Maria Conceição nunca morreu de amores pelo exercício físico. Passou grande parte da sua vida sem saber nadar nem andar de bicicleta, até ao dia em que o desporto se tornou no seu maior aliado para ajudar os outros. Neste caso, para dar um futuro melhor às 600 crianças que a portuguesa ajuda desde 2005, ano em que uma escala de 24 horas em Daca, capital do Bangladesh, mudou para sempre o rumo da sua vida.

Para conseguir angariar fundos e trazer reconhecimento para a sua Fundação Maria Cristina, batizada em homenagem à mãe adotiva, Maria da Conceição começou a fazer os mais impossíveis desafios físicos. Em 2013 tornou-se a primeira mulher portuguesa a atingir o cume do Evereste, o mais alto do mundo, em 2017 bateu sete recordes mundiais por completar seis triatlos Ironman em seis continentes diferentes em apenas 56 dias, e em 2018 chegou ao Polo Sul, um feito também inédito para uma mulher portuguesa.

Também alcançou o Polo Norte em 2011, completou numerosas maratonas e ultramaratonas, subiu a vários dos picos mais altos do mundo, e só não atravessou o Canal da Mancha porque as correntes fortes a traíram depois de sete horas a nadar. Tudo isto durante campanhas para atrair donativos.

“A verdade é que o desporto nunca fez parte da minha vida. Toda a gente me dizia que ia precisar de muitos anos para me preparar fisicamente, ou que devia começar por fazer provas mais pequenas, mas eu precisava de causar impacto e não podia dar-me ao luxo de perder tempo, porque a fundação precisava de dinheiro para sobreviver. E sobreviveu”, conta Maria Conceição, de 43 anos, nascida em Angola, mas criada em Vila Franca de Xira e radicada no Dubai desde 2003.

O ponto de viragem na vida da filantropa aconteceu em abril de 2005, durante uma escala de 24 horas em Daca. Maria tinha 27 anos, trabalhava há dois como hospedeira de bordo na Emirates, e voou para a capital do Bangladesh pela primeira vez. A realidade com a qual se deparou foi chocante.

“Na altura fiquei muito abalada. Não consegui perceber como havia tantas pessoas como eu a viver em condições de pobreza extrema. Vi crianças com tanto potencial, mas que nem sabiam o que era uma escola. Não podia virar as costas", recordou Maria Conceição.

A realidade da capital bengali tocou-a de tal forma que decidiu pôr mãos à obra e ajudar as famílias dos bairros de lata. “Tinha uma vida confortável no Dubai e um emprego seguro, mas aquela viagem fez-me perceber que não precisava de luxos na minha vida e que seria muito mais feliz a ajudar aqueles que não têm nada”, justifica a filantropa, acrescentando: “Não fui eu que escolhi o Bangladesh, foi o Bangladesh que me escolheu.”

Numa primeira fase, Maria começou por vender objetos pessoais, pediu a amigos que também o fizessem e recolheu donativos em dinheiro, roupa, produtos de higiene e alimentação junto de pessoas e empresas no Dubai. Acabou por cancelar os planos que tinha para as férias para regressar a Daca e entregar às famílias locais tudo o que tinha conseguido.

As viagens à capital do Bangladesh tornaram-se uma constante, com Maria Conceição a aproveitar cada folga para se dedicar ao trabalho humanitário. Começou por retirar 39 crianças das ruas do bairro de Gawair e inscrevê-las numa escola local, mas o projeto foi tendo altos e baixos, invariavelmente por dificuldades de financiamento, levando Maria a criar a Fundação Maria Cristina e a sua própria escola, em julho de 2005.

Maria Conceição dedicou grande parte da sua vida a ajudar crianças em Daca, no Bangladesh
Maria Conceição dedicou grande parte da sua vida a ajudar crianças em Daca, no Bangladesh Maria Conceição dedicou grande parte da sua vida a ajudar crianças em Daca, no Bangladesh créditos: DR

As crianças sempre foram o foco principal do trabalho da Fundação Maria Cristina, mas o objetivo também passava por melhorar a qualidade de vida dos habitantes dos bairros de Daca, dando-lhes as condições básicas que tanto escasseavam. O projeto foi crescendo a olhos vistos e Maria Conceição viu-se obrigada a tomar uma decisão: “Em 2010 despedi-me da Emirates, para me dedicar de corpo e alma ao trabalho na fundação. Já não conseguia mais. As pessoas mais próximas de mim não compreenderam esta decisão, mas era algo em que acreditava.”

