Clubes com atividade suspensas, crianças e jovens em casa sem prática desportiva e com a sua rotina mudada, e atletas que não treinam ou competem desde março de 2020. O desporto português atravessa uma fase negra, devido a pandemia de COVID-19, com consequências nefastas no médio e longo prazo.
Face a falta de resposta por parte do Governo, o Comité Olímpico de Portugal (COP), o Comité Paralímpico de Portugal (CPP) e a Confederação do Desporto de Portugal (CDP), vão realizar uma segunda Cimeira das Federações Desportivas em 12 de janeiro de 2021, seis meses depois da primeira que teve a participação de 52 entidades.
Esta iniciativa ganhou a adesão da Comissão de Atletas Olímpicos, da Comissão de Atletas Paralímpicos e da Confederação de Treinadores de Portugal e tem por objetivo levar o Governo a tomar medidas para promover a retoma do desporto em segurança e a criação de condições para a sustentabilidade do tecido associativo de base.
Em entrevista ao SAPO Desporto, José Manuel Lourenço, presidente do Comité Paralímpico de Portugal, revelou aquilo que tem movido a união destas entidades desportivas.
A pandemia vai deixar marcas por muitos anos e vai ser difícil recuperar
"O que tem sido a nossa reivindicação é o regresso dos escalões de formação, que achamos serem fundamentais para garantir a viabilidade e renovação dos atletas que neste momento existem. A não existência de competições e a não autorização da prática desportiva nos escalões de formação está a causar impactos financeiros significativos, diria avassaladores em muitos casos, em muitos clubes", sublinhou.
Se no caso do desporto de alto rendimento não tem havidos muitos problemas porque o Instituto Português do Desporto e Juventude e o Instituto Nacional para a Reabilitação têm cumprido com os compromissos assumidos face ao movimento paralímpico, o problema ganha outra dimensão quando se fala no desenvolvimento desportivo.
Recentemente, um estudo levado a cabo pelo Comité Paralímpico Português junto de 16 federações desportivas, concluiu que 63% dos praticantes de desporto estão inativos desde março. Dessas 16 federações, 163 clubes pararam atividade . E isso só no desporto para pessoas com deficiência.
O problema agudiza-se a cada dia que passa e José Manuel Lourenço lamenta a falta de resposta por parte do Governo face a um problema com consequências nefastas no futuro do desporto português.
"Não houve da parte, quer do Governo quer da Assembleia da República, o acolhimento de nenhuma das medidas propostas. Podia até ter havido aprovação de outras medidas diferentes no sentido de dar resposta àquilo que são as necessidades do desporto nesta altura, mas isso não se verificou. Na componente da formação, houve uma total ausência de resposta", lamentou.
Apesar de reconhecer que "este não é o momento indicado para falar em retoma desportiva" face aos números da pandemia de COVID-19 em Portugal, o dirigente lembrou que "o desporto já deu provas que cumpre todas as regras quando elas são claras e definidas".
Fechados em casa: um 'pau de dois bicos'
Confinados em casa, muitas vezes sem atividade física, alguns os atletas com deficiência esperam desde março por novidades para saber quando podem retomar as suas atividades. Se para uns até é benéfica a falta de "prática desportiva por estarem num patamar de risco diferente de outros atletas" e a "sua condição" recomendar "a que tenha outro tipo de precauções de forma a evitar o vírus", para outros será difícil voltar.
"Há muitos atletas ou candidatos a atletas que o vão deixar de ser porque não tem prática, não há formas de terem experiência de prática desportiva. E vão procurar outras atividades para ocupar os seus tempos livres e isso vai retirar-lhes da prática desportiva. O nosso receio é que a paragem vai implicar a desistência de muitos atletas. A pandemia vai deixar marcas por muitos anos e vai ser difícil recuperar", vaticinou o presidente do Comité Paralímpico de Portugal, antes de dar um exemplo.
