Certamente já vimos e ouvimos a expressão de que "somos o que comemos", mas será que as nossas escolhas alimentares definem-nos enquanto pessoas? Expressões como estas são extrapoladas, principalmente nas redes sociais, servindo de auto-definição e auto motivação, querendo mostrar aos outros em que ponto estamos nas nossas vidas.
É certo que um indivíduo que se alimente à base de gorduras saturadas, grandes porções de açúcar e pouco exercício físico será considerado - socialmente - um preguiçoso e desleixado. Porém, e sempre que a sua saúde não seja colocada em risco, as escolhas alimentares não vão interferir com a sua personalidade, muito menos com os objetivos de vida.
Seja por questões éticas, ambientalistas ou de saúde, há cada vez mais pessoas a migrarem de uma dieta omnívora para uma à base de plantas. Em Portugal, existem poucos estudos sobre o veganismo/vegetarianismo, mas um estudo da consultora Nielsen, divulgado em 2018, mostrou que nos últimos dez anos o número de vegetarianos [diferente de veganismo] quadruplicou. Estima-se serem cerca de 120 mil portugueses, o que corresponde a 1,2% da população.
Curiosamente, estas alterações aplicam-se também a atletas profissionais, até aos que jogam no escalão máximo do futebol português.
Parte 1. Quantos vegetarianos/veganos atuam no principal campeonato português?
É preciso distinguir um vegetariano de um vegano, porque essas diferenças são mais acentuadas do que pode parecer. Um vegetariano é um indivíduo que exclui da sua alimentação todo o tipo de carne e pescado, mas consome os seus sub-produtos (lacticínios, ovos, mel, caviar...). Já o vegano, exclui todos [é importante sublinhar que são mesmo todos] os produtos de origem animal, desde a alimentação até ao vestuário, cosmética, higiene pessoal ou produtos de limpeza. Ou seja, um vegano não come queijo, ovo, mel e nem vai utilizar um produto de higiene que tenha sido testado num animal, sendo um estilo de vida que não se limita apenas à alimentação, ao contrário do vegetariano.
O campeonato português, na época 2020/21, é formado por 18 clubes e 532 jogadores. A título de curiosidade, o maior plantel é o do Vitória SC, com 36 atletas, e o menor é o do Tondela (25). No gráfico abaixo podemos verificar como está distribuído o tipo de regime alimentar pelos jogadores da I Liga.
A soma dos jogadores que seguem uma alimentação vegetariana não chega nem a 1%, contando apenas com cinco jogadores (quatro vegetarianos e um vegano) que fogem à regra (99,06%).
Parte 2. Mas, afinal, quem são os jogadores que quebram com os padrões alimentares na I Liga?
Luca Waldschmidt, que chegou para reforçar o plantel do Benfica na época 2020/21, é um dos jogadores que optou por mudar o seu estilo de vida, “pelos animais e pelo bem do planeta”, disse o jogador em declarações ao SAPO Desporto.
“Acho que todos devíamos pensar um pouco sobre este tema, mas mais importante é perceber o que é melhor para cada um de nós. Devíamos estar abertos para novas experiências, é certo, mas sei que cada um de nós é diferente“, contou-nos.
Já o jovem Samir Banjai, do Belenenses SAD, confessou-nos que a mudança deu-se para “melhorar a performance desportiva”, explicando que desde então “melhorou muito”.
“Muitos já me perguntaram o que eu como para correr tanto e não me cansar com muita facilidade. Até já me disseram que estou sempre com vontade de treinar“, afirmou o defesa central, com dupla nacionalidade (Portugal e Guiné-Bissau), de 21 anos.
Este padrão alimentar vem romper com as regras de uma dieta tradicional de um atleta, em que a carne (principalmente branca), ovos e leite de vaca servem de combustível proteico. Para os nutricionistas dos clubes esta escolha livre do jogador não é um obstáculo quando têm de os aconselhar.
"Os principais cuidados a ter com um atleta que tem por base uma alimentação vegetariana estão relacionados com o aporte proteico, vitamínico e mineral da sua alimentação. Uma dieta vegetariana mal calculada, em que o atleta apenas se preocupe em substituir os alimentos de origem animal por alimentos de origem vegetal, pode acarretar vários défices nutricionais. Por isso é que, a meu ver, o acompanhamento nutricional destes atletas é fundamental. Devemos sempre assegurar que o atleta sabe quais as suas necessidades, e de que forma as pode suprimir com base em alimentos de origem vegetal (que quantidade de leguminosas deve conter o seu prato, que outras opções podem garantir um adequado aporte proteico naquela refeição, etc...)", diz-nos Carlos Caetano, nutricionista da equipa principal do Benfica.
