"Mais de 8 milhões de toneladas métricas de plástico entram no oceano anualmente. Microplásticos já foram encontrados na nossa água potável, alimentos e até mesmo na placenta humana. Para controlar o problema da poluição plástica, os nossos atos importam. Não se trata de limpar as praias, mas de consciencializar e aumentar a pressão sobre os criadores de políticas. Demasiado lixo é produzido para ser manuseado de forma eficiente", é com este mote que Andreas Noe procura fazer o seu melhor pela redução do lixo.
Estima-se que a população mundial produza 3,5 milhões de toneladas de lixo por dia, dez vezes mais do que era registado há um século. Já cada português produz cerca de 512kg de lixo por ano.
A viver em Portugal há vários anos, Andreas Noe dedica a sua vida a recolher o lixo que esses mesmos portugueses tanto produzem, principalmente nas praias. Desde garrafas de plástico, palhinhas, cotonetes, maços e beatas de cigarros, sacos de plástico e latas, é possível encontrar um pouco de tudo nos areais das praias portuguesas.
A percorrer Portugal de Norte a Sul, o alemão tenta a todo o custo retirar esse lixo das praias, mas também alertar os portugueses para a excessiva produção de lixo que representam, ao mesmo tempo que tenta ensinar a população que pequenos gestos podem ajudar em muito o planeta em que vivemos.
Nessa cruzada por um país mais limpo, Andreas Noe começou o projeto The Trash Traveler e vai pedalar por todo o país para recolher o lixo.
A mudança para Portugal
Em 2014, Andreas Noe visitou Portugal em turismo para "aproveitar as praias, a natureza e as ondas". Alguns anos depois, o biólogo molecular alemão regressou ao nosso país e não voltou a sair.
"Decidi voltar para dar continuidade à minha carreira na biomedicina. Não queria ser apenas um turista, queria viver perto do oceano e saber mais sobre a cultura portuguesa. No entanto, comecei a dedicar-me à sensibilização e acabei por avançar com o projeto The Trash Traveler em Portugal", explica.
Há cinco anos a viver em Lisboa, num quarto em casa de um amigo, Andreas Noe - que prefere ser tratado como The Trash Traveler (Viajante do Lixo) para dar destaque ao projeto e não à sua pessoa – admite que "a chocante quantidade de plástico nos supermercados, na vida diária, nas praias e nos oceanos" foi o que lhe abriu os olhos para o problema do lixo.
"Como biólogo molecular, vim para Lisboa em 2017 para trabalhar num laboratório e depois como consultor médico. Todos os minutos que tinha livres aproveitava para ir à praia surfar e curtir a natureza"
Nessas visitas percebeu que "especialmente durante o inverno, quando os municípios não limpam as praias", há plástico por todo o lado.
Perante esse cenário, o alemão decidiu demitir-se e começar o projeto The Trash Traveler, não para limpar as praias, mas para "mostrar a questão da poluição plástica e inspirar as pessoas a fazerem o mesmo". "Não quero apenas inspirar as pessoas a limpar, mas sim a fazer escolhas sustentáveis e a repensar a produção de lixo."
Na visão de Andreas Noe, "inspirar outras pessoas contribuirá para uma mudança de mentalidade crescente na população, o que resulta numa pressão sobre as empresas e governos para investir numa economia circular e numa mudança da mentalidade de uso único".
Uma espécie de Volta a Portugal em bicicleta
Nessa luta contra o plástico, The Trash Traveler decidiu avançar com uma espécie de Volta a Portugal em Bicicleta para recolher lixo, à qual chamou de The Trash Cycle. Com uma bicicleta reaproveitada, o alemão vai percorrer 3000km à volta do país. A iniciativa começou no passado dia 23 de abril, em Cascais, e deve terminar a 17 de junho, em Sintra.
Todos os dias, sem qualquer dia de descanso, Andreas Noe planeia pedalar entre 40 a 50 km, percorrendo Portugal continental de Norte a Sul, ao mesmo tempo que vai limpando um pouco ao longo do caminho. A iniciativa conta com as ações de limpeza, mas também com organizações, a sociedade civil e escolas, além da sensibilização para a emergência climática.