De hospedeira de bordo a superatleta

Com a crise financeira de 2008, Maria Conceição começou a ter dificuldades em encontrar fundos para dar continuidade a este projeto, de tal forma que em 2013 foi obrigada a encerrar a escola. "Depois da recessão tornou-se extremamente difícil angariar dinheiro, perdemos quase 90% dos nossos patrocínios, mas não quis desistir. Tentei recorrer a algumas empresas no Dubai, que me disseram que tinham dinheiro mas pediam publicidade em troca. Após alguma pesquisa percebi que o desporto era a melhor forma de conseguir essa atenção mediática”, conta.

A partir daí, Maria lançou-se numa série de desafios físicos para tentar angariar fundos, mesmo sem qualquer ligação prévia ao desporto. Em 2010 escalou o Kilimanjaro, na Tanzânia, mas o feito acabou por não obter atenção suficiente. Foi preciso esperar um ano para que a antiga assistente de bordo alcançasse o seu grande objetivo. “Com a caminhada ao Polo Norte consegui angariar centenas de milhares de euros que ajudaram a garantir bolsas de estudo no Dubai para cinco crianças durante seis anos”, explica.

Sem qualquer tipo de preparação física, Maria Conceição teve de recorrer a ‘personal trainers’ especializados em alpinismo e corrida, a nutricionistas e à sua força mental para superar cada obstáculo. A caminhada ao Polo Norte obrigou a três meses de treino. "Aconselharam-me muitas vezes a não ser tão ambiciosa, havia sempre o receio de que cada desafio me levasse ao limite. Ainda hoje os médicos dizem-me que eu não tenho um corpo de atleta", sublinha.

 "Os médicos dizem-me que eu não tenho um corpo de atleta"

Seguiu-se uma maratona em cada um dos sete Emirados, que formam os EAU, em apenas sete dias. Correr não fazia parte do dia-a-dia de Maria Conceição. “Demorei algum tempo a perceber que conseguia correr aquela distância. O segredo é treinar com regularidade e não nos apressarmos durante a corrida. O corpo acaba por se adaptar”, diz.

O currículo de provas foi aumentando. Em 2017 completou seis triatlos Ironman (3,86 km de natação, 180 km de ciclismo e 42,2 km de corrida) em seis continentes em apenas 56 dias; tornou-se na mulher mais rápida a completar sete maratonas oficiais em sete continentes (inclui os subcontinentes da América do Sul e da Antártida) num espaço de 11 dias, registo que junta ao de mulher mais rápida a concluir uma maratona e uma ultramaratona em cada um dos sete continentes. Tudo somado, oito recordes do Guinness para a atleta portuguesa.

Para concluir os ‘Ironmans’ a que se propôs, Maria teve de aprender a nadar e a andar de bicicleta. “Felizmente tive o professor de natação mais paciente do mundo, porque não sabia nadar de todo. Também tive treinos de força e resistência”, confidencia.

Mas o feito mais elogiado continua a ser a subida ao topo do Evereste, em maio de 2013, tendo sido a primeira mulher portuguesa a consegui-lo. “Para o Evereste recomendaram-me um programa de treino e preparação de dois anos, mas tive de fazer tudo em apenas um. Treinava seis horas por dia, seis dias por semana. Foi um esforço enorme”, começa por dizer.

Maria Conceição foi a primeira mulher portuguesa a chegar ao topo do Evereste
Maria Conceição foi a primeira mulher portuguesa a chegar ao topo do Evereste Maria Conceição foi a primeira mulher portuguesa a chegar ao topo do Evereste créditos: DR

“Acho que foi o meu feito mais impressionante. Há pessoas que ainda não acreditam que eu consegui, até porque não sofri qualquer queimadura devido ao frio”, acrescenta.

