A 8 de março de 2020 jogava-se um Paços de Ferreira-V.Guimarães a contar para a 20.ª jornada da I Liga 2019/20. Os vimaranenses acabariam por vencer por 2-1. Os 4105 espectadores que assistiram ao vivo ao encontro não faziam, na altura, ideia, mas estavam a assistir ao último jogo de futebol do escalão principal realizado sem restrições de adeptos nos estádios. Na II liga viria a jogar-se ainda mais um, no dia seguinte, com o Leixões a empatar 1-1 na receção ao Farense, perante 4234 espectadores.
A partir daí, tudo mudou. Com o vírus da COVID-19, cuja noticia da primeira infeção no nosso país havia chegado na anterior semana, a alastrar-se, os recintos desportivos fecharam portas ao público. As competições acabariam mesmo por ser interrompidas e a I Liga, quando regressou, regressou sem adeptos. Uma nova realidade e um silêncio ensurdecedor nos estádios que inevitavelmente teve consequências - desportivas e financeiras - para os clubes. Os chamados 'três grandes' que o digam.
Benfica e FC Porto viram percentagem de vitórias caseiras na I Liga cair
Habituados a terem dezenas de milhares de adeptos quando jogavam em casa e muitos milhares a seguirem-nos quando jogavam fora de portas, Benfica, FC Porto e Sporting (e todos os outros clubes, claro) tiveram de aprender a viver e a jogar com as bancadas vazias. O primeiro dos três a jogar em casa nestas condições foi o Benfica. Estávamos a 4 de junho de 2020 e o resultado foi tão desolador (para as 'águias') como o ambiente no Estádio da Luz: 0-0.
O jogo seguinte das 'águias' em casa correria ainda pior: derrota por 4-3 ante um Santa Clara que nunca antes tinha vencido na Luz. No final da partida, o treinador do conjunto insular, José Henriques, admitia a importância que o facto de o Benfica não ter contado com adeptos na bancada teve para o êxito da sua equipa e para o que outros conjuntos de menor dimensão vinham conseguindo face a equipas de maior dimensão desde o retomar da prova, sem espectadores.
"A ausência do público não dá vantagem a quem tem as massas. Esta tarde, com 60 mil pessoas na bancada, o público teria empurrado o Benfica para a frente. Não estar público nas bancadas é uma desvantagem para o Benfica e uma vantagem para nós. Estamos mais soltos, com menos pressão, e isso ajudou-nos", disse então o treinador dos açorianos.
"Para uma equipa de menor dimensão, aquele contexto que poderia ser ameaçador pode agora transformar-se, sem adeptos, numa perspetiva de oportunidade"
Em entrevista ao SAPO Desporto, na altura, Luís Parente, técnico superior em psicologia do desporto, explicava que as equipas de menor expressão passaram a sentir outra segurança quando jogam no recinto de um 'grande'. "Para uma equipa de menor dimensão que vá a um Estádio da Luz, ou a um Dragão, aquele contexto que poderia ser ameaçador e gerar ansiedade e perceção de inferioridade em relação ao ambiente pode agora transformar-se, sem adeptos, numa perspetiva de oportunidade, levando a equipa sentir-se mais confortável para aplicar o seu plano de jogo e a sua identidade de forma menos condicionada", afirma.
Fazendo contas, vemos que o Benfica venceu apenas 67% (11) dos 16 jogos que disputou na I Liga desde que as bancadas foram encerradas. Nos 16 jogos caseiros para a prova que antecederam esse fecho de portas aos adeptos a percentagem de vitórias fora de 81%.
O FC Porto, por seu lado, venceu 12 dos 16 jogos que disputou desde junho à porta fechada no Estádio do Dragão para o campeonato (75% de vitórias); nos anteriores 16 tinha ganho 14 (87%). Já o Sporting disputou, desde então, 15 partidas para a I Liga como anfitrião e venceu 12 (80% de vitórias); nos 15 anteriores à pandemia tinham vencido 11 (73%).