"Vou-lhe dar uma situação concreta para se ter uma ideia da dimensão da pandemia no desporto. Na passada segunda-feira, 04 de janeiro, fui visitar um atleta do atletismo que está no programa de preparação olímpica. Ao falar com o seu treinador e com o coordenador da modalidade naquele clube, foi-me dito que antes de março de 2020 tinham cerca de 200 atletas na modalidade atletismo a fazerem prática desportiva todos os dias. Agora o número não chega a 70. A baixa de inscritos nesse clube é superior a 60 por cento. Há uma grande diminuição no número de atletas neste momento em atividade. Na natação e futebol, nas camadas de formação, são milhares de pessoas não inscritas. No karaté e judo a mesma coisa, há milhares de crianças que não estão a fazer iniciação a estas modalidades", lamentou.
A preparação psicológica dos atletas é outra das preocupações, numa altura em que muitos continuam sem poder praticar desporto, sem interação social com os colegas de equipa e amigos.
Ansiedade, exaustão e até problemas no desenvolvimento neurofisiológico foram alguns dos problemas apontados por Jorge Silvério, psicólogo de desporto, como consequência da interrupção sem prazo nas competições de formação das modalidades coletivas.
"Há uma grande situação de incerteza desde o início da pandemia. Esta incerteza leva à ansiedade, a alguma confusão, a algum desapontamento, à exaustão e, nalguns atletas, até à frustração e à revolta, por não poderem fazer aquilo de que gostam", refere à Lusa o psicólogo Jorge Silvério.
Doutorado em Psicologia do Desporto pela Universidade do Minho, Jorge Silvério admitiu que a interrupção pode ter "repercussões a médio e longo prazo" no desporto jovem, que só poderão ser mais bem compreendidas quando a pandemia terminar. O especialista defendeu, por isso, a necessidade de se "proteger" o desporto, por ser uma "atividade essencial" para a "saúde física e mental" e pelas eventuais "consequências negativas" da interrupção competitiva.
Há uma grande situação de incerteza desde o início da pandemia. Esta incerteza leva à ansiedade, a alguma confusão, a algum desapontamento, à exaustão e, nalguns atletas, até à frustração e à revolta, por não poderem fazer aquilo de que gostam
"Quando dizia que um dos problemas era a ansiedade e depois até alguns sintomas mais depressivos, o desporto ajuda-nos a lidar com isso. O desporto tem um papel positivo, que deveria ser ainda mais realçado e encorajado", vinca.
O psicólogo teme ainda o "risco enorme de desistências" que advém da paragem das competições de formação, ainda para mais em Portugal, país com "níveis de prática de desporto muito baixinhos" entre a população - segundo dados do Eurostat de março de 2019, 45% da população portuguesa com 16 ou mais anos de idade praticava cinco ou mais horas de exercício físico por semana.
Todos estão a perder: Governo, federações, clubes e atletas
No dia 04 de janeiro de 2021, numa mensagem às federações, o presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP), José Manuel Constantino, apelou à coesão do setor para ultrapassar as dificuldades provocadas pela pandemia de COVID-19, entre elas as restrições de mobilidade que inibiram ou eliminaram a possibilidade da prática desportiva regular. Uma decisão que terá um efeito severo sobre o sistema desportivo, num país com baixos indicadores de prática desportiva federada e assentes numa economia associativa frágil.
O dirigente lembrou que uma das principais preocupações é a retoma da prática desportiva, em especial nos escalões de formação, e aponta como problema mais premente o risco da sustentabilidade do sistema desportivo, agravado pela total ausência de medidas políticas de apoio urgentes e extraordinárias para o mitigar. Uma preocupação que é partilhada pelo presidente do Comité Paralímpico.
"O drama que assistimos desde março é que, contrariamente ao que tem sido a preocupação do Governo de apoiar todos os sectores e ainda bem, o desporto é o único sector de atividade onde não houve qualquer estímulo de apoio a atividade, de reforço financeiro que dê resposta a paragem do próprio desporto. E não podemos ignorar que é uma atividade que dá emprego a milhares e milhares de pessoas. Não houve nenhum apoio para o desporto nas necessidades que a pandemia fez emergir, não houve a possibilidade de assinalar que o desporto também precisa de apoio financeiro e é isso que tem faltado", criticou.
