Quando em 8 de março de 1971, Muhammad Ali e Joe Frazier pisaram o ringue instalado no Madison Square Garden em Nova Iorque sabia-se que se estava na presença de algo muito maior do que um combate de boxe. No ringue não se enfrentavam apenas Ali e Frazier, o duelo era sim a melhor metáfora para o confronto de uma sociedade norte-americana que se encontrava amplamente fragmentada.
Também por isso foi apelidada como a ‘Luta do Século’. Não é um exercício de simples aritmética mergulhar na atmosfera da altura, 50 anos depois da solene ocasião. Uma atmosfera eletrizante rodeou o combate, pejada de figuras de nomeada dos mais diversos quadrantes. À beira do ringue, nas bancadas, sentavam-se as mais proeminentes figuras de América. O barão da droga Frank Lucas vestiu o mais extravagante casaco de peles vison - no valor de 100 mil euros - para a ocasião. Ex-presidentes, atores, músicos como Bob Dylan davam cor e estilo às cadeiras do pavilhão. Frank Sinatra, de máquina em punho, assumiu o papel de fotógrafo para a revista Life.
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Todos queriam testemunhar o regresso de Ali, quatro anos depois de ter comprado uma guerra contra os tribunais e o congresso norte-americano que o tinham afastado dos ringues. Ícone máximo da modalidade, ainda com o nome de Cassius Clay – antes de se ter convertido ao islão – Ali somou uma série de 19 triunfos – 15 dos quais por KO – depois do primeiro triunfo enquanto profissional em 1960 contra o norte-americano Tunney Hunsaker.
Em 1964 subiu ao topo da hierarquia, conquistando pela primeira vez o título de campeão de pesos pesados contra o então campeão Sonny Liston. Em plena guerra do Vietname, a escusa em alistar-se no exército levou a que fosse banido da modalidade, custando-lhe o título mundial, para além de ter sido condenado a cinco anos de prisão. Ficou célebre a frase de Ali: "Não tenho nada contra esses Vietcongs."
O processo arrastou-se até ao Supremo que acabou por dar razão ao pugilista nascido em Louisville no Kentucky, que anulou a condenação, alegando que as convicções éticas, morais e religiosas do pugilista eram legítimas.
David Pimenta, politólogo: "Sem dúvida que Ali ganhou a eternidade enquanto um dos melhores boxeurs da história, mas também enquanto figura cimeira do Movimento por Direitos Civis nos EUA, a par de políticos profissionais como Martin Luther King ou Malcolm X."
Era este o outro lado de Ali. "O combate entre Ali e Frazier tem uma dimensão política porque um dos lutadores era precisamente Ali – um colosso mediático que raramente deixava de fazer política nas suas aparições públicas.”, refere o politólogo David Pimenta em declarações ao SAPO Desporto.
"Em 1971, Muhammad Ali era já uma figura política madura com expressão internacional e foi sem dúvida um dos principais pontas-de-lança dum movimento identitário afro-americano que começou por ganhar uma enorme preponderância na sociedade e política norte-americana entre os anos 50 e 60 do século XX. Ao longo da sua vida, Ali não só entrou no debate mediático abordando temas políticos como a luta de classes, a liberdade religiosa, a segregação racial, etc, como também atuou politicamente, nomeadamente na sua recusa em combater no Vietname ou com a sua ligação íntima à Nation of Islam – uma organização eminentemente política", acrescenta.
Ali estava assim em condições de disputar o seu título mundial, que era seu por direito, contra um também prominente 'boxeur' nascido na Carolina do Sul. Joe 'Smoking' Frazier venceu o torneio olímpico em 1964 nos Jogos Olímpicos de Tóquio, à semelhança de Cassius Clay que subiu rapidamente ao topo da modalidade depois de conquistar a medalha de ouro em Roma (1960). Ali mudou o mundo do boxe, com o seu trabalho de pés e sagacidade...Frazier era um dos pretendentes ao trono.
Foi em Filadélfia que "Smokin" começou a moldar a sua arte. Treinava num talho, onde melhorou a força e a precisão dos seus punhos, esmurrando pedaços de carne - a história acabou por servir de inspiração ao filme Rocky, que teve Silvester Stalone como protagonista.
