o jogador a ir ao balneário pedir-me desculpas por determinado comportamento", recordou.
"Muitas vezes os próprios árbitros são mais novos do que os jogadores de campo"
As constantes suspeições em relação ao trabalho dos árbitros são transversais a todos os campos do país. "O que é mais comum são as provocações banais, as ofensas gratuitas e intimidações nos campos de futebol, principalmente dirigidos a árbitros, com menos experiência, mais novos, afirma Luciano Gonçalves, da APAF.
"Muitas vezes os próprios árbitros são mais novos do que os jogadores de campo, acontece muito. Por exemplo, num jogo de juvenis ou iniciados, com miúdos de 15, 16, 17 anos, o jogo é apitado por um árbitro de 14 anos (...) O que acontece mais são casos de ofensa, provocações. Depois vamos vendo episódios de alguns pais a chegarem a agressões físicas, como bem sabemos, ou intimidações, por exemplo, chegarem ao pé dos árbitros com todo o tipo de ameaças". Muitas vezes o jogo tem de ser interrompido".
Luciano Gonçalves alerta para o facto de muito dos árbitros serem ameaçados nos dias seguintes aos jogos e explica como e porquê.
"Muitas vezes estes miúdos não têm transporte e fazem o jogos nas redondezas de onde moram e principalmente em meios pequenos, onde todos se conhecem. Os árbitros chegam andar na mesma escola dos jogadores, em alguns casos são colegas. E isto é uma história muito recorrente: miúdos, árbitros, que na escola são incomodados durante a semana por jogadores com quem estiveram no jogo do fim-de-semana. Por norma, nas escolas, não passa disso, de acordo com as informações que nos são reportadas. Mas agora, a provocação, o bullying ao árbitro, isso é recorrente.
"Há pais que mandam o filho sair a meio do jogo em protesto com os treinadores ou com os árbitros"
A violência, alerta o dirigente, não se resume apenas aos árbitros. "Conhecemos muitas situações em que os treinadores foram agredidos por pais. Por norma, porque não põem o filho a jogar - 'veio treinar toda a semana e tu não o meteste a jogar', costumam dizer. Nós temos árbitros que colocam no relatório situações destas, de pais que confrontam treinadores, chegamos ao ponto de haver pais que mandam o filho embora durante o jogo, gritam para ele sair no decurso do jogo."
É o que acontece aqui, neste vídeo, no qual é visível e audível um pai a chamar o filho, exigindo-lhe que deixasse o relvado como forma de protesto.
"A primeira voz que o filho ouve dentro do campo é a do pai. Só depois a do treinador"
A história é-nos contada por Jaime Correia, 44 anos, coordenador do Lusitano Clube Desportivo Arraiolense, há largos anos com presença assídua em jogos da formação de norte a sul do país, também por causa do filho e dos seus três sobrinhos, que jogam futebol.
"Era um jogo de infantis, creio que segundo ano de infantil, e estamos a falar de um miúdo com alguma qualidade. O pai estava na bancada e o árbitro teve um comportamento de que ele não gostou. Começou a gritar para o filho sair do campo, a dizer ao árbitro que ele não tinha categoria para arbitrar os jogos do filho. De repente, acredito que com alguma ansiedade, a criança começou a vomitar. O miúdo lá saiu do campo, o pai disse-lhe 'este gente toda não te merece' e no final, claro, o treinador ficou preocupado com ele".
Com um filho adolescente ligado ao futebol desde os 4 anos, é comum, diz Jaime, chegar ao carro depois de um jogo e ouvir: 'viste aquele pai a ofender o o árbitro?'" E dá uma garantia: "a primeira voz que o filho ouve dentro do campo é a do pai. Só depois a do treinador", figura muitas vezes vítima de situações lamentáveis, sobretudo provocadas pelos pais, afirma.
"Lembro-me de um miúdo de 12 anos, guarda-redes, que tinha pouco jeito", disse Jaime. "Jogou apenas 15 minutos"- tempo mínimo exigido nos regulamentos para cada jogador, a reboque de uma medida que se pretende inclusiva. "Nesse tempo sofreu três golos na sequência de lances básicos. Até eu estava a sentir-me mal pela situação".
Revoltado, o pai, que estava a assistir ao jogo, no final foi ao balneário pedir satisfações ao treinador pelo pouco tempo que o filho esteve em campo.
