E se, para jogar hóquei, em vez de patins calçasse umas barbatanas? E se, em vez de deslizar por ringue num pavilhão, mergulhasse no fundo de uma piscina? É desta forma que se joga o hóquei subaquático. Uma modalidade desportiva já com mais de meio século de existência, mas da qual não muitos terão ainda ouvido falar.
"Hóquei quê???", perguntarão mesmo grande parte dos leitores. É, efetivamente, essa a primeira reação de grande parte das pessoas que ouvem falar pela primeira vez deste curioso desporto, conta-nos David Teiga, um dos grandes impulsionadores da modalidade em Portugal, atual treinador e jogador do Estoril Praia, com quem estivemos à conversa para percebermos qual a realidade atual do hóquei subaquático em Portugal e para ficarmos a conhecer um pouco melhor como surgiu, como se desenvolveu e como se joga.
"As pessoas, por norma, quando vão experimentar, ficam agarradas", garante-nos David, que representa também uma equipa no campeonato de França, onde "a realidade não tem nada a ver com a daqui". Em França, explica, existem quatro divisões masculinas, outras tantas no feminino e cada divisão tem mais ou menos 12 equipas.
O hóquei subaquático nasceu em 1954, no Reino Unido, inventado por Alain Blake, um oficial da Marinha Britânica. O objetivo era entreter os mergulhadores nas altura em estes não conseguiam exercer a sua atividade devido às condições climatéricas. Assim, podiam continuar a treinar através do jogo, melhorando a sua movimentação e trabalho debaixo de água.
Inicialmente, foi batizado de 'Octopush'. "Basicamente, eram 8 pessoas a empurrar o disco – 'octo' de oito, 'push' de empurrar", explica-nos David Teiga. Ao longo dos anos foi, depois, sofrendo diversas modificações a diferentes níveis, como o equipamento ou o número de jogadores, de forma a dar dinamismo à modalidade, passando a chamar-se então de underwater hockey (hóquei subaquático).
A pouco e pouco, foi-se também internacionalizando. Atualmente, é praticado um pouco por todo o mundo. Na Europa destacam-se potências como o Reino Unido, a França ou os Países Baixos. Mas já ultrapassou as fronteiras do 'velho continente'. A nível Mundial, a modalidade tem também grande expressão na Nova Zelândia (atual campeã do mundo) e na Austrália. Chegou igualmente aos Estados Unidos da América, ao Canadá e América do Sul. E também já ganhou expressão em países como a África do Sul.
Mas, afinal, como se joga o hóquei subaquático?
"Joga-se 6 contra 6, com quatro suplentes e substituições ilimitadas. Quanto ao material, temos uma luva para proteger a mão, um stick que tem no máximo 30 centímetros de comprimento e um disco com 1,3kg de peso [de chumbo, com revestimento de borracha]. O objetivo é empurrar ou rematar a bola para o fundo da baliza", explica David Teiga. "A parte gira é que, a nível de treinos, podes treinar misto, com vários escalões, porque cada pessoa tem as suas capacidades, mas consegue-se ajustar os treinos", acrescenta.
É praticado numa piscina com dimensões entre 20-25 metros de comprimento e 12-15 metros de largura, devendo ter uma profundidade mínima de 1,80 metros e máxima de 3,65 metros. O ideal será ter 2,20 metros de profundidade constante. Em cada uma das extremidades da piscina, no fundo da mesma, está colocada uma baliza com 3 metros de comprimento e 18 cm de largura. O jogo desenrola-se no fundo da piscina, factor que o torna tão desafiante: é jogado em apneia e implica uma movimentação constante dos atletas, seja a nadar para se deslocarem, a virem à superfície para ganhar fôlego, ou a mergulharem, depois, para a jogada.
"Quando estamos cá em cima e vemos o disco, temos de pensar como vamos descer, porque se descermos em linha reta o disco já não vai lá estar quando chegarmos. É muito giro porque, como estamos com um tubo na boca, não podemos dizer 'passa a bola'. Tem de confiar nos colegas e prever movimentações. Tudo isto torna este desporto muito giro. É super-bom em termos do sistema cardiovascular, porque tem a parte da natação, em que temos de nos deslocar à superfície para nadar, tem a parte da apneia, que ajuda a trabalhar também os músculos respiratórios, e depois é um desporto de equipa e que exige também muita destreza mental", sublinha David.
