Da guerra em Lviv para Matosinhos, o karateca ucraniano Stanislav Horuna regressa ao tatâmi “sem expetativas” para a K1 Premier League, que decorre entre hoje e domingo, depois de dois meses ao lado do Exército na Ucrânia.
Em entrevista à agência Lusa, o número dois do ‘ranking’ mundial em 'kumite' -75kg e ‘capitão’ da equipa ucraniana disse não estar muito preocupado em vencer, até porque já está apurado para o Campeonato Mundial e para os Jogos Europeus, mas sim em voltar a fazer o que gosta e reencontrar amigos.
“Depois de algum tempo sem ver os amigos, é sempre bom reencontrá-los e saber como estão. Todas as competições podem ser a última para mim e não sei quando é a última vez que os vou ver. É bom estar aqui, mudar a atmosfera, nem que seja por uma semana. Só quero ir para o tatâmi, mostrar o meu melhor e desfrutar das lutas. Quero que as pessoas gostem dos meus combates, para fazer alguns ‘highlights’ [lances de destaque]”, afirmou o atleta de 33 anos.
Em 2019, Horuna assinou um contrato com as Forças Armadas da Ucrânia e representou-as em competições. Desde o início da invasão russa, despiu o ‘kimono’, pegou na arma e tornou-se mais um de muitos soldados, com as instruções de fazer patrulhamentos e conduzir os civis aos abrigos quando soava o alarme em Lviv.
“Tínhamos que estar atentos e estávamos preparados para uma possível invasão pela fronteira da Bielorrússia. Nesses tempos não foi possível fazer treinos, tinha de fazer patrulhas noite e dia, várias noites sem dormir e o regime alimentar também não era o melhor para atletas”, gracejou, já que tem que manter o peso ideal para a categoria de -75kg.
O primeiro mês “foi muito difícil”, embora a situação tenha ficado mais “controlada” e pôde voltar aos treinos no segundo mês, no entanto, sempre “preparado para defender as cidades [ucranianas] mais próximas da Bielorrússia”.
“Sem dúvida que o karaté me ajudou no terreno. Graças a estas competições, tenho uma grande resistência ao stress, tinha a cabeça mais lúcida do que os meus amigos, eles estavam nervosos e eu calmo. Estava pronto para os combates, sei que tenho boa coordenação, preparação física e ‘sangue frio’. Estava muito concentrado, focava-me só naquilo que tinha a fazer e estava preparado para tudo. Se tivesse que disparar, disparava”, vincou.
No início de abril, Horuna leiloou a medalha de bronze olímpica conquistada em Tóquio2020, e continua a promover iniciativas de angariação de fundos através das redes sociais para fazer chegar ajuda humanitária para civis e equipamento militar para o Exército ucraniano, como coletes à prova de bala, óculos táticos e de visão termal, alguns dos quais pagos do seu próprio bolso.
“O nosso Exército defende-nos e precisa do nosso apoio. A nossa economia está paralisada, as pessoas não trabalham, os negócios estão fechados e o financiamento deve ser providenciado. As pessoas doam dinheiro para apoiar as Forças Armadas, eu tinha uma medalha, o que podia fazer era vendê-la e angariar fundos para ajudar as forças. É uma questão de prioridade entre o interesse nacional e o pessoal, nesta situação a Ucrânia está à frente”, apontou.
O karateca confessou-se “impressionado e agradavelmente surpreendido pelo apoio de pessoas de outros países, principalmente da Europa”, entende que exista medo de que "a Rússia não se fique pela Ucrânia” e que essa seja uma das razões do apoio, mas também por uma questão de empatia, porque “percebem que não é aceitável matar pessoas por causa da ambição imperialista de um país”.
“Os governos estão hesitantes, em jogos políticos, mas todos os dias contam e todos os dias perdemos muita gente. O que peço é que os governos sejam tão incisivos como são os seus povos. Os países europeus não precisam de lutar, só queremos que nos deem a artilharia pesada que está guardada nos armazéns. Deem-na a nós e não terão que a usar, nós paramos os russos e teremos paz em todo o continente europeu”, asseverou.
Com 33 anos, admitiu estar a ficar “velho” para o karaté, mas quer continuar a representar o país em torneios e, no tempo livre, a angariar ajuda humanitária para ajudar civis e o Exército ucraniano.
O karateca Tiago Duarte, de 19 anos, admitiu à Lusa ver Horuna como uma referência e, questionado sobre isso, o ucraniano disse que seria "uma boa experiência para os jovens" encontrarem-se num combate.
“Especialmente agora que estou em má forma, podem vencer e dizer que ganharam ao Horuna [risos]. Vamos ver, gosto de lutar com os jovens porque são mais ‘esfomeados’ e fervem rapidamente, enquanto eu sou mais tranquilo e dou uso à experiência. Essas lutas são interessantes de ver porque eles lutam de forma muito aguerrida e depois, com calma, eu posso fazer o que quero [risos]”, brincou.
Por enquanto, a prioridade é aproveitar o tempo com a família. Nos primeiros dias da invasão russa, enviou a mulher e o filho, de dois anos e 10 meses, para a Hungria. Dois meses depois, reencontraram-se na quinta-feira, no hotel em que está hospedado.
A Karate 1 - Premier League decorre em Matosinhos, no Centro de Desportos e Congressos, reunindo os principais karatecas nacionais e mundiais, numa organização da FNKP. Na prova participam perto de 380 atletas de 63 países, representando os quatro continentes.
A Rússia lançou em 24 de fevereiro uma ofensiva militar na Ucrânia que já matou mais de dois mil civis, segundo dados da ONU, que alerta para a probabilidade de o número real ser muito maior.
A ofensiva militar causou já a fuga de mais de 12 milhões de pessoas, mais de 5 milhões das quais para fora do país, de acordo com os mais recentes dados da ONU – a pior crise de refugiados na Europa desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
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