Como medidas positivas do Governo, José Manuel Lourenço destaca a preocupação em "criar situação de exceção para que atletas de alto rendimento não parassem". O dirigente lembrou que "na dimensão paralímpica e apenas dos projetos de preparação paralímpica", há que "reconhecer que houve um esforço, investimento e reconhecimento por parte deste Governo e do anterior, desde 2018, no projeto, no qual houve um aumento muito significativo de verbas".
A paragem das competições deixou muitos clubes em situação financeira difíceis. Um estudo divulgado pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ) em julho de 2020 assinalava que quase um quarto das federações desportivas "admitiram ter dificuldade em cumprir com os compromissos financeiros assumidos" devido ao impacto da pandemia de COVID-19.
Segundo o estudo, promovido pelo IPDJ junto das federações desportivas com estatuto de utilidade pública para diagnosticar o impacto da pandemia, 24%, ou 11 das federações inquiridas, teve problemas em cumprir com os compromissos. As mesmas esperavam uma diminuição das fontes de receitas, sobretudo de patrocinadores, proveitos provenientes da organização de provas, filiações e autarquias.
45 das 58 federações desportivas com estatuto de utilidade pública que responderam ao inquérito, seis revelaram terem recorrido ao ‘lay-off' de trabalhadores para fazer face às dificuldades, e apenas uma das federações inquiridas a admitir que recorreu ao despedimento, de um funcionário.
Outro dos problemas identificados prende-se com a dificuldade na retoma pelos praticantes, não só pela "quebra da oferta, mas também pela diminuição da motivação e a insegurança sanitária". Para os praticantes de alto rendimento, "o maior impacto revelou-se na perda de competitividade e ritmo desportivo, ou ainda nas despesas realizadas não efetuadas", como deslocações aéreas e reservas de alojamento.
Mas não são apenas os atletas, os clubes e as federações a sofrerem com a paragem da atividade desportiva. Um estudo recente da Comissão Europeia (CE) sobre o impacto económico da COVID-19 no setor do desporto dos 28 Estados-membros em 2020 aponta, no caso português, para uma redução de 371 milhões de euros do contributo para o PIB nacional.
Cada vez mais difícil recrutar no desporto paralímpico
Num sector já de si com problemas estruturais, a pandemia de COVID-19 veio agudizar ainda mais as deficiências, principalmente no recrutamento no desporto paralímpico.
"A prática desportiva por parte de pessoas com deficiência ainda é vista no seio da família como sendo um problema que pode afetar ainda mais a qualidade de vida dessas pessoas antes de serem atletas", frisou o presidente do CPP.
"Quem não conhece os benefícios para a prática desportiva por parte de pessoas com deficiência, a primeira reação é. 'Não faças isso que isto pode fazer ainda pior'. O desconhecimento leva ao estigma, ao incutir na pessoa com deficiência algo como 'tu não consegues fazer isso'", recordou.
A situação piora em situação de pandemia.
"Uma pessoa que tem um familiar com deficiência, que tem uma maior necessidade de tocar em determinadas superfícies que podem estar infetadas, é natural que, ou a pessoa ou o seu familiar evite que a pessoa frequente aqueles sítios. Há um receio que é natural, logo tem de haver cuidados redobrados", completou.
Numa altura em que já arrancou a vacinação em massa em quase todos os Estados-membros da União Europeia, incluindo Portugal, ainda há muitas incertezas no que ao desporto diz respeito. No desporto para atletas com deficiência, os problemas poderão ser ainda maiores.
"Já temos uma grande dificuldade no recrutamento no deposto no geral, que é ainda maior no desporto paralímpico. A percentagem de pessoas com deficiência com prática desportiva é mesmo muito baixa. E há uma dimensão onde ainda é mais preocupante, que é no género feminino. Temos cada vez menos atletas com deficiência do género feminino a praticar desporto, algo que é um problema que se faz sentir de forma significativa em Portugal", recordou José Manuel Lourenço, presidente do Comité Paralímpico Português.
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