Durante os anos de interregno forçado de Ali, Frazier fez o seu caminho ao conquistar o título mundial de pesos pesados, derrotando Jimmy Ellis em 1970. Frazier chegou mesmo a emprestar dinheiro a Ali e fez campanha de forma ativa para que este regressasse aos ringues. ‘Smokin’ Joe não se mostrou apenas generoso, queria sim colocar à prova a invencibilidade do até então imbatível "The Greatest".
Os dois atletas batiam as luvas no arranque da "Luta do Século" nas mesmas condições, com um registo imaculado. O confronto entre ambos não decidia apenas o próximo campeão do mundo, mas sim o melhor de todos, servindo para afirmar uma personagem em particular.
“Hoje em dia qualquer pessoa que agarre no Facebook, no Twitter ou no Instagram consegue dizer o quer, Ali conseguiu com o boxe abrir esse espaço, graças à sua personalidade, irreverência e até alguma arrogância. Conseguiu ser não só um homem do boxe, como do mundo”, afirma o especialista e comentador de boxe João Vidal.
Mas não foi definitivamente a primeira nem a última vez que o mundo do desporto se viu misturado na política "O desporto e a política andam frequentemente de mãos dadas. Não é um exclusivo do momento histórico em que o combate ocorreu. Há múltiplos exemplos em qualquer parte do mundo, sempre que há uma competição desportiva entre atletas representantes de nações com divergências políticas. Vejam-se os casos mais recentes do jogo de futebol entre a Sérvia e Albânia ou do combate de judo entre um iraniano e um israelita", esclarece David Pimenta.
O combate histórico
Frente a frente, dois rostos que representavam duas Américas: O homem do povo e defensor da comunidade negra, contra o que Ali dizia que Frazier era o epiteto: Uma América conservadora e mais complacente.
Um multidão de 20 mil espectadores reuniu-se à volta do ringue, vários milhões assistiram ao vivo na televisão num tempo em que os expoentes máximos da modalidade tinham uma enorme dimensão social e cultural. Mas o boxe deixou de combater sozinho.
"Nesta altura o boxe compete com o MMA e com o UFC (Liga maior das artes marciais mistas). Antigamente eram os grandes combates de boxe que faziam mais burburinho, o que as pessoas queriam ver”, relembra João Vidal. "Se se falar com qualquer pessoa de 40, 50 anos, qualquer pessoa sabe quem foi o Ali, o Mike Tyson. A minha sogra não sabe quem é o Tyson Fury” – o atual campeão de pesos de pesados da divisão WBC”, argumenta.
João Vidal, especialista e comentador de boxe: "Se se falar com qualquer pessoa de 40, 50 anos, qualquer pessoa sabe quem foi o Ali, o Mike Tyson. A minha sogra não sabe quem é o Tyson Fury"
Antes de disputar o 'combate do século', Ali 'aqueceu' as luvas frente a Jerry Quarry e Oscar Bonavena. Só mais tarde, após o desaire com Joe Frazier, Ali viu retiradas as acusações que tinha contra si. Odiado pelos segracionistas brancos pelas posições políticas, foi estranhamente admirado pelo que fez no ringue por quem defendia ideais opostos: "O perfil de Ali encaixava-se na de um self-made man americano que viveu segundo as suas convicções e triunfou contra todas as probabilidades. Certamente que este lado “romântico” da sua vida apelou a americanos de todas as origens, que se reviram na vida de luta de Ali", destaca David Pimenta.
A luta
O 15.º assalto foi o 'climax' de um dos mais intensos combates da história do boxe entre dois lutadores que tinham contas a acertar no ringue. Ao longo de 15 rounds, Frazier demonstrou uma capacidade pouco vista para um peso pesado, na forma como deslizou pelo 'terreno de jogo'. No 15.º assalto e round final, Frazier derrubou Ali com uma esquerda. Percebeu-se - finalmente - que Ali também era capaz de levar um murro (Nunca até então o 'The Greatest' tinha sido ferido daquela forma) e resistir. Frazier venceu por decisão unanime, com Ali a averbar a primeira derrota na carreira.
Em janeiro de 1973 viria a perder o título para George Foreman. Ali voltaria a recuperar o título que foi dele num combate contra Foreman naquele que ficaria conhecido como o "Rumble in the Jungle", disputado em Kinshasa, no antigo Zaire. Os dois pugilistas viriam a reencontrar-se em mais duas ocasiões. Em 1974 - num combate de exibição com vitória para Ali. Mais tarde em 1975, em Manila, capital das Filipinas, os dois lutadores enfrentaram-se com Ali a levar a melhor por KO, apesar de ter reconhecido mais tarde que nunca tinha "estado tão próximo da morte."