Coincidência, ou não, o Sporting foi então o único dos 'três grandes' a ver a sua percentagem de vitórias caseiras subir após a interdição do público nos estádios.
"Fazem falta, os adeptos, principalmente ao Benfica. Os grandes clubes são os que têm massa adepta, e o Benfica não é por acaso que é um grande clube. Temos falta dos adeptos nos estádios", reconheceu recentemente Jorge Jesus.
Também Sérgio Conceição reconheceu o impacto das bancadas vazias. "Não pensei que fosse assim tão acentuada esta ausência dos adeptos, não pensei que se fosse sentir assim tanto esta ausência dos adeptos. Mas faz falta. Têm acontecido no resto da Europa alguns erros, algumas falhas de concentração, que têm surgido mais vezes e deve ser essa também a razão", afirmou, ainda na temporada passada, o treinador do FC Porto.
Quebras de receitas, reduções salariais, 'lay-offs' e passivos a aumentar
Mas se, dentro das quatro linhas, os jogadores se foram habituando ao silêncio, fora delas os cofres dos clubes sofreram e continuam a sofrer, e muito, perante as bancadas desertas.
Recentemente, a Liga de Clubes anunciou que a pandemia da COVID-19 já provocou uma quebra de receitas no futebol profissional que ascende a 276 milhões de euros. "A nossa expectativa é que teremos um impacto de 276 milhões de euros na área das receitas”, disse a directora executiva da LFPF, Susana Rodas, no âmbito de um 'webinar' integrado no programa da realização da final a quatro da Taça da Liga, em Leiria.
Um olhar rápido para as contas apresentadas nas últimas semanas pelas SADs de Benfica, FC Porto e Sporting referentes ao primeiro semestre da presente época atesta esses números da Liga de Clubes. Nos 'leões' a quebra de receita operacionais excluindo transações de jogadores foi de 8,9 milhões no semestre, com o clube de Alvalade a apresentar um resultado líquido negativo de 6,9 milhões.
"Os resultados do primeiro semestre da época 2020/21 resultam do impacto incontornável das consequências causadas pela pandemia Covid-19, cujo efeito tem sido global, não sendo a Sporting SAD exceção. A Sporting SAD fechou o primeiro semestre da época desportiva de 2020/21 com um volume de negócios de 61,8 milhões de euros, o que representa uma redução de 32% face ao período homólogo", justifica a SAD leonina no documento que acompanha o relatório enviado à CMVM.
Em novembro último, o Sporting estimou que a realização dos jogos da equipa profissional à porta fechada, que não permite a venda das habituais Gamebox, da bilheteira jogo a jogo, do corporate (camarotes e business seats) deverá determinar uma perda de 17,5 milhões de euros no final da atual temporada, frisando não estar a ter sequer em conta o facto de o bom desempenho da equipa dentro das quatro linhas poder, em teoria, levar a que as receitas fossem ainda maiores.
Face à pandemia e a esta redução de receitas derivada à ausência de receitas de bilheteira, o Sporting chegou a colocar 95% dos trabalhadores do universo de trabalhadores leonino em 'lay off' de forma a reduzir os custos com o pessoal e acordou com os futebolistas uma redução salarial de 40% em Abril, Maio e Junho. Já em janeiro deste ano, procedeu a uma reestruturação de algumas áreas, com a saída de vários funcionários.
Quanto ao Benfica, teve uma quebra de 47,5% em termos de receitas operacionais face ao período homólogo do ano passado e viu o seu passivo subir em quase 100 M€ em relação ao período homólogo. Uma subida ainda assim compensada pelo aumento do ativo de 487 para 594 M€.
