Mudou de país, e por inerência, de clube. Trocou França por Portugal. Até aqui, tudo normal, não fosse estarmos a falar de um desporto, râguebi, que, por norma, os jogadores seguem o sentido inverso. Isto é, no campo das migrações desportivas, são os atletas portugueses, nascidos em Portugal, que deixam o amadorismo da bola oval nacional e partem em direção aos campeonatos profissionais e semiprofissionais franceses.

Abel da Cunha, 23 anos, é um raro caso que rumou ao contrário da maré. O pilar esquerdo, 1,83 de altura e 120 kg, trocou a pátria onde nasceu, França pela terra onde os avôs nasceram, Portugal. E foi esse antepassado que lhe abriu a porta da nacionalidade lusa depois de ter sido internacional sub-20 francês.

Jogou no Racing 92 (categoria de esperança), emblema do Top14 (divisão de elite francesa) no qual treinou ao lado lusodescendente e internacional português (Luka Begic) e no Albigeois (Nationale, 3.ª divisão gaulesa).

Hoje, é um dos novos lobos do pós-Mundial 2023. Estreou-se no REC 2024 e repetiu a presença no europeu deste ano que carimbou a qualificação de Portugal para o campeonato do mundo, na Austrália, em 2027.

Joga em Portugal desde o início desta época, na Agronomia, soma 9 internacionalizações e poderá atingir a décima esta tarde. É um dos 23 convocados para o jogo de apuramento do 3.º e 4.º lugar do Rugby Europe Championship, diante a Roménia, no CAR Jamor (15h00), em Oeiras.

Feita a apresentação, o discurso direto salta para a boca do jogador nascido na Normandia.

O desejo que nasceu em Paris

A mudança de seleção foi concretizada no início da temporada 2024-2025, mas tem a raiz em março do ano de 2000, poucos dias antes do mundo “fechar”.

Aconteceu numa partida da 4.ª jornada do Rugby Europe Championship (REC), entre Portugal e a Geórgia, jogado excecionalmente em Paris, no Estádio Jean Bouin, “casa emprestada” dos lobos, num confronto selado com uma vitória georgiana por 39-24.

Abel da Cunha, o Lobo do caminho inverso
Abel da Cunha, o Lobo do caminho inverso Abel da Cunha, o Lobo do caminho inverso créditos: Luís Cabelo

“Lembro-me de assistir ao jogo em Paris, com amigos e o meu avô (português). Disse que talvez um dia jogasse pela seleção portuguesa”, recordou. Quatro anos depois, “aconteceu”, na estreia pela seleção nacional, em fevereiro de 2024, na jornada inaugural do REC, diante a Bélgica. “Significa muito para mim”, sublinhou o lobo Abel da Cunha.

“Quando jogam, é com o coração. Dão-no ao clube e à pátria”

“Adoro particularmente esta atmosfera, este estado de espírito tipicamente português, mais familiar, muito diferente do profissionalismo na França”, realçou.

O râguebi em Portugal ainda não é profissional, “infelizmente”, mas apresenta algo que lhe preenche as medidas do agrado pessoal. “O estado de espírito. Não há em França, o lado de trabalhar para a equipa, trabalhar para algo concreto”, destacou.

“Aqui, os jogadores não jogam pelo dinheiro, jogam pelo prazer do desporto”, sintetizou. “Quando jogam, é com o coração. Dão-no ao clube e à pátria. Adoro isso”, exclamou. “E isso motivou-me mais a vir para aqui”, confidenciou.

Veio. Fez todo o Europeu de 2024 e jogou contra os bicampeões mundiais, África do Sul, na janela de verão da World Rugby, em julho do ano passado.

Já representava a seleção quando expressou o desejo de jogar em Portugal. “O presidente (da Federação Portuguesa de Râguebi, Amado da Silva) disse-me que podia ajudar”. E ajudou. “Não tinham apenas interesse em ter um jogador francês. Não era apenas isso, tinham a vontade de ajudar a pessoa que sou. Apreciei muito”, confessou.

Divisão de Honra de bom nível

Estar no campeonato nacional Divisão de Honra é “uma boa oportunidade de jogar em um bom nível”, afiançou o jogador da Agronomia, clube que ficou de fora do grupo dos seis emblemas que vão lutar pelo título nacional.

Falou sobre o clube e da entrada em Portugal. Dos agrónomos, “conheci alguns jogadores da seleção, José Lima (mudou para o Benfica), o Pedro Vicente e fui descobrindo outros, o Domingos (Cabral)”, refere.

Veste de verde e branco, mas poderia estar a vestir de encarnado. “Estive para ir para o Benfica”, mas o processo atrasou e durante a digressão à África do Sul (julho de 2024) assinou pela Agronomia, vice-campeões nacionais.

“Abrir a porta para os outros jovens de França”

Apesar das raízes estarem “perto de Braga”, de ser filho de pai português, crescido em França e neto de portugueses, avós que fizeram parte da “primeira vaga de emigrantes”, a língua mãe sempre foi o francês, seguida do inglês. “Não falava português em casa”, sorriu.

A viver em Portugal, veste duas camisolas: da Agronomia e dos Lobos. Sonhos? Primeiro, “vim para Portugal para jogar pela seleção”. Depois, “Ajudar, se possível, Portugal a desenvolver o râguebi, a um nível mais profissional”, disse.

Na pele de desbravador de um caminho, pretende “abrir a porta para os outros jovens de França, que são portugueses e franceses, a virem para Portugal jogar”, apontou.

“Aqui, o nível é muito bom”, garante.

Por fim, a pergunta que se impunha. Regressar a França? “Não penso muito nisso”, disparou o pilar que “mata” as saudades familiares em viagens até Braga, cidade onde tem família ou por telefone com a família que ficou em França. “Apoiamo-nos muito”, adiantou.