Cristian Tassano é outro jogador que adotou um regime vegetariano, muito por "influência da namorada" e "pelos documentários sobre atletas vegetarianos e veganos" a que assistiu e que o "levaram a experimentar esta nova dieta". Transferido recentemente para o Santa Clara, o defesa uruguaio explica que o rendimento "aumentou bastante", sentindo-se "muito melhor a cada dia que passa", tendo "menos cansaço e mais energia."
Tassano, de 24 anos e com 1,85 metros de altura, refere que "desde o primeiro dia, o nutricionista esteve presente no acompanhamento" da dieta. O responsável por este orientação é Tiago Dias, que confessou-nos ser "um desafio, na medida em que, dependendo do nível de restrições alimentares do atleta, poderá existir um maior risco de carências nutricionais", sublinhando que o trabalho de um nutricionista é mesmo esse: "Encontrar soluções, em trabalho conjunto com a restante equipa médica e técnica, para adequar e melhorar os hábitos alimentares dos nossos atletas, respeitando as opções e escolhas individuais, de modo a potenciar a sua saúde e o seu rendimento físico."
Trabalhando lado a lado com os jogadores, os nutricionistas dos clubes estão de acordo em que o rendimento de um atleta não é influenciado pelo padrão alimentar escolhido (vegetariano ou omnívoro), desde que que "o plano alimentar seja bem estruturado".
"Até hoje, na minha prática profissional, não identifiquei nenhum atleta que tivesse um rendimento superior ou inferior aos restantes por seguir um regime alimentar vegetariano", explica Carlos Caetano, ao que o nutricionista do clube açoriano acrescenta que "até pode trazer algumas vantagens, particularmente fazendo com que o jogador, até inconscientemente, tenha uma maior ingestão de hidratos de carbono, o que poderá ser positivo para o seu rendimento. Também o facto de ter uma alimentação, à partida, mais rica em hortofrutícolas, contribuirá para um bom aporte de nutrientes antioxidantes, importantes para o sistema imunitário".
"Se o atleta souber quais os objetivos e as suas necessidades nutricionais, e forem formados acerca da melhor forma de atingirem essas mesmas necessidades, não há qualquer razão para o rendimento ser inferior", fez questão de realçar Carlos Caetano.
"Vegetais, lentilhas e feijão" são alguns dos alimentos preferidos de Luca Waldschmidt, destacando as boas fontes de proteína que provêm deles. Já na alimentação de Samir não pode faltar "aveia, ovo cozido e batata doce". O segredo passa também por "não estar sempre a comer a mesma coisa", refere o alemão.
"Acho que já estamos acostumados com o fato de que comer carne é normal por vir de hábitos tradicionais, mas é bom pesquisar e começar a experimentar coisas novas. A mudança fez-me conhecer muitos alimentos que eu nem conhecia. As pessoas pensam que as refeições vegetarianas ou veganas significam tirar os alimentos e, na minha opinião, foi o conhecer e o agregar de mais alimentos na minha dieta. Recomendo que experimentem porque é muito saudável", explica Tassano, em jeito de desafio.
Realçar que é imperativo existir, para estes atletas, um "planeamento nutricional muito cuidadoso", destaca Tiago Dias, lembrando que "o consumo de alimentos de origem animal também será importante para se atingirem certas necessidades nutricionais".
"Felizmente, a indústria alimentar também se tem adaptado a estas exigências específicas e já temos muitas alternativas de origem vegetal que nos permitem adequar este padrão alimentar ao desporto de alto rendimento", lembra o nutricionista do Santa Clara.
No sentido contrário, há quem tenha passado de uma dieta omnívora para uma vegetariana e regressado a comer de tudo. É o caso de João Amaral, atual jogador do Paços de Ferreira. Em março de 2020, confessou que seguia uma dieta vegetariana quando esteve na Polónia, ao serviço do Lech Poznan, mas quando chegou à Capital do Móvel as coisas foram diferentes.
“Não sentia a falta da carne e do peixe, mas o nutricionista do Paços fez-me ver as coisas de forma diferente”, disse o médio português ao jornal O Jogo.
O mesmo aconteceu ao francês Bilel Aouacheria, que recentemente trocou o Moreirense pelo Farense. Porém, o extremo direito francês de 26 anos apenas excluiu a carne da sua dieta omnívora.
