O duplo dérbi lisboeta realizado entre Benfica e Sporting na primavera de 1974 ajudou a refletir a transformação da sociedade portuguesa implicada pelo 25 de Abril, partindo da gradual popularidade do futebol como fenómeno de massas.
Em 70 dias, os dois rivais defrontaram-se por duas vezes, com as ‘águias’ a vencerem na casa dos ‘leões’ para a 26.ª jornada da I Liga (5-3), em 31 de março, num triunfo incapaz de evitar o 14.º título de campeão nacional do Sporting, cuja quarta de seis ‘dobradinhas’ foi selada na final da Taça de Portugal (2-1, após tempo extra), em 09 de junho, no Estádio Nacional, em Oeiras.
O cenário político do país transfigurou-se nesse período, com a Revolução dos Cravos a derrubar o regime ditatorial então comandado por Marcello Caetano, que, curiosamente, tinha sido ovacionado por mais de 80 mil pessoas quase um mês antes, ao acompanhar José Veiga Simão, ministro da Educação Nacional, Mário Morais de Oliveira, ministro de Estado adjunto, e os líderes de cada clube na tribuna do antigo estádio ‘verde e branco’.
“É fantástico ver que a força do futebol fez com que Marcello Caetano tivesse aparecido num jogo para testar aquilo que era ou não aceite pelo povo português. Ele tentava fazer algumas coisas diferentes, mas a preparação para o golpe militar já lá estava presente”, enquadrou à agência Lusa António Simões, ex-avançado do Benfica, entre 1961 e 1975.
O sucessor de António de Oliveira Salazar na presidência do Conselho tentava lograr alguma sensação de segurança em dia de fervor futebolístico, após se ter refugiado em Monsanto face a uma revolta militar falhada a partir das Caldas da Rainha, em 16 de março, véspera do triunfo do Sporting sobre o FC Porto (2-0), na 24.ª jornada.
“Isso teve um certo ênfase nas notícias e esperámos algumas horas para que o duelo se efetuasse. O nosso presidente João Rocha era bastante interventivo e soube acautelar a situação”, indicou à agência Lusa Carlos Pereira, ex-defesa dos ‘leões’, de 1972 a 1975.
O Sporting ganhou com um ‘bis’ de Dinis em Alvalade, onde, duas semanas depois, dois golos de Héctor Yazalde - detentor da Bota de Ouro em 1973/74, com um recorde de 46 tentos numa edição da I Liga - e um de Dé não impediram uma derrota caseira perante o Benfica, que ripostou por Humberto Coelho, Nené (duas vezes), Jordão e Vítor Martins.
“Vivíamos um momento de muita euforia, pois estávamos a fazer uma época fantástica. Presença de Marcello Caetano? Estávamos a fazer o aquecimento quando ele entrou e notámos algum sentido de manifestação do público, especialmente na bancada central. Considerámos normal essa aparição, que passou ao lado da importância do duelo. Nós estávamos muito focados em sermos campeões nacionais”, reconheceu Carlos Pereira.
O Benfica ficou a dois pontos do Sporting, que jamais largaria o topo e consagrou-se na última jornada, ao impor-se no Barreiro (3-0) 25 dias depois do 25 de Abril, cuja véspera ficara desportivamente pautada pela derrota ‘leonina’ em Magdeburgo (1-2), na segunda mão das ‘meias’ da Taça dos Vencedores das Taças, e por uma atribulada viagem de regresso a Lisboa.
Presente na capital no dia da revolução, António Simões viveu um “momento especial” e observou “uma outra cidade, mas com a mesma gente” a caminho de mais um treino das ‘águias’, que viriam a reencontrar na final da Taça de Portugal o ‘vizinho’ da 2.ª Circular, responsável por ter impedido o ‘tetra’ dos ‘encarnados’, tal como em 1965/66 e 1969/70.
Chico Faria e Marinho inverteram o tento de Nené e selaram a nona conquista na prova ‘rainha’ do Sporting, que alcançava a primeira ‘dobradinha’ em democracia, indiferente à dispensa no dia anterior do treinador Mário Lino, substituído pelo adjunto Osvaldo Silva.
Carlos Pereira não esquece uma partida “ímpar e com muito simbolismo”, na qual o hino nacional foi antecedido da senha musical “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso, que, um mês e meio antes, tinha anunciado o início das operações militares contra a ditadura.
A sensação generalizada de alegria nas ruas refletiu-se no Estádio Nacional, onde uma multidão assistiu à final junto ao terreno de jogo e invadiu-o pacificamente em alguns momentos, com António Simões a refletir que o povo “não estava preparado para gozar de liberdade total de ação” durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC).
“Não diria que o futebol servisse como catalisador, mas há muita gente que encontra ali formas de poder manifestar comportamentos que ficam contidos na sua vida social. Num período de maior instabilidade, em que o poder político é incerto e a incerteza é maior no seio da sociedade, é muito provável que a violência [nos recintos desportivos] tenha sido exponenciada pelo próprio estado de coisas em que se encontrava o país naqueles dois anos do PREC, entre 1974 e 1976”, disse à agência Lusa o historiador Ricardo Serrado.
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