"Há casos em que os pais têm de perceber que os miúdos estão num processo de formação, mas isso não invalida que haja alguns um passo à frente, é normal. Naquele caso, o resto do plantel assistiu a tudo, em silêncio, e agora até dizem: 'olha, lá vai o pai do tal'".
Também Vítor Santos recorda um episódio de violência nas bancadas entre pais. Um jogo de juniores, com dezenas de pais envolvidos "à porrada, com sangue por todo o lado". Segundo o embaixador do Plano Nacional de Ética no Desporto, o árbitro interrompeu o jogo assim que se apercebeu da situação.
"Nessa altura, vejo todos os atletas a correrem em direção às bancadas para tentar travar os pais, tivemos que nos refugiar no balneário, também com os irmãos mais novos dos jogadores, crianças de 5 anos a chorarem, assustadas, ouvíamos pedras a caírem por cima do balneário, na zona da bancada", descreveu.
"Se o Di María faz uma grande finta, os miúdos vão querer replicar, mas se o Di María tentar encostar a cabeça a um árbitro, na outra semana os jogadores também vão sentir-se no direito de o fazer, porque o ídolo deles também o fez."
Neste âmbito, todos têm responsabilidade: dos clubes maiores aos mais pequenos, dos mais aos menos conhecidos. Mas o exemplo, como sempre, é importante que parta de cima. Aliás, uma ideia defendida pela APCVD.
"Os agentes desportivos com mais visibilidade e mediatismo têm uma responsabilidade acrescida, na medida em que são vistos como exemplo e, como tal, têm um papel fundamental na promoção de comportamentos corretos e na recusa de qualquer forma de violência. Quando os atletas, treinadores ou dirigentes se envolvem em situações de violência, seja em campo ou fora dele, estão a enviar uma mensagem errada aos adeptos e atletas, que podem sentir-se legitimados a adotar comportamentos semelhantes.
Tendencialmente, nas semanas seguintes, verifica-se um efeito de replicação desses comportamentos nos escalões mais jovens e amadores. Por isso, é essencial que os agentes desportivos sejam conscientes do seu papel enquanto referências para os adeptos e atletas, e adotem comportamentos exemplares em todas as circunstâncias", alerta a Autoridade.
Luciano Gonçalves, presidente da APAF, subscreve na íntegra o fenómeno cadeia, que na sua opinião explica a proliferação de episódios de violência por contágio dos grandes meios.
"Têm uma visibilidade muito maior: Tudo o que fizerem de bem, será bem acolhido. Tudo o que fizerem de mal é replicado a nível distrital, seja nos jogadores, nos treinadores, etc.
Quando temos uma situação de violência ou fora do comum é normal assistirmos a situações idênticas noutros campos. Por exemplo, aquele lance do Taynan, na semana seguinte, nos distritais de futsal, começaram a acontecer situações dessas. Se o Di María faz uma grande finta, os miúdos vão querer replicar, mas se o Di María tentar encostar a cabeça a um árbitro, na outra semana os jogadores também vão sentir-se no direito de o fazer, porque o ídolo deles também o fez. É certinho".
O jovem árbitro: "Temos uma taxa de abandono de 70% ao fim do primeiro ano"
Apesar de tudo, garante o dirigente dos árbitros, o recrutamento de árbitros não abrandou, muito pelo contrário. Mas lembra que o facto de haver mais árbitros não significa que não haja falta de juízes.
"Nós não temos menos árbitros hoje do que tínhamos há quatro anos. Temos é um aumento muito significativo do número de jogos. Tínhamos 180 mil atletas e hoje em dia já temos cerca de 230 mil. Tínhamos antigamente uma associação que fazia 300 jogos, atualmente já faz 500. O número de árbitros está estável, é praticamente o mesmo ao longo dos últimos 4, 5 anos, mais 100, menos 100 elementos, não muda muito", alerta o presidente da APAF. O problema está na retenção e muito por causa da desilusão ao fim do primeiro contacto com a arbitragem, sobretudo por causa dos episódios de violência - principalmente verbal - de que são alvo sistematicamente.
"Nós precisávamos de muitos mais, porque temos hoje em dia muito mais jogos. Por ano conseguimos recrutar cerca de 1000 árbitros, o nosso problema está depois na retenção.
"Nós estamos a conseguir ir buscá-los, porque eles até têm curiosidade, aquela coisa do 'deixa-me lá experimentar'. Mas depois quando cá chegam aguentam-se muito pouco tempo, temos uma taxa de abandono de 70% ao fim do primeiro ano.
