O treinador Manuel José orientou dois jogos à porta fechada pelos egípcios do Al-Ahly, cenário “pouco motivador” que vai marcar a retoma da I Liga de futebol, cujo “silêncio ensurdecedor” traz “conforto desconfortável” aos visitados.
“Jogar assim, num estádio que comportava 100 mil pessoas e costumava estar cheio três horas antes, foi uma coisa horrível. O futebol é um jogo de emoções, às vezes perfeitamente irracionais, mas o público faz muita falta aos jogadores pela forma como estimula para levá-los à superação”, defendeu à agência Lusa o experiente técnico.
Em 20 de fevereiro de 2002, as ‘águias’ triunfaram na receção ao Mahalla (2-1), num encontro da 11.ª jornada do campeonato, disputado sem público devido à conduta incorreta dos adeptos no dérbi entre Al-Ahly e Zamalek (1-2), que partilham o Estádio Internacional do Cairo e proporcionam uma das maiores rivalidades do futebol mundial.
“É complicado definir. Só mesmo vivendo aquilo, porque nos deparámos com um vazio tremendo. Ganhámos a uma equipa modesta num jogo sem qualidade, em que era tudo audível, incluindo o contacto das chuteiras com a bola. Foi algo perfeitamente híbrido e sem sabor, que não faz sentido nem motiva. A razão do futebol é o público”, frisou.
Os adeptos dispersaram-se pelos arredores do recinto com uma “distância de dois a três quilómetros” mantida pelas autoridades do regime ditatorial de Hosni Mubarak, contexto que se tornou comum desde fevereiro de 2012, quando morreram 74 pessoas num jogo recheado de convulsões políticas em Port Said, do qual escapou Manuel José.
“A polícia não era para brincadeiras. Controlou toda a entrada para o estádio e impediu qualquer aproximação aos autocarros, embora houvesse imensa gente nos passeios e nas ruas a incentivar a equipa. No jogo só havia funcionários do recinto e dos clubes, jogadores, equipas médicas e técnicas e dirigentes. Uma situação surreal”, contou.
O treinador, de 74 anos, regressou a Portugal no verão de 2002, com uma inédita Supertaça Africana na bagagem, encaminhada pelo fim do ‘jejum’ de 14 anos do Al-Ahly na Liga dos Campeões, mas demorou um ano a viajar de novo para o Cairo, revivendo “entre 2006 e 2007” outro jogo à porta fechada, desta feita na condição de visitante.
“Quem joga em casa só tem uma coisa positiva: conhece os cantos todos e sente uma vantagem ligeira por estar num local onde se habituou a jogar e a treinar”, avaliou o ex-treinador de Sporting, Boavista e Benfica, sem recordar o adversário e o resultado do encontro, cujas bancadas despedidas também se deveram a desacatos entre adeptos.
O antigo selecionador de Angola passou quase uma década na capital egípcia, somando 20 títulos repartidos por três passagens distintas, que permitiram guardar um “carinho especial” por aficionados “extremamente tranquilos e apaixonados pelo jogo”, que fomentavam uma “comunhão extraordinária e fundamental” com os atletas.
“Quando perdíamos a bola, mais de 90 mil adeptos começavam todos a assobiar ao mesmo tempo. Não insultavam, mas chateavam e metiam uma pressão tremenda no jogador adversário. Mal recuperávamos a bola, voltavam os cânticos constantes. Se marcássemos, aquilo era uma hemorragia de prazer para todos”, rememorou.
Esse suporte emocional das bancadas vai estar ausente no regresso da I Liga, que vai ser reatada sob fortes restrições na quarta-feira, com o embate entre Portimonense e Gil Vicente, o primeiro dos 90 jogos das últimas 10 jornadas, que decorrem até 26 de julho e devem impulsionar aos 18 treinadores “um maior trabalho no âmbito psicológico”.
“Há jogadores que se galvanizam em função da responsabilidade de um jogo e têm uma necessidade quase fisiológica de ter público nos estádios. São precisos cuidados maiores com as personalidades frágeis, que alteram comportamentos em função da reação dos adeptos, embora a situação fique menos difícil sem essa pressão alheia”, apontou.
Apelando à “gestão de egos com inteligência”, Manuel José admitiu que os jogos com bancadas vazias são a “melhor decisão” enquanto a pandemia de covid-19 “não baixar de vez”, embora eventuais efeitos desse fator no rendimento dos atletas dependam da “validade do trabalho mental” executado pelos técnicos na reta final da temporada.
“A pressão feita pelos adeptos em momentos decisivos é tão grande que influencia muito o comportamento dos jogadores e das equipas. Tanto estimula como inibe, sobretudo num clube ‘grande’, em que as responsabilidades são tremendas, é preciso ganhar e jogar bem e urge uma personalidade competitiva muito forte para aguentar tudo”, notou.
Distante dos bancos desde a curta experiência como consultor técnico dos egípcios do Wadi Degla em 2018, Manuel José disse acreditar que competir em estádios despidos de público vai intensificar a dimensão comunicativa dos intervenientes, tornando “facílima a transmissão da mensagem ao jogador”, mesmo sujeita à iminência dos ouvidos adversários.
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