Na época 2018/2019, Rúbem Amorim dava início a sua carreira de treinador... como estagiário no Casa Pia. Se no papel o nome do treinador era outro, na prática era ele quem comandava os Gansos, numa época muito importante. A equipa conquistou o Campeonato de Portugal e foi promovido à Segunda Liga, antes de regressar ao escalão maior do nosso futebol.
Ingressou depois na equipa B do Braga onde só esteve 11 jogos, antes de pegar na formação principal dos arsenalistas. Mas a cadeira fervia na Pedreira já que, 13 jogos 10 vitórias depois, chegava ao Sporting. Em pouco tempo, tinha passado de treinador-estagiário a técnico principal de um dos grandes em Portugal.
A sua chegada ao Sporting não foi bem recebida pela Associação Nacional de Treinadores de Futebol (ANTF), já que o técnico não tinha ainda, no papel, o nível para ser treinador principal, apesar do que já tinha mostrado. Foi acusado de fraude, ameaçado com seis anos de suspensão. Mas manteve-se sempre sereno:
"Não sou associado da ANTF e nunca serei", recordou, quando colocou um ponto final no jejum de 19 anos do Sporting sem ser campeão Nacional.
Amorim: talhado para altos voos
O título de campeão do Sporting em 2023/24 mostrou um Rúben Amorim mais maduro, pessoal e taticamente, no seu estilo promissor face a 2020/21, quando os ‘leões’ tinham findado um ‘jejum’ de 19 anos.
O jovem treinador montou uma máquina de jogar futebol, numa equipa em que todos sabem o que fazer. O coletivo sobrepõe-se ao individual, mesmo com os muitos golos de Gyokeres. Quem entra tem correspondido, pelo que o Sporting raramente sente o peso das ausências, como aconteceu recentemente com Pedro Gonçalves.
À quarta época feita do princípio ao fim no Sporting, o ex-médio internacional português, de 39 anos, sucedeu ao inglês Randolph Galloway como primeiro técnico a ‘bisar’ desde 1951/52 pelo clube lisboeta, reflexo da dimensão histórica do 20.º título ‘verde e branco’.
Rúben Amorim chegou ao sexto cetro em outras tantas temporadas nos bancos, e quinto pelo Sporting, no qual arrebatou também duas Taças da Liga (2020/21 e 2021/22) e uma Supertaça Cândido de Oliveira (2021), reerguendo um clube talhado para a instabilidade.
A meta falhada do bicampeonato - que já foge aos ‘leões’ há 70 anos -, em 2021/22, bem como o quarto lugar na edição 2022/23 da I Liga, com a consequente ausência da Liga dos Campeões, fizeram aumentar a pressão do treinador, que foi moderando alguma da sua intempestividade e burilou as dinâmicas do habitual ‘3-4-3’ para voltar ao trono nacional.
Amorim foi ‘devolvendo com juros’ os 10 milhões de euros (ME) investidos pelo Sporting em março de 2020, quando, perante o ceticismo de adeptos e imprensa, reagiu logo em pleno dia da sua apresentação com uma tirada desarmante e auspiciosa, que ‘virou’ gíria em Alvalade: “As pessoas perguntam: ‘E se corre mal?’. Eu pergunto: ‘E se corre bem?’”.
Insistentemente associado ao radar da Liga inglesa sempre que um clube da Premier League despede o treinador, o ex-médio entrou na época 2024/24 para tentar melhorar o recorde de pontuação (86) e de vitórias (27) do clube numa edição da I Liga e fechar a época com a primeira ‘dobradinha’ em 22 anos dos ‘leões’.
Esse seria o último passo para que Rúben Filipe Marques Diogo Amorim, nascido em 27 de janeiro de 1985, em Lisboa, completasse o palmarés nacional nos bancos e repitisse os quatro troféus vencidos com o Benfica de 2008 a 2015, no auge do seu percurso como jogador.
Da aventura no hóquei ao brilho no Belenenses até chegar ao Benfica
O clube da Luz, do qual era adepto desde miúdo, acomodou as suas primeiras etapas no futebol - entre uma aventura efémera no hóquei em patins -, seguindo-se CAC Pontinha, Ginásio de Corroios e Belenenses, através do qual se estreou como sénior, em 2003/04.
Duas épocas de afirmação sob alçada de Jorge Jesus motivaram o Benfica a investir um ME na contratação de Rúben Amorim, em 2008/09, passo tomado pelo atual técnico dos sauditas do Al-Hilal no exercício seguinte, com essa dupla a cooperar na conquista de 10 troféus, incluindo três campeonatos (2009/10, 2013/14 e 2014/15), além da final da Liga Europa perdida no desempate por penáltis frente aos espanhóis do Sevilha, em 2013/14.