"Vou pedalar toda a viagem com apenas uma garrafa de água reutilizável e não vou comprar nenhuma embalagem plástica descartável. Quero mostrar que é possível conseguir algo quase impossível e recorrer apenas ao reabastecimento", explica.
Estima-se que, anualmente, sejam produzidas a nível mundial quase 400 milhões de toneladas de plástico, sendo que metade desse número diga respeito a plástico de uso únicos, que é usado poucas vezes, mas demora centenas de anos a degradar-se. As garrafas de plástico são um dos muitos itens que contribuem para esse número: a população mundial utiliza 1,2 milhões de garrafas de plástico por minuto.
É difícil dizer quanto lixo será possível recolher, sendo possível "igualar ou superar" as 1,6 toneladas da caminhada de 2020, mas frisa sempre que "não é tanto sobre a limpeza, mas sobre consciencialização".
Tudo isto tem como principal ideia a de mostrar que "precisamos de reduzir a nossa produção de lixo", que em Portugal ronda os 512kg por pessoa anualmente.
"Nós, humanos, produzimos muito lixo para ser reciclado e manuseado adequadamente. Portanto, precisamos reduzir a produção de lixo e o restante do que produzimos precisa ser valorizado novamente."
"Os produtores precisam de repensar os seus produtos para que estes possam ser transformados eficientemente num novo produto após a sua vida útil. Precisamos de investir numa economia circular adequada para dar valor ao lixo novamente. Podemos fazer isso como indivíduos, mas também é crucial numa escala sistemática", acrescenta.
Apesar de ter tudo bem pensado, Andreas Noe admite que o nervosismo não o abandona. "Eu tento sempre envolver o maior número de pessoas possível para maximizar a consciencialização. No entanto, tenho momentos em que me apercebo da quantidade de pessoas e grupos envolvidos e fico sempre a pensar 'o que é que eu estou a fazer aqui'. Por exemplo, vou ter uma conversa numa escola em que vou falar no meu português 'quebrado' à frente de muitos alunos. Foi uma boa ideia, mas mais tarde sei que isso me vai deixar ansioso", confessa.
"Por outro lado, não sei se as minhas pernas ou a minha bicicleta vão aguentar 2 meses inteiros. Não sei como o meu corpo vai reagir a pedalar o país inteiro, se vou conseguir pedalar nas subidas ou se vou ficar sem energia. Vai ser uma viagem com muitas descobertas, inclusive no que diz respeito aos meus limites pessoais."
A organização é outro dos desafios do projeto. "Coordenar iniciativas no país inteiro também é um desafio meio louco. Para o Trash Cycle com 55 dias, já tenho 40 dias cheios de limpezas com diferentes grupos, escolas, municípios, iniciativas e ambientalistas. Dá para imaginar a quantidade de e-mails e perguntas que precisam de resposta. Tenho voluntários incríveis que me ajudam em alguns e-mails e na parte da organização, mas é preciso ter uma equipa adequada paga para esse trabalho. Esse talvez seja o futuro do projeto", admite.
Por enquanto, e nesta iniciativa, Andreas Noe vai contar com a companhia de Raquel Fortuna Lima, um dos membros da sua equipa, que vai acompanhar o percurso de caravana para dar todo o apoio necessário ao alemão. Ao mesmo tempo, Raquel vai "explorar formas de comprar comida a produtores locais e, se possível, livres de plástico".
Este é uma espécie de objetivo secundário, que visa criar um mapa de produtores locais de legumes e frutas, bem como outros produtos, e projetos biológicos, para disponibilizar um guia completo do país em termos de "opções de compras sustentáveis".
Como lema, a vontade de "fechar o circuito e tomar conta do ambiente", não só na reutilização do plástico como "no uso de meios de transporte leves", como a bicicleta em vez do carro. "É um esforço que já faz muito pelo planeta", comenta.
As outras iniciativas
A viver em Portugal desde 2017, esta não é a primeira ação de Andreas Noe. Anteriormente, The Trash Traveler organizou The Butt Hike (A caminhada das beatas) e The Plastic Hike (A caminhada do plástico).
