Na Turquia e na Síria vivem-se momentos difíceis por estes dias. O sismo que abalou os dois países no passado dia 06 de fevereiro provocou mais de 36 mil mortes na Turquia e mais de cinco mil na Síria. A tragédia provocou ainda mais de 108 mil feridos e milhares de desalojados, obrigando quem perdeu a casa e o trabalho a encontrar uma forma de sobreviver. As imagens que nos chegam são de uma Turquia destruída, como se o país estivesse em guerra.
Não há previsão para um momento de tréguas e, à medida que os dias passam, fica cada vez mais difícil encontrar um sinal de esperança entre os escombros. Entre as lágrimas e o desespero de quem sobreviveu, há ainda uma réstea de esperança em encontrar sobreviventes entre os escombros.
Cada cidadão procura agora vestir a capa de super-herói no meio dos destroços porque, na verdade, "muitos são poucos". No futebol, houve quem largasse a bola de futebol e as chuteiras para ajudar quem mais precisa.
Foi nessa sequência que partimos para a conversa com Marco Paixão, Diogo Sousa e Pedro Nuno, três jogadores portugueses que atualmente jogam na Turquia e nos contaram como têm lidado com a situação, em mais uma rubrica SOS Desporto. Enquanto um diz que nunca se sentiu assim na vida, outro tem esperança na recuperação do país onde joga. Há ainda quem não saiba onde vai jogar no que resta da temporada.
Marco Paixão, jogador do Altay Spor: "Antes não tinha medo, mas agora tenho"
Marco Paixão acordou às 11h de 6 de fevereiro [8h em Portugal Continental] e deparou-se logo com o caos à sua volta: "A minha mulher disse-me que tinha havido um terramoto muito grande. Entretanto, houve alguns amigos meus que me começaram a ligar, também vi as redes sociais e comecei a ver a dimensão", contou. No entanto, confessa, só se apercebeu da dimensão da catástrofe no dia seguinte, quando também entrou em contacto com outro jogador português:
"O choque veio um dia depois, quando começámos a ver aqueles vídeos que todos temos visto e naquela altura falei com o Rúben [Ribeiro, jogador do Hatayspor], que está em Hatay. Ele disse-me que estava bem e estava a ver se conseguia encontrar o Atsu [jogador do Hatayspor desaparecido e que entretanto foi encontrado sem vida] e o diretor desportivo. Quando estás nesses sítios a cabeça não existe", explicou.
"Nunca me senti assim na minha vida. Às vezes estou no ginásio e começo a chorar com vídeos de montes de crianças. Nos treinos, os jogadores começam a chorar também"
Após os terramotos, a Federação Turca de Futebol decidiu suspender as competições e, no Altay Spor, clube da segunda divisão onde joga, foi decidido dar três dias de folga aos jogadores, um período em que Marco Paixão se tem "tentado distanciar das redes sociais, para andar com a vida para a frente".
Enquanto isso, o experiente avançado de 38 anos, juntamente com os colegas de equipa, pousou as chuteiras e colocou mãos à obra: "Na minha equipa temos ajudado muito. Eu e a minha mulher já enviámos roupa e comida. Neste momento estamos a ajudar três famílias que chegaram de Malatya. Fomos comprar roupas para eles porque chegaram aqui sem nada. Vieram de carro e só tinham a roupa do corpo. Comprámos também muita água para levar para lá", contou.
"Nós, entre os jogadores, reunimo-nos para enviar um camião cheio de água"
O Altay Spor também parece estar comprometido em ajudar, mas Marco Paixão ainda espera uma iniciativa da Federação: "O clube está a fazer campanhas. Eu e três jogadores nossos colocamos camisolas em leilão. A pessoa que mais dinheiro der para as instituições de caridade nós entregamos a camisola. Também seria interessante entender o que a Federação vai fazer. Sei que eles financeiramente deram ajuda", frisou.
Apesar de tudo, o jogador português dá graças por não ter sido afetado diretamente pelo sismo, algo que aconteceu noutros clubes. Ainda assim, o impacto psicológico é transversal a todos.
"Temos falado todos, nem sabemos onde vamos encontrar forças psicológicas e físicas para jogar o final da liga, porque sinceramente as pessoas não conseguem bem entender o que esta a acontecer. Nas cidades afetadas é impossível, aliás não existe outra opção se não essas equipas estarem fora da competição. Se nós estamos longe e estamos a ser afetados dessa maneira, imaginem essas equipas", sublinhou, esperando ainda uma ação da FIFA no apoio aos jogadores que ficaram sem equipa: "Espero bem que a FIFA atue, mas hoje em dia já é de esperar tudo...", lamentou.