Brincalhão fora de campo, mas sem descurar fortes convicções nos treinos e jogos, o ex-médio chegou a ter desavenças com Jorge Jesus e foi emprestado ao Sporting de Braga, celebrando uma das seis Taças da Liga do seu currículo como jogador (2012/13), no qual constam 14 jogos pela seleção nacional, que representou nos Mundiais de 2010 e 2014.
O regresso ao Benfica acentuou um histórico de lesões e cirurgias nos joelhos e baixou a sua influência nos relvados, originando uma cedência ao Al-Wakrah (2015/16), do Qatar, antes de longos meses de inatividade e do final da carreira em 2017, então com 32 anos.
Aprendeu com os melhores para trilhar o seu caminho
Depois de 18 tentos em 337 partidas, começou a formar-se como técnico e lançou-se em 2018/19 pelo Casa Pia, do qual se demitiu ao fim de meio ano, após ter sido punido pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol por ter dado indicações em partidas como estagiário - decisão anulada mais tarde pelo Tribunal Arbitral do Desporto.
Os ‘gansos’ subiram à II Liga e até conquistaram o Campeonato de Portugal, patamar ao qual Rúben Amorim regressaria em setembro de 2019 para liderar o Sporting de Braga B até dezembro, altura em que, já com o segundo nível, rendeu Ricardo Sá Pinto na equipa principal e teve uma estreia vigorosa na I Liga, pontuada pela conquista da Taça da Liga.
Essa vertiginosa projeção levou o Sporting a contratar o quarto treinador em 2019/20 e o sexto na presidência de Frederico Varandas, impondo então o terceiro negócio mais caro de sempre nos bancos, que, com atrasos no seu pagamento, mais IVA, subiu a 14,4 ME.
O sucessor de Jorge Silas foi incapaz de evitar a ausência do pódio na I Liga, um recorde de derrotas na mesma campanha e o maior ‘jejum’ de campeonatos na história do clube, enquanto montava as bases para catapultar a competitividade ‘leonina’ e valorizar ativos.
Com 32 jogos seguidos sem perder e uma derrota, Amorim tirou partido de um calendário aliviado pela precoce saída da Liga Europa e as curtas expectativas, trocando a angústia pelo êxtase no universo ‘verde e branco’ com o primeiro campeonato desde 2001/02, sob chancela da própria formação, mas sem adeptos em redor, face à pandemia de covid-19.
Se o discurso realista obstruiu uma candidatura declarada ao título em 2020/21, o padrão exibicional e o melhor planeamento do plantel permitiu-lhe entrar na nova época com confiança para uma “época de tudo ou nada”, na qual passou a segundo treinador com mais jogos (210), vitórias (146) e troféus pelo Sporting, sob pena de quebrar o vínculo extensível até 2026.
O fim da renitência em recrutar um ponta de lança com o perfil do sueco Viktor Gyökeres, melhor marcador da I Liga 2023/24, com 27 tentos, deu força a um coletivo incisivo em transições, de relação fácil com o golo - 136 em 51 jogos nas diversas provas - e incapaz de deixar cair quem jogava pouco, sem dispensar ajustes estratégicos ao modelo tático de sempre.
A época 2024/25 arrancou da pior forma, com a derrota na Supertaça para o FC Porto no prolongamento por 4-3, num jogo onde o Sporting ameaçava golear o rival, quando fez o 3-0 ainda antes dos 20 minutos de jogo.
A equipa corrigiu os erros, reergueu-se para tomar de assalto à I Liga, somando por vitórias os 11 jogos disputados. Além dos triunfos, salta à vista a forma como Amorim montou uma máquina de jogar futebol, sem rival à altura em Portugal. São 39 golos marcados e apenas cinco sofridos, que dão ao Sporting o melhor ataque da prova e a defesa menos batida.
Na renovada Champions, deu aos adeptos do United uma pequena prova do seu valor: na derradeira ronda da prova, na sua despedida em Alvalade, o Sporting goleou o Manchester City, rival do United, por claros 4-1, deixando os adeptos dos Red Devils em êxtase.
Amorim deixou o Sporting invicto na liga milionária, com 10 pontos em quatro jogos, já depois de ter vencido também o Lille e o Sturm Graz e ter empatado com o PSV Eindhoven nos Países Baixos.
O técnico deixa para trás uma equipa oleada, que jogava quase de olhos fechados, para abraçar o projeto do Manchester United. É um projeto de risco, num clube longe do seu auge e que nos últimos tempos transformou-se num 'cemitério' de treinadores. No United, terá a oportunidade de se superar, no melhor campeonato do Mundo.
*Com Lusa
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