Porque há sempre uma exceção à regra, Miguel Carvalho diz-nos que faz um balanço positivo do primeiro ano, apesar de todas as vicissitudes. Fá-lo por gosto, não por dinheiro. E é fácil perceber porquê. Ganha uma média de 17 euros por jogo, sendo que cada partida, no seu todo, pode implicar três horas de trabalho. No seu caso, recebe ainda pelas deslocações e tem direito a um subsídio de refeição de 12 euros quando arbitra mais do que um jogo por dia: "às vezes chego a fazer três jogos, das 7h30 às 19h", confessa.
Luciano diz que nas associações de futebol, cada uma tem o seu valor específico de remuneração. "Num jogo de sub-12 a média deve andar à volta de 8 euros, 10 euros. 12 a 15 euros se forem um bocadinho mais velhos. Os árbitros recebem mediante o escalão de jogos que apitam. Com a idade esse valor vai subindo, mas no máximo recebem 30, 35 euros por jogo. Com 4/5 anos de arbitragem, no mínimo, já podem ir a um nacional, aí já ganham alguma coisa, 70/80 euros."
"Nem sempre é assegurada força policial nestes jogos. Por norma a maioria tem, mas não são obrigados. A maior parte dos clubes prefere ter a GNR ou a PSP. Há clubes a recorrer a privados, mas com um obstáculo - para identificar alguém terá de ser sempre uma força policial a fazê-lo"
'João', árbitro que não quis revelar o seu nome verdadeiro, vê o copo meio cheio. "Para um miúdo de 14 anos, ganhar 150/200 euros por mês vai fazer diferença no seu orçamento para que possa comprar algo que os pais não tenham possibilidade."
Sobre o trabalho que tem sido feito pela Autoridade de Combate à Violência no Desporto, presidida por Rodrigo Cavaleiro, todos reconhecem a relevância da sua ação.
Luciano Gonçalves defende que deve existir uma "clara penalização, célere, quando existem casos de violência no desporto. Ou seja, um adepto que é responsável por um ato de violência num jogo de futebol, deve ser condenado em pouco espaço de tempo. A própria associação tem de dar um castigo dissuasor logo naquela semana - isto acontece em Inglaterra e em Espanha, ou seja, não é nada impossível. A nível judicial, a pessoa deve ser logo presente no outro dia a tribunal e ter uma punição a nível pessoal", defende o representantes dos árbitros.
Para isso, alerta Vitor Santos, torna-se crucial o papel das autoridades presentes...quando estão presentes.
"Nem sempre é assegurada força policial nestes jogos. Por norma a maioria tem, mas não são obrigados. A maior parte dos clubes prefere ter a GNR ou a PSP. Há clubes a recorrer a privados, mas com um obstáculo - para identificar alguém terá de ser sempre uma força policial a fazê-lo.
No total, entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2023, a APCVD instaurou 1611 processos de contraordenação e concluiu 1647. (alguns do ano anterior)
94 arguidos com decisões condenatórias definitivas foram posteriormente alvo de processo de execução judicial da coima, por falta de pagamento da mesma.
Foram proferidas 489 medidas de interdição de acesso a recintos desportivos e 421 entraram em vigor em 2023.
O vice-presidente do Conselho de Arbitragem da Associação de Futebol de Viseu afirma que os polícias e os guardas estão mais sensibilizados para este tipo de casos.
"Tudo o que são insultos, violência verbal, a PSP e a GNR estão mais alerta e sensíveis e têm evoluído bastante nesse aspeto, porque já não aceitam determinados comportamentos, não são facilitadores como acontecia antigamente"
Segundo o RAVid - Relatório de Análise de Violência associada do Desporto -, na passada época desportiva (2022-2023) registaram-se 6099 incidentes, 5648 deles no futebol. No computo geral, foram identificados 1426 suspeitos (843 em 21/22), houve 242 detenções (135 na época anterior) e registaram-se 482 atletas impedidos de entrar em recintos desportivos - em 21/22 tinham sido 190. No que toca a interdições por modalidade, o futebol encontra-se no topo da pirâmide com 96,2% dos casos.
O caminho é longo, todos o dizem, mas é também unânime entre todos os entrevistados que há trabalho a ser feito - e bem feito - para que a violência deixe de fazer parte do desporto, nesta caso do futebol. Como nos disse 'João', árbitro há uma década, há um lema que deve ser transversal a todos os elementos do jogo. Todos, sem exceção, fazendo jus ao lema da FIFA: "O respeito vence sempre". E é o que todos desejamos.
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