Mas tudo começou em 2020, quando Andreas Noe percorreu a pé os 832 quilómetros da costa portuguesa, em 58 dias, para expor a situação dos plásticos descartáveis que poluíam as nossas praias.
A iniciativa envolveu várias centenas de participantes, e ao todo foram recolhidas 1,6 toneladas de plástico. Mas tal ainda era pouco para The Trash Traveler, que lembra que "8 milhões de toneladas de plástico chegam aos oceanos a cada ano".
"Depois de percorrer toda a costa de Portugal em 2020 para recolher plástico em geral, decidi continuar com a abordagem de sensibilização porque só juntos podemos criar mudanças"
Assim surgiu The Plastic Hike. "Foi um desafio físico, tal como será o The Trash Cycle. Em dois meses, não houve um único dia de folga, e além dos passeios de bicicleta, reunia-me sempre com um grupo para limpar e consciencializar. Além disso, e ao mesmo tempo, preparava conteúdos para que as pessoas nas redes sociais participassem e soubessem o que estava a acontecer todos os dias", recorda.
"Sempre quis mostrar que podemos conseguir algo quase impossível sem comprar garrafas plásticas descartáveis. Se apenas tentarmos dar um passo adiante e nos prepararmos, podemos viver de forma mais sustentável", garante.
Seguiu-se, então, uma nova caminhada, que passou por 38 cidades costeiras, para apanhar beatas de cigarros: foram 1,1 milhões de beatas, numa iniciativa que envolveu quase 600 pessoas e mais de 70 organizações.
"Então decidi criar uma grande aventura a cada ano e The Butt Hike resultou em 2021 para consciencializar novamente a comunidade. Só me concentrei em beatas de cigarro para mostrar que os nossos pequenos atos importam. Muitos pequenos atos juntos criam um grande impacto no bem e no mal", destaca.
As beatas de cigarro são o item de plástico mais sujo do mundo e estão cheias de toxinas, mas podem ser recicladas. As 1,1 milhões de beatas recolhidas na The Butt Hike foram recicladas juntamente com cogumelos. O produto final foi usado para construir uma "casinha" para usar nos eventos de consciencialização do projeto.
Mesmo assim, Andreas Noe lembra que o seu esforço é insuficiente perante as atitudes menos boas de outras pessoas, isto porque cerca de 7000 pontas são atiradas para o chão a cada minuto em Portugal. "Precisamos de dois meses de limpeza pesada só para compensar 2,5 horas de lixo criado. Obviamente, não se trata de limpeza, mas de mudar mentalidades e abrir os olhos", lamenta.
"As beatas dos cigarros contêm plástico e muitas toxinas. A maioria das pessoas não sabe disso e, portanto, é o exemplo perfeito de que o plástico e a poluição plástica estão bem escondidos e às vezes não os reconhecemos."
Mas The Trash Traveler não baixa os braços e lembra que "cada ato pode importar". "Se atirarmos um produto ao chão num qualquer lugar de uma cidade, ou se pusermos um cotonete na sanita, este será largado no rio e pode acabar no oceano. Este projeto foi, portanto, um exemplo para mostrar onde começa a poluição plástica: nas nossas cidades, nas nossas casas longe da praia - em nós."
Ao todo, The Trash Traveler estima ter recolhido quase três toneladas de lixo ao longo dos últimos anos em Portugal. "Só uso estes números para abrir os olhos das pessoas. Mas temos um problema muito maior que são os microplásticos. O litoral está cheio deles e é quase impossível limpá-los das praias, da natureza e do oceano. Todo o grande plástico na natureza se decompõe em microplásticos. Já foram encontrados no sangue humano e até na placenta humana, o que mostra o estado chocante do uso extremo de plástico", alerta o alemão.
Graças a Andreas Noe, Portugal tem menos três toneladas de lixo nas suas praias e um pouco por todo o lado. No entanto, tal não é suficiente. É imperativo controlar a produção de lixo, especialmente de plástico, para que deixe de ser surpreendente um biólogo alemão deixar o seu trabalho para limpar um país onde não nasceu, mas que hoje considera casa.
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