A atribuição do título de campeão nacional de ralis de 2024 ao piloto norte-irlandês Kris Meeke, após recente decisão do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), “abala muito” o desporto português, reconhece o jurista Carlos Dias Ferreira.

“Em várias modalidades, o campeão nacional assume a representação do país em provas internacionais. Tendo em conta que o Regime Jurídico das Federações Desportivas (RJFD) diz que a representação nacional é feita por cidadãos nacionais, então estamos a ir contra outra norma”, vincou à agência Lusa o advogado da Dias Ferreira & Associados.

A Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting (FPAK) concedeu o troféu nacional de ralis de 2024 a Meeke, após o TAD, em acórdão datado de 11 de fevereiro, ter dado razão à Hyundai Portugal, “sob pena de uma inaceitável distorção da verdade desportiva”.

Além da ação principal, uma providência cautelar interposta anteriormente pelo fabricante automóvel sul-coreano já tinha sido favorável à sua pretensão, fazendo com que a FPAK entregasse em janeiro o título ao primeiro colocado da última edição do Campeonato de Portugal de Ralis, com dois pontos de vantagem sobre Armindo Araújo (Skoda), segundo.

“Quando há tantas situações e até vemos naturalizações de atletas para poderem alinhar por Portugal, isto significa admitir que o país poderia ser representado internacionalmente naquela modalidade por um campeão nacional que não era português. É algo que, desde logo, abala o espírito dessa representação. Por outro lado, abala a própria competição, já que tira o efeito e o propósito da existência de campeonatos nacionais: definir quem são os melhores portugueses nas mais diferentes modalidades”, reiterou Carlos Dias Ferreira.

Considerando a legislação nacional discriminatória e contrária aos regulamentos da União Europeia, a Hyundai Portugal tinha contestado a ausência de atribuição do título a Kris Meeke, de 45 anos, que nasceu na Irlanda do Norte, mas não possui nacionalidade lusa.

“Eu acho que o campeonato nacional tem um figurino muito específico. Ou seja, não há discriminação de ninguém e apenas se procura definir quem é o melhor português, não o campeão de Portugal ou o melhor espanhol, italiano ou francês que vive no nosso país. São competições delimitadas no tempo e com critérios muito objetivos”, avaliou o jurista.

O segundo ponto do artigo 62.º do RJFD prevê que, no caso de modalidades individuais, só podem ser concedidos títulos a cidadãos lusos nas competições organizadas pelas federações desportivas, ou no seu âmbito, que atribuam troféus nacionais ou regionais.

Votando por maioria a favor de Meeke, o TAD reputou essa norma como “inconstitucional e atentatória da verdade desportiva”, lembrando ainda que a Constituição da República Portuguesa indica expressamente as exceções admitidas ao princípio da igualdade entre cidadãos lusos e estrangeiros, no ponto dois do artigo 15, tal como sinaliza os requisitos que a lei deve cumprir quando pretenda restringir direitos, liberdades e garantias, no 18.º.

Carlos Dias Ferreira contrapõe com o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que, nas normas referentes à liberdade de circulação dos cidadãos europeus e à proibição da discriminação em função da nacionalidade, prevê restrições quando se encontrem justificadas através de um objetivo legítimo e com observância do princípio da proporcionalidade.

“A FPAK poderá vir a ter de fazer o mesmo que já fizeram muitas modalidades: se é para atribuir o título só a cidadãos portugueses no campeonato nacional, então não participam estrangeiros. Há federações que atribuem o troféu ao português melhor classificado, mas outras não permitem estrangeiros e, se calhar, essa é a melhor opção. Agora, parece-me profundamente excessivo considerar a norma do RJFD como inconstitucional”, observou.

Carlos Dias Ferreira rememorou que a Federação Portuguesa de Padel (FPP), da qual é assessor jurídico, encara um litígio semelhante ao da FPAK, que resultou do campeonato nacional de 2019 e está pendente de decisão no Supremo Tribunal Administrativo (STA).

Diogo Rocha e Antonio Luque foram considerados campeões nacionais pelo TAD, após um processo interposto por essa dupla luso-espanhola contra a decisão do Conselho de Justiça federativo, que atribuíra originalmente o título a Vasco Pascoal e Miguel Oliveira.

“Também com um voto vencido, o TAD foi numa linha de raciocínio semelhante, embora não tenha considerado como inconstitucional a norma do RJFD. Nós recorremos para o Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), que continua a designar como campeã a dupla que tem um estrangeiro, mas efetuou um raciocínio que o TAD não teve: admitiu a legalidade e não colocou em causa que a atribuição dos títulos lusos nos campeonatos nacionais de modalidades individuais fosse exclusiva a cidadãos portugueses”, partilhou.