Parte 3. A verdade científica por detrás das escolhas
António Pedro Mendes é formado pela Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto e contribui com o seu conhecimento, entre outras várias instituições, na Clínica Espregueira-Mendes Sports Centre – FIFA Medical Centre of Excellence, sendo ainda co-fundador da Nutriens Academy e membro integrante do Conselho Geral da Ordem dos Nutricionistas.
SAPO Desporto - Existem diferenças entre um jogador omnívoro, vegetariano ou vegano no que respeita ao seu rendimento desportivo?
António Pedro Mendes - A ciência parece mostrar que, quando se avaliam parâmetros metabólicos, ou mesmo através da avaliação direta de performance, não há diferenças significativas. Mas é preciso considerar que os trabalhos científicos raramente incluem atletas de elite, pelo que é impossível dizer com segurança que não há, efetivamente, diferenças. E o facto de haver tantas condicionantes ainda complica mais explorar esta questão.
SAPO Desporto - Para um nutricionista, é um desafio grande acompanhar atletas que excluam carnes e peixes das suas dietas?
António Pedro Mendes - Não diria que é um grande desafio, porque estamos preparados para lidar com estas exclusões. Mas a verdade é que exige mais atenção e dedicação, não só no contato direto com o atleta, mas também na programação dos estágios, deslocações e refeições em equipa.
SAPO Desporto - Quais as dificuldades e cuidados com os jogadores que seguem um regime vegetariano? Um vegano é ainda mais complicado?
António Pedro Mendes - Os cuidados com um atleta vegetariano ou vegano passam, numa primeira fase, por garantir um aporte energético, bem como de macro e micronutrientes, adequado ao objetivo e à prática desportiva. Não é de menosprezar as diferenças no valor biológico entre proteínas de origem animal e de origem vegetal. Para além disso, há trabalhos que mostram que indivíduos vegetarianos consomem uma quantidade total diária de proteína inferior a indivíduos omnívoros. No caso de veganos, a diferença ainda se acentua mais. Portanto, este é um dos fatores que terá de ser bem estudado e programado para evitar ingestões sub-ótimas.
SAPO Desporto - A diferença entre a proteína de origem animal ou vegetal pode ter impacto na performance do jogador?
António Pedro Mendes - Para além das suas funções estruturais, as proteínas têm funções fundamentais na recuperação de treinos e eventos competitivos, assim como na potenciação das adaptações ao treino. Assim, deverão ser feitos ajustes na ingestão proteica diária, assim como na distribuição ao longo das refeições. Também a adição de alguns aminoácidos, ou a própria conjugação de diferentes fontes alimentares, poderá melhorar a capacidade das proteínas de origem vegetal estimularem a síntese proteica muscular.
SAPO Desporto - Atualmente existem cinco jogadores vegetarianos/veganos na I Liga? Acha que esse número poderá aumentar nos próximos anos?
António Pedro Mendes - Há vários fatores que podem justificar uma adesão crescente a padrões alimentares vegetarianos, nomeadamente preocupações com o ambiente ou compaixão com os animais. Acredito que, para além disto, há uma crença de que uma alimentação vegetariana poderá levar a um maior rendimento desportivo e/ou saúde otimizada. E esta crença deve-se, em grande parte, a um famoso documentário de 2018 [The Game Changers, Netflix], que apesar de todas as suas incongruências e argumentos falaciosos teve um impacto enorme na opinião pública. Portanto, se não houver um esclarecimento relativamente a este tipo de propaganda, e caso surjam mais documentários ou depoimentos enviesados que apontem neste sentido, acredito que o número de atletas a querer experimentar um padrão alimentar vegetariano aumentará.
SAPO Desporto - Que verdades e mentiras estão associadas a este tipo de alimentação?
António Pedro Mendes - São inúmeras as alegações sem quaisquer fundamentos científicos de base. A verdade é que os padrões alimentares vegetarianos têm, na maior parte das vezes, motivações éticas e de forte componente emocional, o que pode explicar o maior peso que indivíduos vegetarianos dão às experiências pessoais (dos próprios e/ou dos seus pares).
A verdade é que o método científico é a única forma de produzir conhecimento.
E é imperioso deixar esta diferença bem esclarecida. O que cada um sente com determinada estratégia alimentar não valida a aplicação dessa mesma estratégia como algo vantajoso de uma forma geral. Até porque os fatores que condicionam toda uma resposta fisiológica e emocional são impossíveis de controlar na sua totalidade.
SAPO Desporto - Este padrão alimentar pode ter impactos diferentes em jogadores que joguem apenas uma vez por semana ou naqueles que joguem quase três vezes por semana? Faz diferença nos tempos de recuperação?