A subida foi longa: demorou nove horas do campo 3 ao campo 4 e apenas descansou seis horas antes de atacar o resto dos 8,848 metros numa caminhada de 13 horas. A altitude e a dificuldade em respirar foram as maiores dificuldades que a portuguesa enfrentou, sendo que, durante a descida, "estava completamente desidratada".

No momento em que chegou ao topo do mundo, revela, sentiu um misto de emoções: “Nos primeiros segundos depois de chegar ao cume senti um enorme alívio. Mas depois comecei a ter vários pensamentos. ‘Será que valeu a pena? Será que vou conseguir angariar fundos suficientes?’ O meu guia e o meu Sherpa tinham ficado para trás, com a minha garrafa de oxigénio, e eu não sabia que eles iam conseguir chegar ao cume. Fiquei duas horas no topo, à espera, sem saber se estava a viver as últimas horas da minha vida. Porque a maioria das mortes acontecem no caminho de regresso, uma vez que os alpinistas estão exaustos e começam a cometer erros.”

Apesar do sentimento de superação, Maria aponta o Evereste como a sua "maior desilusão". “No fundo foi como se nada tivesse acontecido. O nosso maior patrocinador tinha-nos prometido várias bolsas de estudo numa escola no Dubai para as nossas crianças se eu fosse bem-sucedida, mas acabou por anular o contrato poucas semanas antes de viajar para o Nepal”, lamentou.

No total foram angariados 50 mil dólares (cerca de 40 mil euros). “Tive de me manter positiva, mas a verdade é que estava à espera de conseguir mais donativos”, nota.

"Subir ao Evereste foi o meu feito mais impressionante e a minha maior desilusão"

A constante necessidade de angariar dinheiro forçou Maria Conceição a assumir novo desafio em 2016: atravessar o Canal da Mancha, o que implicou, depois de aprender a nadar, habituar-se à água fria. Para isso instalou-se na ilha britânica de Jersey, onde nadava cinco a seis vezes por semana em águas abertas, tendo ainda feito quatro aulas de bicicleta de ginásio ['spinning'] e mais duas sessões de treino pessoal. A preparação incluiu ganhar peso para aguentar as baixas temperaturas da água, comendo muito abacate, frutos secos, salmão, caril, hambúrgueres e, "ocasionalmente", o tradicional ‘fish and chips' (peixe frito com batatas fritas).

Ao fim de sete horas de travessia, Maria foi obrigada a desistir devido à força da corrente marítima. “Fiquei frustrada. O piloto do barco de apoio aconselhou-me a parar, não acatei à primeira, mas depois percebi que era a minha integridade física que estava em causa”, referiu.

Quase dois anos depois, a ex-hospedeira de bordo tornou-se a primeira mulher portuguesa a chegar ao Polo Sul. Ao longo de sete dias, o grupo da portuguesa fez o trajeto de cerca de 111 quilómetros desde o campo de base Union Glacer sob ventos fortes e temperaturas que desceram até 30 graus negativos. O feito permitiu garantir dinheiro suficiente para pagar as propinas e refeições de 40 das 124 crianças que tinha a cargo para começaram as aulas numa escola em Daca.

Nenhuma destas provas “permite angariar tanto quanto gostaria, mas é o suficiente para manter o programa de educação escolar” das crianças que estão ao seu abrigo, todas para completar os estudos até ao 12º ano. Uma coisa é certa: “Se não tivesse feito estes desafios, a fundação não teria sobrevivido.”

Uma história de sucesso

Em 15 anos de atividade, a Fundação Maria Cristina já conseguiu ajudar 600 crianças e adultos de 101 famílias do Bangladesh. Milan Mia é um desses casos de sucesso. “Venho de uma aldeia muito pobre no norte do Bangladesh e lembro-me que frequentava a escola local não para aprender mais, mas porque ofereciam biscoitos de graça ao almoço. O meu irmão mais velho teve de deixar a escola para trabalhar como carpinteiro, e o meu pai trabalhava a puxar riquexós em Daca, para nos sustentar. Não era uma vida fácil”, conta o jovem de 22 anos.