"Eu neste momento não estou preparado psicologicamente para ter um jogo"
Em tempos atípicos, o futebol acaba por ser a coisa mais importante das menos importantes. Para Marco Paixão, o melhor seria colocar um ponto final às competições nesta temporada e começar na próxima época.
"É difícil porque envolve muitas empresas e negócios, mas psicologicamente os jogadores não estão preparados", argumentou.
Na Turquia, a atividade sísmica não é uma novidade. Desde 2018/19 no Altay Spor, Marco Paixão já passou por vários momentos de sobressalto, mas nenhum como este: "Há dois anos vivi um terramoto aqui em que caíram vários prédios. Foi um sismo inacreditável, estava a conduzir e estava a pensar que a estrada se ia abrir. Há agora fotos desta semana das estradas completamente rebentadas. Antes não tinha medo, mas agora tenho", explicou, deixando ainda uma garantia: "Até ao final da temporada não vou dormir mais no edifício do nosso campo de treinos. O prédio onde temos os nossos quartos tem algumas rachas de um terramoto que se passou há três/quatro meses. Existe um pânico tremendo nas pessoas que vivem em edifícios, porque agora está a vir publicamente como os edifícios na Turquia são construídos, mas não posso entrar em mais detalhes porque são coisas onde não me posso meter", confessou.
Marco Paixão começa a ver o final da carreira a aproximar-se, mas não esconde o desejo de terminar o seu ciclo como jogador em Portugal ou em Espanha. Com 13 golos em 20 jogos esta época, agora é tempo de marcar o golo de uma vida e ajudar quem neste momento precisa.
Diogo Sousa, jogador do Bodrumspor: "Entrei em contacto com o Demiral para perceber que tipo de organização poderia ajudar"
Diogo Sousa, guarda-redes português do Bodrumspor, estava em Istambul quando tudo aconteceu: "Íamos ter o último jogo da jornada. Acordei, fui ao Twitter e percebi que estava alguma coisa errada. Na altura quando acordei não tive noção da dimensão da coisa, tal como o restante staff. Tomávamos o pequeno almoço e já se falava que o jogo podia ser anulado. Com o desenrolar do dia, começamos todos a perceber que era grave e ficamos todos em choque. Jogar não era apropriado e ninguém queria celebrar uma vitória numa situação destas", começou por referir, dando graças por não ser um dos afetados pelo sismo [em Istambul não se fez sentir].
Mesmo sem ser diretamente afetado pela tragédia, o guardião português de 24 anos não ficou de fora da luta e esperou apenas um dia para regressar a Bodrum e "tomar algumas medidas para ajudar as pessoas".
Na ação solidária, Diogo Sousa juntou-se ao ex-colega de equipa Demiral (jogaram juntos no Sporting), que já se tinha destacado com o leilão de camisolas.
"Entrei em contacto com ele para perceber que tipo de organização eu poderia ajudar. Ele falou-me de uma ONG, a Ahbap, que está com muita força a ajudar as pessoas", contou.
Mas não se ficou por aqui: "Individualmente, fiz a minha contribuição financeira e depois partilhei com quem podia. Quando chegamos a Bodrum na terça-feira, o clube partilhou nas redes sociais que no centro da cidade estavam a fazer recolha de comida e fui ao supermercado comprar mantimentos, comida e roupa. Passados dois dias, a equipa esteve a tentar decidir a melhor forma de ajudar: pensamos em comprar contentores para poder alojar pessoas, mas iriam demorar montes de tempo", contou.
Saiba mais sobre a Ahbap, a ONG que está a ajudar a Turquia
"Juntámo-nos todos e fomos ao supermercado da cidade comprar mantimentos e comida. Vários autocarros do clube foram às cidades distribuir isso"
Apesar de estas serem ajudas à distância, Diogo Sousa também se via em ação no terreno, apesar de existirem sempre alguns entraves: "Não tenho nenhum problema com isso. Mas o local do terramoto foi bastante longe daqui, o que dificulta bastante isso e já voltámos aos treinos", referiu.