António Pedro Mendes - É uma excelente questão e que nós, nutricionistas, gostaríamos de ter sustentação científica suficiente para responder com maior convicção. A recuperação é um conceito vasto e que implica um vasto conjunto de estratégias nutricionais que permitam a reposição das reservas de glicogénio, a reparação (e eventual crescimento) muscular, a otimização das adaptações ao treino e a correta reposição de fluidos. Várias estratégias nutricionais foram já estudadas em cada uma destas vertentes da recuperação, e a verdade é que, se a qualidade, quantidade e timing de ingestão das proteínas, hidratos de carbono e fluidos for bem programada, não me parece que um padrão alimentar vegetariano possa condicionar a recuperação.
SAPO Desporto - Na sua opinião, deveriam ser integrados mais pratos vegetarianos para jogadores profissionais que não sejam vegetarianos, ou isso não faz sentido?
António Pedro Mendes - Desde que bem integrados do ponto de vista nutricional, não vejo problema em aumentar a disponibilidade alimentar de pratos vegetarianos. Acredito que, se o orçamento de cada clube o permitir, ter pratos vegetarianos como opção ao prato de carne ou peixe seria uma vantagem. Até porque os pratos vegetarianos têm, por norma, um teor de hidratos de carbono maior, o que pode ser útil em algumas situações.
SAPO Desporto - Acha que os clubes de futebol - e os nutricionistas - estão preparados para receber este tipo de jogadores?
António Pedro Mendes - Estão cada vez mais preparados. Há vários trabalhos que estudaram a prevalência de atletas que seguem um padrão alimentar vegetariano e os resultados rondam os 3 a 6%, pelo que é cada vez mais uma realidade para a qual é necessário estar preparado.
SAPO Desporto - Um atleta será melhor com uma dieta vegetariana/vegana?
António Pedro Mendes - Não há qualquer evidência que aponte nesse sentido. É claramente wishful thinking.
Restringir produtos de origem animal com o objetivo de aumentar o rendimento desportivo é uma decisão sem qualquer sustentação científica.
Parte 4. O vegetarianismo lá fora
Recentemente, Hector Bellerín, que é vegano há três anos, tornou-se no segundo maior acionista do Forest Green Rovers, um clube que milita na quarta divisão inglesa e que é conhecido pelas preocupações ambientais. O internacional espanhol do Arsenal viu nesta ação uma oportunidade para consciencializar os jogadores e os clubes de futebol para os problemas ambientais, assim como a promoção da sustentabilidade na modalidade.
Bellerín é, possivelmente, o jogador de futebol vegano com maior expressão, contando com mais de três milhões de seguidores no Instagram. Nesta plataforma, o lateral, nascido em Barcelona, aproveita para incentivar quem o segue a fazer o mesmo, sendo uma forma de ativismo, algo raro de se ver numa conta de um jogador de futebol.
Chris Smalling, que joga em Roma, no clube comandado pelo português Paulo Fonseca, também se rendeu ao veganismo em 2018, mostrando-se atento aos problemas com o meio ambiente e o bem-estar animal.
São várias as publicações que referem uma lista de jogadores que se converteram ao veganismo, como é o caso de Fabian Delph (Everton), Lionel Messi (Barcelona) ou Sergio Aguero (Manchester City), porém, existem evidências de que eles optam maioritariamente por uma dieta vegetariana, principalmente quando estão em competição, mas não seguem os padrões estritos deste regime. Tal como Serge Gnabry, jogador do Bayern de Munique, que confessou ser vegano desde o início de 2020, mas que "às vezes come carne".
O avançado inglês Jermain Defoe, que atualmente representa os escoceses do Rangers, anunciou, em 2017, que tinha migrado para um estilo de vida vegano, mas, em 2019, foi 'apanhado' a cozinhar um peixe durante um direto no Instagram e acabou por confessar que tinha desistido do veganismo em conversa com Peter Crouch, num programa em streaming da Amazon Prime.
Porém, o mais proeminente entre os atletas veganos talvez seja o piloto de Fórmula 1 Lewis Hamilton. O seis vezes campeão do mundo da modalidade já ganhou o prémio de Personalidade do Ano para a PETA (People for the Ethical Treatment of Animals) pelo seu ativismo na sustentabilidade do planeta, além de ter investido no restaurante de fast food vegano Neat Burger, em Londres. Também produziu o documentário The Game Changers.
Em jeito de conclusão, e com a ajuda do título escolhido para este artigo, não somos o que comemos, mas o que escolhemos para comer pode dar indicações sobre aonde queremos ir, a andar ou a correr. Para estes atletas, não interessa o combustível colocado, desde que corram a toda velocidade para alegria dos adeptos de futebol.
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