Daquele dia já longínquo de 1994 - dia do trágico acidente que lhe custou parte de uma perna - até aos próximos Jogos Paraolímpicos de Londres deste Verão, muita coisa mudou na vida de Márcio Fernandes.
É com grande serenidade que o mais medalhado atleta paraolímpico cabo-verdiano recorda esses tempos de meninice, em Vale da Amoreira, concelho da Moita, na Margem Sul de Lisboa: as brincadeiras de criança, os maus caminhos e o acidente, aos nove anos, na linha de comboio, que o haveria de mudar para sempre.
Vinte anos depois, Márcio Fernandes tornou-se num dos mais completos atletas paraolímpicos, participando em meetings internacionais, competindo em várias modalidades, com excelentes resultados.
Mas o acidente não impediu Márcio de continuar a brincar com os amigos, a correr da melhor forma possível, a continuar a ser criança, a rir. Até mesmo experimentar o atletismo, num clube da zona. E Márcio Fernandes foi o único que continuou no clube, apesar da sua deficiência física. "O engraçado é que só comecei a praticar desporto depois do acidente."
É no Centro de Alto Rendimento no Complexo Desportivo do Jamor, em Lisboa, que Márcio Fernandes treina, duas vezes por dia, e participa em competições que ali decorrem, enquanto se prepara para as grandes provas.
O atleta paraolímpico nascido em Portugal não hesitou em escolher representar o país de origem dos seus pais. Para quem nunca se sentiu cem por cento português, a começar pela dificuldade em obter a nacionalidade do país em que nasceu - e outras burocracias que todos podemos imaginar e que afetam milhares na sua situação - a solução só poderia passar por um contacto com o Comité Paraolímpico de Cabo Verde e oferecer os seus préstimos e excelentes resultados em competição.
Mas até chegar aqui, Márcio Fernandes teve de ultrapassar toda uma paleta de problemas que esperam um atleta paraolímpico. A falta de apoios, o preço elevado das próteses indispensáveis à competição. Felizmente, como conta, enquanto prepara mais uma sessão de treino de lançamento de dardos, um amigo que trabalhava para uma multinacional alemã que fabrica próteses conseguiu-lhe um apoio mínimo dessa empresa. As coisas começam então a mudar para ele. Atualmente, diz, é o único atleta paraolímpico em toda a Península Ibérica a competir com uma prótese.
Márcio participa em provas de competições regionais, corre com atletas ditos 'normais', esforça-se, treina, vence, vai ganhando experiência e força competitiva. Aceite por Cabo Verde, após uma passagem por Lisboa de Rodrigo Bejarano, responsável do Comité Paraolímpico de Cabo Verde, Márcio participa nas primeiras provas internacionais e Cabo Verde ganha um atleta paraolímpico que se afirma nas provas internacionais. Com o sucesso chega também um patrocínio há muito desejado, através da empresa cabo-verdiana Tecnicil, e o jovem atleta pode finalmente dedicar-se tranquilamente aos treinos.
E é assim que os recordes chegam como corolário de um longo trabalho de treino e preparação. Nos últimos jogos Africanos de Maputo, Márcio tenta o lançamento de dardo, atingindo uma marca bastante razoável. Mas não ficaria por aqui. De seguida, melhora a sua marca e bate o recorde africano desta modalidade. Atualmente, detém a quarta melhor marca mundial.
Conta tudo como se nada fosse, com um leve sorriso nos lábios e a voz pausada e segura. Recorda os meetings internacionais, como o de Tunis, na Tunísia, em que participaram vários países com as suas delegações. Cabo Verde era um desconhecido destas andanças, tanto que, explica, "quando subimos ao pódio (junto com Keula Semedo, atleta invisual) nem sequer havia o nosso hino para tocar."
Depois das medalhas, o reconhecimento do contributo do atleta para elevar o nome de Cabo Verde veio pela mão do Primeiro-Ministro, José Maria Neves, que lhe atribuiu a Medalha de 1ª Classe de Mérito Desportivo, (a atleta Keula Semedo também recebeu a medalha de 2ª classe) as primeiras distinções até agora atribuídas a atletas paraolímpicos em Cabo Verde.
A carreira deste antigo electricista de 29 anos, e pai de dois filhos, no atletismo prepara-se para conhecer um dos pontos mais altos de sempre. Mas para os Jogos Paralímpicos de Londres, que decorrem de 29 de agosto a 9 de setembro, Márcio Fernandes vai dizendo que não promete medalhas. Mas é difícil não pensar nisso quando o vemos apontar o dardo, correr e lançá-lo a várias dezenas de metros de nós. Menos de um metro separa o atleta cabo-verdiano (53, 52m) da melhor marca mundial conseguida este ano (54,0 m).
Márcio tem as coisas bem definidas e quer continuar a estudar para ser treinador de atletas paralímpicos em Cabo Verde. As competições irão continuar. "O lançamento do dardo é das modalidades com maior longevidade, um atleta pode ir até aos 40 anos."
Na simplicidade que o caracteriza Márcio Fernandes destaca o feito que é Cabo Verde ter passado a competir em provas internacionais pelo seu próprio mérito e não como convidado, como acontecia até aqui. E esse é o grande orgulho, como explica, "pode continuar a levar longe o nome de Cabo Verde." Para já, depois de Londres, Márcio pretende marcar presença também no Rio de Janeiro, nos Jogos Paralímpicos de 2016.
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