Dificilmente será lembrado da mesma forma – porque a guerra não passou das palavras e Maradona só houve um -, mas existem algumas semelhanças entre o Espanha-Kosovo de quarta-feira e o inigualável Argentina-Inglaterra do Mundial1986 de futebol.
“A Espanha inicia a caminhada rumo ao Mundial2022 frente à Grécia, Geórgia e território do Kosovo”. Apesar de curta, a publicação no Twitter oficial da seleção espanhola foi suficiente para provocar a indignação kosovar, cuja federação exigiu a “retificação imediata” da expressão utilizada.
A resposta do organismo presidido por Agim Ademi não permitia duvidar da determinação dos seus responsáveis: “Apenas jogaremos se forem cumpridos de forma estrita as regras da UEFA relativas à apresentação do hino e bandeira nacionais. Caso contrário, não haverá jogo. (...) Não faremos concessões”.
Num país com um longo historial de tensões políticas e sociais provocadas por movimentos independentistas, como sucede no País Basco e na Catalunha, o líder federativo espanhol, Luis Rubiales, achou-se em situação pouco confortável, entre a posição oficial do governo e as imposições da UEFA.
A federação espanhola não corrigiu a publicação, nem fez qualquer comentário oficial sobre o assunto, mas, num discreto telefonema (que deixou de o ser quando a congénere kosovar o tornou público), apaziguou a ira de Ademi, assegurando-lhe que seriam utilizados os símbolos nacionais.
A seleção kosovar é um ‘intruso’ no Grupo B europeu de qualificação para o Mundial2022, no qual apenas a Suécia reconhece a República do Kosovo, enquanto Espanha, Grécia e Geórgia, com diferentes motivações, não aceitam a soberania do antigo território da Sérvia.
Depois da derrota por 3-0 sofrida no domingo, na estreia na fase de apuramento, frente à ‘amistosa’ Suécia, a equipa balcânica desloca-se na quarta-feira a Sevilha, terreno hostil para a jovem República do Kosovo, que declarou a independência da Sérvia em 17 de fevereiro de 2008.
“O Kosovo é um estado independente, reconhecido pela maioria dos países desenvolvidos e democráticos, membro da UEFA e da FIFA desde maio de 2016, com os mesmos direitos dos demais países”, reagiu a federação de Pristina à ‘provocação’ vinda de Espanha, um dos cinco países da União Europeia que não reconhece a soberania do Kosovo.
O sorteio inicial tinha criado uma situação ainda mais explosiva, com o Kosovo a ficar incluído no Grupo A, em conjunto com Portugal e... Sérvia, mas transitou de imediato para a ‘poule’ B, por força dos condicionalismos impostos pela UEFA, previdente e pouco interessada em transportar disputas territoriais para os relvados europeus.
A UEFA não deseja a reedição dos confrontos ocorridos em outubro de 2014, em Belgrado, durante o jogo de apuramento para o Euro2016 entre Sérvia e Albânia, quando um drone sobrevoou o estádio transportando uma bandeira com o mapa da ‘Grande Albânia’, que defende a unificação com o Kosovo e territórios da Sérvia, Grécia, Montenegro e Macedónia do Norte.
As referências a Espanha também costumam surgir acompanhadas de um asterisco nos sorteios do organismo europeu, com o objetivo de impedir a integração no mesmo grupo de Gibraltar, território ultramarino britânico sobre o qual reivindica soberania, o que causaria a Madrid embaraços maiores do que os provocados agora pelo Kosovo.
A seleção ibérica tem mais presenças na fase final do campeonato do mundo do que a kosovar tem vitórias em jogos oficiais. Foi a uma campeã mundial (2010) e tricampeã europeia (1964, 2008 e 2012) que se dirigiu a voz desafiadora do pequeno país dos Balcãs, de tamanho quase vezes 50 inferior a Espanha.
Apesar do incidente e da frieza que se antecipa na receção espanhola, deverão ficar por aí os pontos de contacto com histórico jogo entre Argentina e Inglaterra, disputado em 22 de junho de 1986, quando estavam bem abertas as feridas provocadas pela guerra das Falklands (ou Malvinas, na designação em espanhol), quatro anos antes.
Nesse dia, Maradona, que morreu há quatro meses, tornou-se imortal. Marcou o golo mais belo da história do futebol, e outro, infame, com a mão (conduzida por intervenção divina, alegou). Declarou guerra à Inglaterra e venceu-a por 2-1, “recuperando uma parte das Malvinas”, como escreveu na autobiografia.
É pacífico presumir que Maradona gostaria de ver o jogo de quarta-feira terminar com festejos kosovares, até porque esteve muitas vezes do lado mais fraco e emergiu quase sempre vitorioso. Mas não parece existir em todo o Kosovo alguém que possa equipar-se-lhe.
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