Era o epílogo de uma trilogia histórica. Contudo, a intensa rivalidade entre dois dos maiores de sempre da modalidades abriram feridas que demoraram muitos anos a sarar. Sobretudo nos métodos utilizados por Ali para provocar o adversário antes do 'Combate do Século, ao acusá-lo de ser um subserviente dos homens de raça branca. Mais tarde, em entrevista ao New York Times em 2001, Ali mostrou-se arrependido. Frazier acabou por perdoar o antigo némesis.
O fim das rivalidades históricas?
O boxe, ao dividir o mediatismo com a UFC e com a máquina promocional liderada por Dana White, nem sempre tem sido falado pelas melhores razões. Se desportivamente assistimos recentemente a grandes duelos com Tyson Fury e Oleksandr Usyk a imporem-se nos combates para o título de WBC e WBO contra Deontay Wilder e Anthony Joshua, respetivamente. Por outro lado, os lutadores já retirados procuram sobretudo 'engordar' a conta bancária, colocando em risco o prestígio outrora conquistado. Ainda recentemente, Floyd Mayweather participou num combate de exibição contra o 'youtuber' Jake Paul.
"O que acontece hoje em dia é que os lutadores não se preocupam tanto em manter a imagem de supercampeões", como aconteceu com o [Evander] Holyfield que foi derrotado [de uma forma confrangedora] frente ao brasileiro Belford ou em relação ao combate do Mayweather com o Jake Paul", destaca o especialista em boxe João Vidal. "Olhando para o combate, como arte nobre, não acho a ideia mais bonita. Em termos de divulgação foi bom porque vai trazer mais adeptos para o boxe", vaticina.
João Vidal: "O que acontece hoje em dia é que os lutadores não se preocupam tanto em manter a imagem de supercampeões"
Com menor ou maior importância histórica não é expectatável que as rivalidades deixem de existir, pelo menos enquanto a competição ainda for o âmago da modalidade. "Duelos com a dimensão como a de Ali vs Frazier não me parece, agora temos as rivalidades mais instantâneas. 'Acaba o combate, dão o abraço e acaba tudo'. As rivalidades vão sempre acontecer independentemente da presença de outros elementos [extra boxe]. Eu também sou um pouco contra as rivalidades que são muitas vezes incutidas aos atletas pelos promotores e não são um bom exemplo. Vemos sempre aquelas picardias...O boxe não é isso e está muito acima das rivalidades. O boxe é a arte nobre e está nos Jogos Olímpicos desde sempre”, completa.
Decorrido meio século sobre o evento que parou o mundo há quem considere que o boxe não tem vindo a perder influência: "O Ali como personagem que foi no desporto teve um impacto muito grande na sociedade. Mas acredito que muitos conheçam o Anthony Joshua, mesmo que não sejam adeptos do boxe, assim como o Muhammad Ali", garante Pedro Matos, um dos pugilistas portugueses de maior nomeada - com um saldo profissional de 7-3. Mesmo tendo em conta a concorrência do MMA, o 'boxeur' acredita que a modalidade tem tudo para resistir, até pelo lado singular desta forma muito particular de luta.
Pedro Matos: "No boxe as armas que nós temos são muitos mais reduzidas em comparação com outros desportos de combate
"O boxe está bem e recomenda-se e não é por acaso que vimos o estádio do Tottenham cheio para o embate entre o Anthony Joshua e o ucraniano Oleksandr Usyk. (...) As armas que nós temos são muitos mais reduzidas em comparação com outros desportos de combate. Acaba por ser um jogo de xadrez...Temos uma área de ataque mais curta, um recurso de armas mais pequeno. É um jogo tático para encontrar uma estratégia para vencer o adversário. Coloca por isso uma exigência diferente e é por isso que fascina”, completa.
Se uma personagem vinda do espectro do boxe irá ganhar a eternidade como o fez Ali é difícil de dizer. Certo é que a modalidade terá forçamente de se adaptar aos novos tempos para continuar a ser vista como a ‘gentleman´s art’. Um desporto que advoga a disciplina e o respeito pelo adversário.
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