Pode haver quem veja semelhanças com o polo aquático, mas não serão tantas como isso. "Eles até nos chamam os limpadores dos fundos. Mas é giro, porque a reação, sobretudo dos miúdos, é ótima. Para miúdos que andam na natação e chegam aos 10/12 anos e já estão fartos de fazer piscinas, é uma ótima opção", sublinha David Teiga.
Em termos de materiais, não é um desporto caro. A máscara e o tubo usados para respirar podem comprar-se por 20 euros e os tacos também não ficam por mais do que 50 euros. As barbatanas, têm preços a partir dos 30 euros e algumas duram muito tempo. As luvas podem até ser os próprios jogadores a fazê-las. "Para começar na modalidade, com 70 euros consegue ter-se todo o material necessário", garante-nos David.
"As pessoas começam por se assustar com o facto de ser praticada em apneia. Mas ao início os treinos são muito simples"
E o que torna o hóquei subaquático tão especial para quem o pratica? "É uma modalidade muito fácil de se começar. As pessoas começam por se assustar com o facto de ser praticada em apneia. Mas ao início os treinos são muito simples. Mesmo quem não nade muito bem, ou não tenha muita capacidade, basta conseguir ficar dez segundos lá em baixo", explica-nos David Teiga, que curiosamente - ou não - profissionalmente também está ligado às águas: é coordenador de operações marítimas.
"É um desporto bastante social, que potencia a interação e que tem uma grande longevidade. Por exemplo, eu tenho 41 e sinto-me nas minhas melhores capacidades para jogar. Na equipa onde jogo em França tenho dois colegas mais velhos, um deles acabado de fazer 50 anos", reforça.
Margarida Araújo, outra praticante da modalidade com quem falámos e que, tal como David, também se desloca regularmente a França para representar uma equipa local, destaca os mesmos aspetos.
"Tem a parte engraçada de ser em apneia e cria uma grande ligação com as pessoas. Já pratiquei outros desportos e neste parece que se cria uma ligação ainda maior entre os praticantes. Seja os de cá, seja quando vamos lá fora, a outros países. Acaba por se criar uma comunidade próxima. Conseguir ter um desporto de equipa dentro de água cativa-me muito", destaca a atleta de 29 anos, fisioterapeuta de profissão.
"É um desporto que tem partes muito explosivas, mas depois também é necessária resistência. É um desporto fisicamente exigente. Mas, por outro lado, não há muitas lesões, por ser dentro de água. Há só algumas lesões traumáticas, por levarmos com um calcanhar ou com o disco", prossegue.
Quem lhe introduziu o bichinho do hóquei subaquático foi a irmã, que chegou a à modalidade através do seu treinador de natação da altura. "O treinador falou-lhe do hóquei, ela começou a jogar e eu na altura jogava basquetebol. Como também sempre tinha feito natação, embora não de competição, e gostava de desportos de equipa - por isso a natação já me aborrecia um bocadinho – o hóquei subaquático conquistou-me, por ser dentro de água e em equipa…era completamente diferente", recorda Margarida.
"A minha irmã continua a jogar. Ela está na Austrália há três anos e pratica lá. É um campeonato e uma realidade totalmente diferente", sublinha.
E em Portugal, como surgiu?
Em Portugal, efetivamente, o cenário é bem distinto. E já foi melhor, como nos explicaram David e Margarida.
A modalidade surgiu oficialmente no nosso país em 2007, embora antes disso tenham ocorrido algumas experiências por parte da entidade responsável, a Federação Portuguesa de Atividades Subaquáticas. E logo em 2008 jogou-se o primeiro Campeonato Nacional, verificando-se um crescimento progressivos e significativo do número de equipas e de praticantes.
David Teiga contou-nos como foram os primórdios do hóquei subaquático em Portugal e recordou os seus primeiros contactos com a modalidade.
"Eu trabalhava como professor de bodyboard e o padrasto do meu patrão, que fazia pesca submarina, foi fazer uma viagem fora. Viu o desporto, gostou e achou interessante começar a jogar. Comprou o material para a família e amigos jogarem. Alugávamos uma piscina e começámos a jogar, meio na brincadeira. Até que um rapaz espanhol que já tinha jogado em Espanha começou a jogar connosco. Foi ele que nos começou a ensinar a jogar melhor", lembra.
