Será uma noite bem passada. Há muito que os jogadores do Benfica não tinham razões tão fortes para dormir serenamente. Sem pesadelos, sem sobressaltos, sem terrores noturnos.

A exibição desta noite, e já agora o resultado, deixa os adeptos esperançosos de que há vida para lá de Schmidt. A equipa está a reerguer-se, ainda com altos e baixos - a segunda parte não foi tão dominadora -, mas este Benfica é incomparavelmente mais consistente e cativante em campo.

No Bessa, o Benfica encontrou-se. Sem descorar as novas nuances estratégicas inventadas por Bruno Lage, foquemo-nos no fator mental implementado pelo novo técnico dos encarnados. Provavelmente a força motriz desta mudança abismal no futebol praticado.

Em campo, vemos sobretudo uma equipa feliz. Livre de amarras, de olhos postos na baliza e com uma fome insaciável de bola. Assim se explica a vitória sem espinhas das águias, a terceira de Lage nos três jogos cumpridos desde que regressou, a segunda no campeonato.

Não será o Boavista o melhor adversário para medir a fibra desta nova versão da águia - os axadrezados são, por esta altura, uma autêntica manta de retalhos - mas o Benfica fez o que lhe competia, num estádio tradicionalmente difícil e de má memória recente. As contrariedades do clube da casa - das lesões às pesadas restrições impostas pela UEFA, tornaram ainda mais evidentes as fragilidades por que passa esta época e perante as quais terá de lutar muito para chegar vivo ao fim da meta.

Indiferente à crise dos outros, talvez por estar ainda a sair de uma, a entrada impetuosa do Benfica parece ter surpreendido a equipa da casa, que surpreendentemente se apresentou sem Rodrigo Abascal, lesionado de última hora. Um obstáculo a somar aos muitos com que se depara Cristiano Bacci, técnico do Boavista, agora também privado de um dos principais esteios da equipa portuense.

Muitos fortes na pressão, sem deixar respirar as panteras, a velocidade colocada na circulação de bola  pela equipa encarnada e as cavalgadas tanto de Pavlidis como de Akturkoglu afligiam os axadrezados, visivelmente impotentes.

No meio campo revelava-se a certeza de um novo Kokçu, tão bem resgatado por Lage, e hoje ao lado de Aursnes, onde o norueguês tão bem sabe estar. Esta é, sem dúvida, a melhor versão do turco desde que aterrou na Luz. Em tempo queixou-se de não jogar onde queria. Pois bem, já joga. E notam-se a olho nu as melhorias, pelo que joga e faz jogar.

A partida até começou com o contra-ataque rápido de Salvador Agra com a sua corrida inconfundível, mas a decisão do avançado de 32 anos não foi condizente com a sua experiência. Tinha apoio, preferiu o remate e a bola acabou nas mãos de Trubin, que agradeceu. Mas a oportunidade foi uma gota no oceano encarnado, que aos 11 minutos gerou uma onda de euforia no topo norte do Estádio do Bessa, apinhado de benfiquistas. Assistido por Carreras (como tem crescido o lateral!), Akturkoglu furou até onde pôde que nem uma flecha para entregar de bandeja o primeiro da noite a Pavlidis.

E se a supremacia do Benfica já era evidente, mais sobressaiu em vantagem na partida. A avalanche ofensiva sufocava a defensiva axadrezada, que bem tentava sair em contra-ataque, mas sem sucesso.

O Benfica carregava e, depois de várias oportunidades criadas, quase sempre à boleia de Di María, Akturkoglu e Pavlidis - o grego chegou mesmo a rematar ao poste - o golo surgiria de longe da baliza, com um remate surpreendente de Kokçu. Pode dizer-se que o jovem Tomé, o guarda-redes de 17 anos do Boavista - não foi propriamente feliz na forma como abordou o lance, mas a excelente colocação do remate do turco ajuda a explicar o segundo da noite. Estávamos na meia-hora de jogo.

O Benfica não tirou o pé do acelerador, mas o intervalo chegaria sem alterações no marcador.

O segundo tempo fazia prever mais golos, o jogo terminou fervente e arrancou a escaldar, mas com o Boavista a tentar reagir. As panteras arrancaram com mais bola, mas nunca conseguiram incomodar convictamente Trubin, quase sempre muito bem protegido lá atrás.

Tomás Araújo resultou a titular no lugar do lesionado Bah e a defensiva encarnada mostrou-se quase sempre coesa, hoje sem surpresas desagradáveis promovidas pelo capitão Otamendi, que nos últimos jogos tem sido alvo de críticas pela forma imprudente como aborda alguns lances.

Sem nunca perder o controlo da partida, o Benfica viu o Boavista subir de rendimento, mas sem nunca se assumir como um perigo real para Trubin.

Apesar das várias oportunidades desperdiçadas, a noite não fecharia sem o terceiro das águias. E chegou com uma queixa no livro de reclamações dirigida a Bruno Lage. Arthur Cabral entrou aos 88 minutos para marcar aos 91. O técnico do Benfica disse na antevisão que todos contam, mas pelo sim pelo não o avançado brasileiro quis garantir que palavra dada é palavra honrada.

Contas feitas, o Benfica regressa a Lisboa com uma vitória justíssima na bagagem, à boleia de uma exibição segura, completa e vistosa.

Lage bem pode sorrir. Chegou a um Benfica em cacos e vai montando aos poucos a valiosa peça secular, que parece cada vez menos de porcelana. E ao contrário do que muitos vaticinavam, ainda não foi desta que se voltou a partir.