A verdade é que o regresso aos trabalhos esteve longe de ser uma tarefa fácil: "A nossa cabeça não estava focada no futebol. Eu não sou muito de ver televisão, mas tu passas num restaurante ou num café e só passa aquilo. As pessoas estão muito afetadas e ninguém estava a pensar em futebol naquele momento", explicou, frisando ainda a incerteza que se vive quanto ao regresso das competições.
"A Turquia é um país em risco de sismo, mas Portugal também o é. Isto podia ter acontecido em algum lado"
Bem dentro da realidade na Turquia, Diogo Sousa admite o receio que se vive entre a população, mas sublinha que esta era uma tragédia que podia ter acontecido em qualquer lugar: "O que se nota agora é que as pessoas estão bastante agitadas e com receio disto voltar a acontecer. A Turquia é um país em risco de sismo, mas Portugal também o é", começou por referir, antes de defender aquilo que considera ser o papel do desporto rei nesta fase.
"O futebol acaba por unir as pessoas e temos visto isso por exemplo entre clubes rivais como o Fenerbahçe e Galatarasay ou Trabzonspor e Besiktas. Nisso tenho mesmo de destacar que os turcos são um povo muito solidário. Acho que o futebol pode ajudar a minimizar os danos quer em termos financeiros como emocionais", sublinhou.
No Bodrumspor todos estão bem e apenas houve um susto que envolveu um colega de equipa: "No nosso plantel tivemos um colega de equipa, que, pelo que percebi, teve um primo que sofreu com o terramoto e foi resgatado logo de imediato. Felizmente não houve ligação direta a membros do nosso staff e plantel. Nota-se que toda a gente está em baixo", destacou.
Diogo Sousa considera-se uma "pessoa muito feliz" na Turquia e não é o sismo que lhe tira a vontade de continuar por lá: "Adoro a Turquia, as pessoas são espetaculares, e não estou com receio nenhum porque pode acontecer em qualquer lado. Neste momento é importante transmitir isso às pessoas, porque a Turquia é um sitio espetacular para visitar e principalmente nesta fase eles vão precisar disso", argumentou.
Esta passagem pelo Bodrum pode ser temporária, uma vez que o jogador está emprestado pelo Antalyaspor, onde joga o seu amigo Fredy [em Portugal vestiu a camisola do Belenenses] e com quem tem estado em contacto nesta fase: "Sei através dele o que se vai passando em Hatay, porque tem contacto direto com o Rúben Ribeiro e vai transmitindo-lhe que a situação é difícil e o facto de ainda não encontrarem o Atsu dói ainda mais por ser um colega de profissão", frisou.
Diogo Sousa cumpre a segunda temporada na Turquia, depois de uma longa ligação ao Sporting. Neste momento não está em risco de ficar sem clube, uma vez que, para além de estar emprestado, o Bodrumspor não manifesta intenções de abandonar as provas. Enquanto espera pelo reatar das competições, vai ajudando no que pode um povo que admira muito.
Pedro Nuno, jogador do Adanaspor, estava em Portugal quando tudo aconteceu: "Tive a sorte de não passar pelos momentos de aflição que os meus colegas passaram"
Pedro Nuno, jogador do Adanaspor, teve a sorte que muitos outros não tiveram: estava seguro em Portugal quando a tragédia se abateu sobre a Turquia e a Síria.
"Tinha adormecido no sofá e a meio da noite acordei para ir para a cama, fui ao telemóvel, tinha imensas mensagens no grupo do clube e achei aquilo estranho. Quando abri, havia lá mensagens dos diretores e do pessoal todo a dizerem para saírem dos prédios e das habitações onde estavam. Na altura, todos responderam e percebi que estava toda a gente bem. Depois mandei mensagem a um colega meu de lá, ele disse que tinha sentido um grande tremor e que tinha saído de casa apara ir para as instalações do clube e que lá estava mais seguro", contou, admitindo que só no dia seguinte se apercebeu da real dimensão da situação.
"Tive a sorte de não passar por aqueles momentos de aflição que os meus colegas passaram"
Pedro Nuno não escondeu o alívio por estar seguro na Figueira da Foz, de onde é natural: "A sensação que eu tive foi de ter tido muita sorte de ter vindo cá, porque nem estava programado. Só estava a contar vir em março, mas ganhamos o jogo na sexta, o treinador deu dois digas de folga e eu pedi mais um", explicou.