"Em 2007 fomos a Espanha jogar num torneio, como convidados. Foi aí que começámos a levar isto mais a sério. Falei com a Federação, disse que gostávamos de ir ao Campeonato da Europa e eles disseram que para tal tinha de ser criado um campeonato. Assim, em março de 2008 fez-se então o primeiro campeonato nacional, com seis ou sete equipas", recorda.
"A partir desse momento o hóquei subaquático começou a progredir bastante bem em Portugal. Os clubes começaram a ter mais jogadores e alguns tinham mesmo mais do que uma equipa. Chegámos a ter 11 equipas a disputar o campeonato nacional. Em 2008 jogámos então o primeiro Europeu, que serviu de aprendizagem. Em 2009 fomos ao Campeonato do Mundo, em 2010 organizámos nós mesmos o Europeu e ficámos em 6.º lugar. Em 2011ficámos em 9.º no Mundial, também em Portugal. Em 2013 voltámos a ficar em 9.º no Mundial", relata.
Ascensão e queda do hóquei subaquático em Portugal
A ascensão foi, portanto, meteórica e parecia destinada a não parar. Mas, de repente, tudo mudou. Desentendimentos entre federação, clubes e atletas levaram a que a modalidade estagnasse e sofresse mesmo um acentuado retrocesso no nosso país. A COVID-19 também não ajudou.
"A partir daí, a modalidade entrou um pouco em declínio em Portugal. Isto porque em termos federativos deixou de haver tantos apoios. Claro que cada lado terá a sua versão, mas o que aconteceu foi que nós estávamos a ficar bastante bons e queríamos dar ainda mais passos em frente. Havia atletas que levavam o treino muito a sério e outros que levavam o hóquei subaquático mais numa recreativa, mas que também achavam merecer uma oportunidade na Seleção. Perante esta pressão, a federação determinou que teriam de ir à Seleção jogadores de todos os clubes. Gerou-se alguma confusão e não nos deixaram ir ao Mundial seguinte. Muitos clubes – sobretudo os de Lisboa - deixaram de achar que fazia sentido ir aos campeonatos nacionais e estes que acabaram por parar", explica David.
Um lamento partilhado por Margarida Araújo. "O campeonato estava a crescer, por isso era mais motivador. Neste momento, infelizmente, está mais parado. Naqueles primeiros anos foi muito interessante, porque estávamos a conseguir cativar pessoas, as equipas estavam a crescer e conseguíamos ter um campeonato melhor. A partir daí, infelizmente, a coisa começou a morrer um bocadinho. Eu própria estive à volta de três anos parada, por motivos profissionais". conta-nos.
Os campeonatos nacionais voltaram em 2017, com a entrada de um novo responsável a gerir a modalidade na federação, e Portugal voltou a a ir a um Campeonato do Mundo, em 2018, bem como ao Europeu de 2019.
Mas, em 2020, novo obstáculo surgiu. "Em 2020 tínhamos tudo preparado para irmos ao Mundial. Tínhamos arranjado um patrocinador que pagava deslocação e alojamento, porque a federação não tinha capacidade para pagar essa parte, apenas pagava inscrição e equipamentos. Só que entretanto veio a COVID", lembra David Teiga.
"Quando os restantes desportos começaram a voltar, em 2021, a federação não fez campeonato (...) e recusou retomar a seleção"
O hóquei subaquático, como vários desportos praticados em piscina, foi dos últimos a ter autorização para regressar à ação. E, quando regressou, regressaram também as complicações a nível federativo. "Ainda conseguimos alterar tudo para 2021. Só que quando os restantes desportos começaram a voltar, em 2021, a federação não fez campeonato de hóquei subaquático, tal como 2022, e recusou mesmo retomar a seleção". lamenta David. O SAPO Desporto tentou falar com a Federação Portuguesa de Atividades Subaquáticas sobre estas questões, mas não obteve resposta.
A realidade atual
Todos estes problemas levaram, naturalmente, a uma redução do número de praticantes. "Sim, baixou bastante. Sei que neste momento, em termos de equipas temos em Lisboa o Estoril e o Clube de Natação da Amadora a treinar. Em Coimbra há uma equipa, os Sharks, e no Porto sei que os Zuppers também continuam a treinar. O problema é que para cativar as camadas mais jovens, não havendo provas e campeonatos, os miúdos não aparecem, porque não sentem o bichinho da competição...", explica David Teiga.