No final do último verão, Domingos Soares Oliveira, CEO do Benfica, falava num impacto a dois níveis da pandemia. "Tivemos aqui dois impactos: um que nunca conseguiremos medir, que é o do lado desportivo, ou seja, o que é que teria acontecido com o Benfica se não tivéssemos tido a pandemia, e outro que é a componente mais económico-financeira. O impacto total da COVID-19 no exercício 2019/20 terá sido ligeiramente superior a 12 milhões de euros, derivado de termos menos receita de bilhética", explicou.
Quanto ao FC Porto, apresenta no seu relatório e contas do primeiro semestre da presente época uma quebra de proveitos advindos da publicidade e sponsorização na ordem dos 36%, atribuindo este resultado à pandemia. Esta causou, estima o clube azul e branco, uma perda de mais de oito milhões de euros em bilheteira, comparando com o período homólogo de 2019.
O passivo dos 'dragões' subiu, no último semestre, quase 50 milhões em seis meses, embora estes tenham registado um lucro global de 34,4 milhões de euros, graças, sobretudo, à boa campanha na presente edição da Liga dos Campeões e à venda de jogadores.
"Os clubes continuam a pagar os impostos mas não têm receitas. Sem bilheteira e sem os lugares anuais, temos um prejuízo de 27 milhões"
Jorge Nuno Pinto da Costa não poupou, no final de setembro, criticas ao governo. "Os clubes continuam a pagar os impostos mas não têm receitas. Sem bilheteira e sem os lugares anuais, temos um prejuízo de 27 milhões. Se não pagarmos vêm logo as multas e as ameaças. Este Governo vai ficar ligado à falência do futebol e do desporto", sublinhou o líder máximo do FC Porto.
Ensaios esporádicos e de curta duração...e um 'raio de sol' de esperança nos Açores
À medida que os meses foram passando, perante muita pressão dos clubes para a reabertura dos estádios ao público e com os números da chamada primeira vaga da COVID-19 no nosso país a baixarem, o governo acedeu a fazer pequenas experiências de abertura dos recintos ao público. Chamou-lhes 'testes piloto'.
O primeiro ocorreu num jogo da Seleção Nacional, amigável, frente à Espanha no Estádio José de Alvalade. Foram 2500 espectadores os que tiveram a oportunidade de assistir ao vivo ao duelo ibérico, que terminou com um empate sem golos. Dias depois, no jogo seguinte da Seleção já foram 5000 os que puderam entrar no mesmo estádio para assistirem ao triunfo de Portugal sobre a Suécia, por 3-0, para a Liga das Nações.
Antes, já as autoridades regionais dos Açores tinham dado autorização ao Santa Clara para, com o devido distanciamento social entre cadeiras, receber adeptos no seu estádio, em São Miguel, o que aconteceu nas partidas com o Gil Vicente e o Sporting. Os testes não correram mal e, pouco depois, FC Porto, Benfica e Sp.Braga foram autorizados a abrir 15% da lotação dos respetivos recintos nas partidas para as competições europeias. Na I Liga, também Farense e Tondela tiveram oportunidade de fazer um jogo perante alguns (poucos) adeptos.
Só que, com o número de infeções a voltar a crescer e a chegada da 'segunda onda' de COVID-19 ao nosso país, só o puderam fazer por uma ocasião. Depressa o governo voltou a dar um passo atrás e um ano depois, os estádios da I Liga continuam sem adeptos, para mal dos cofres dos três grandes e dos restantes emblemas do futebol profissional em Portugal. Com uma exceção...
No final de fevereiro, porém, uma boa notícia. O jogo entre Santa Clara e Paços de Ferreira, da 21.ª jornada da I Liga, foi autorizado a receber público nas bancadas. A decisão foi tomada em articulação com o Governo Regional dos Açores, nomeadamente com a Direção Regional da Saúde (DRS), respeitando um decreto regulamentar regional que prevê a "limitação da presença de público em eventos culturais e competições desportivas a um terço da respetiva lotação garantindo as regras de distanciamento social".
Uma luz ao fundo do túnel com vista ao regresso dos adeptos a todos os estádios, após um ano de estádios desertos.
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