A verdade é que, apesar de estar longe da Turquia, o impacto fez-se sentir na mesma. Pedro Nuno não sabe se vai voltar a jogar esta temporada, porque o Atanaspor desistiu da segunda divisão turca: "Hei-de ter de ir lá [à Turquia], porque tenho lá as minhas coisas, portanto estou mesmo à espera. Não é fácil, porque é uma situação complicada para nós jogadores. Acabar assim uma liga e entrar noutra equipa a meio do campeonato não é fácil", frisou, antes de comentar qual deveria ser o papel da FIFA nesta situação:
"Não sei se vão abrir exceção como fizeram com a guerra da Ucrânia. Espero que sim, porque esta é a nossa profissão e não deixando outras equipas nos inscreverem vamos ser muito prejudicados porque vamos estar até à próxima época sem jogar. Se para um jogador de futebol estar uma/duas semanas parados já é muito, o que dizer de quatro cinco/meses? Não faz sentido nenhum não permitirem isso", argumentou.
"Gostava de ter a minha situação resolvida rapidamente, mas vamos ver"
Até lá, Pedro Nuno vai mantendo a forma física à distância e longe dos relvados: "Tenho treinado todos os dias no ginásio com pessoas que conheço. Eles [o clube] estão mais preocupados com o que se passa na cidade e isso tem de partir um bocado do jogador. Eu prefiro fazer os meus treinos e resolver a minha situação da melhor maneira", explicou.
Longe da realidade da Turquia, o médio de 28 anos não deixa de se preocupar com quem lhe é mais próximo: "Quem tenho falado mais é o Estrela [jogador do Erzurumspor] e ele também curiosamente veio a Portugal e não apanhou o sismo. A situação dele é diferente da minha [o clube não irá desistir do campeonato]. Temos mantido contacto para perceber a situação de outros jogadores com quem ele tem falado"
Com o futuro ainda incerto, é tempo de ajudar quem mais precisa. Pedro Nuno confessa que "não é fácil ajudar de longe", mas quem sabe num regresso à Turquia possa "ajudar as pessoas e comprar mantimentos".
Os tempos que se seguem no futebol turco também devem ser encarados com esperança: "Lá na Turquia gostam muito de futebol. Acho que até pode ser uma forma de dar às pessoas uma força e ajuda. Este deverá ser diferente. Com as equipas que desistem, já mexe o campeonato. Com as milhares de pessoas que infelizmente perderam a vida não vai ser fácil, mas acho que no futuro todos vão tentar regressar a vida normal e acho que o futebol no futuro não será muito afetado porque os adeptos gostam muito disso", sublinhou.
"Ir a um jogo pode ser algo que faça as pessoas «esqueceram-se» do que aconteceu e do que passaram"
Apesar de todos os medos transversais ao ser humano, Pedro Nuno não se sente intimidado com um eventual regresso à Turquia: "Acho que as tragédias tanto podem acontecer lá como cá. Se houver essa possibilidade de regressar, não me causa muito receio. Também é a minha profissão, as coisas se tiverem de acontecer acontecem", rematou.
Em Portugal, passou por clubes como a BSAD, Moreirense e Tondela. Agora, procura uma nova casa para fazer aquilo que de mais gosta: jogar futebol.
Uns vestem a capa de super-herói e outros tentam encontrar um novo rumo para a sua vida: são os tempos que se vivem e que não parecem ter fim à vista. Resta a esperança de um amanhã melhor.
Sobre os sismos na Turquia e na Síria
No passado dia 06 de fevereiro, a Turquia e a Síria registaram sismos de magnitudes de 7,8 e 7,5 na escala de Richter, com réplicas fortes, uma das quais de 6,0.
Pelo menos 36.187 pessoas morreram e outras 108.000 ficaram feridas em solo turco, declarou esta quinta-feira a agência de gestão de emergências e desastres da Turquia (AFAD).
Os sismos provocaram a queda de milhares de edifícios - sob os quais dezenas de milhares de corpos ainda podem estar soterrados, alertaram vários especialistas turcos e internacionais - e outras 50.000 edificações foram gravemente danificadas e terão de ser demolidas. Entre os desaparecidos estava o antigo jogador do FC Porto, Christian Atsu, entretanto encontrado sem vida.
Já na Síria, até ao momento, cerca de 5.000 pessoas morreram devido aos sismos.
Veja na galeria como as imagens de satélite estão a ajudar as forças de socorro na Turquia e Síria:
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