Sem que a federação organize os campeonatos ou promova a modalidade, têm sido são os poucos clubes que resistem a tentar dar o ímpeto de outrora à modalidade.
"No nosso caso, no Estoril, falámos com o clube e estamos a participar numa Liga semi-profissional em França, mas porque temos um patrocinador que nos ajuda e o clube também nos ajuda bastante. Porque por cá não temos provas para competir. Eu cheguei a ser secretário-geral da federação e na altura organizámos os campeonatos com a ajuda dos clubes, no que fosse preciso. Mas não podem ser os clubes a tratar de tudo e a federação a ir lá praticamente só homologar. As federações têm outras facilidades que os clubes não têm. E há pessoas que continuam a querer trabalhar nisto", garante David.
"É triste ver que estávamos a crescer tanto e a começar a dar cartas a nível internacional e depois…"
"É triste ver que estávamos a crescer tanto e a começar a dar cartas a nível internacional e depois…", prossegue. "Neste momento temos sete atletas nacionais - cinco masculinos e dois femininos - a jogar lá fora. E o nosso nível técnico é muito bom. Faltará ritmo e experiência, que viriam das competições internas. Queremos poder provar que somos capazes de fazer coisas boas e queremos que a modalidade regresse ao desenvolvimento que estava a ter a nível interno."
Que futuro?
Perante este cenário, o que desejam David Teiga e Margarida Araújo para o futuro do hóquei subaquático em Portugal?
"Espero que a federação perceba que este é um desporto com muito para crescer em Portugal. Têm de perceber que os clubes estão aqui para ajudar e querem competir, ter seleções nacionais. Nós fazemos isto – damos treinos, fazemos demonstrações junto das crianças – por gosto e amor à modalidade. Não ganhamos dinheiro com isso. Só pedimos que este esforço nos seja retribuído em oportunidades e que não nos ponham travões", pede David. "Tem de haver uma sinergia entre federação e clubes".
"No ano passado foi cancelada quase em cima da hora uma prova mundial que estava prevista para a Turquia e algumas seleções perguntaram se podiam vir cá a Portugal treinar. Em menos de nada conseguimos ter cá França, Inglaterra, Espanha e Argentina a treinar juntamente connosco, Estoril Praia. E já chegámos a dar formação a um clube angolano, que agora até participa em provas na África do Sul e que também já cá veio treinar connosco. Isso mostra que temos capacidade!", conclui David Teiga.
Já Margarida Araújo gostava, para além disso, de ver mais mulheres a abraçarem a modalidade.
"Lá fora há muitas mulheres a jogar hóquei subaquático e tenho pena de cá não haver"
"Há pouca cultura de desporto em Portugal. Ainda mais nas mulheres. E claro que isso dificulta depois haver praticantes femininas, sobretudo numa modalidade desconhecida como a nossa. Lá fora há muitas mulheres a jogar hóquei subaquático e tenho pena de cá não haver", diz-nos. "Mesmo assim, em 2013 conseguimos juntar uma equipa feminina para irmos ao Mundial na Hungria, com algum esforço, mesmo levando menos jogadoras que as outras equipas, e foi uma experiência incrível só por termos conseguido", lembra.
"Para o futuro gostava que voltássemos a ter um campeonato nacional. E gostava de ver muito mais raparigas. Que conseguíssemos ter pelo menos uma divisão feminina seria o ideal. Mas neste momento, em Portugal, a treinar, somos mesmo muito poucas. Para convencer alguém a jogar, não há como experimentar. Porque visto de fora pode parecer uma grande confusão, mas depois de experimentar vem a parte engraçada de estarmos debaixo de água, com o disco de um lado para o outro…só experimentando, mesmo. Para passar da curiosidade à prática", termina.
Continua curioso? Então terminamos com imagens de alguns dos melhores momentos do campeonato francês de hóquei subaquático, onde David Teiga e Margarida Araújo jogam atualmente. Talvez ajudem a convencer mais gente a responder ao repto de Margarida e a passar da curiosidade à prática.
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