Foi quando a família se mudou para a capital que Milan percebeu a importância de ter uma educação. “Comecei a pensar que só podia ir longe na vida se começasse a ganhar competências, mas para isso tinha de aprender a ler e a escrever. O meu pai disse logo que não, que era muito caro ter uma educação, mas depois acabou por levar-me a mim e ao meu irmão mais novo a uma escola que ensinava de forma gratuita. Era a escola fundada pela Maria”, diz.

As iniciativas da Fundação Maria Cristina estão sobretudo ligadas à educação e uma das formas de facilitar o acesso de crianças ao ensino consiste em levá-las para o Dubai, onde completam a escola primária ou secundária, ao mesmo tempo que são inseridas numa família de acolhimento. Foi o que aconteceu com Milan, que mais tarde viria a receber uma bolsa para prosseguir os estudos em Melbourne, na Austrália.

Milan e Maria Conceição
Milan e Maria Conceição Milan e Maria Conceição créditos: DR

“Estou a acabar o curso de Psicologia. Fui a primeira pessoa da minha família a entrar para a faculdade”, nota o jovem, visivelmente orgulhoso e já focado no futuro. “No próximo ano quero fazer o mestrado em Ensino, tenho trabalhado como professor de natação para poupar dinheiro para ajudar nas despesas. O meu objetivo é tornar-me financeiramente autossuficiente para poder ajudar a minha família no Bangladesh”, afirma.

Milan diz-se “eternamente grato” a Maria Conceição e à fundação criada pela portuguesa. “Foi graças à Maria que consegui completar os meus estudos. Ela deparou-se com a pobreza que existia em Daca e decidiu agir. Prometeu dar uma melhor vida à minha família e foi o que aconteceu. Deu-nos a esperança de um futuro melhor”, nota.

“O facto de ter feito todos aqueles desafios físicos para nos ajudar, quando nem sequer tinha a obrigação de o fazer, deixa-nos ainda mais agradecidos”, completa o estudante de Psicologia, que deseja que a sua história sirva de inspiração para outras crianças em dificuldades.

“Sei o que é viver em pobreza extrema e isso deu-me vontade de mudar o mundo. Onde muitas pessoas viram obstáculos, eu vi uma oportunidade para adquirir competências. Acredito que se pelo menos um jovem apostar na sua educação e conseguir sair deste ciclo de pobreza, esse jovem irá inspirar todos os outros a seguir o mesmo caminho”, garante.

Neste momento, a Fundação Maria Cristina tem 60 jovens a completar o ensino secundário e outros 25 com bolsas em universidades dos EUA, França, Emirados Árabes Unidos, Austrália ou Portugal, onde 21 frequentam o Instituto Politécnico de Bragança.

As dificuldades e o afastamento do projeto

Durante estes 15 anos, Maria Conceição admite ter encontrado muitos "momentos de frustração e desespero” perante as exigências operacionais de liderar a Fundação Maria Cristina, sem meios nem formação.

“Apercebi-me que algumas coisas nunca irão mudar, nomeadamente a resistência das autoridades e da sociedade do Bangladesh em deixar-me ajudar os locais. Por outro lado, uma educação formal ter-me-ia ajudado de muitas maneiras, especialmente se eu tivesse estudado na área de negócios ou educação ou políticas públicas”, explica.

Nesse sentido, a filantropa portuguesa decidiu este ano abandonar o comando do projeto Gawair. “O objetivo era garantir que os alunos concluíssem o ensino secundário com uma educação digna. Era um objetivo de muito longo prazo e um compromisso sério, mas agora está feito”, adianta.

Quanto ao futuro, Maria ainda não sabe se continuará no Dubai, estando neste momento à procura de “formas de investir na própria educação para poder continuar a fazer este tipo de trabalho”, mas numa “escala muito maior”.

“O meu objetivo não é afastar-me completamente da fundação. Mas, por outro lado, preciso de aceitar que a minha missão está cumprida, que atingi os meus objetivos e que está na hora de avançar para outros desafios”, termina.