"O futebol é um desporto de homens" e "jogas como uma menina" continuam a ser algumas das frases feitas que, em pleno século XXI, no ano 2024, continuam a ser usadas de forma pejorativa contra jogadoras, treinadoras, dirigentes e adeptas por gostarem e fazerem da sua vida, o futebol e o desporto.
Mas, a história continua a ser feita e os recordes continuam a ser batidos: A primeira presença no Mundial, o primeiro apuramento de uma equipa portuguesa, o Benfica, nos quartos-de-final da Liga dos Campeões, o aumento, cada vez mais significativo, de praticantes femininas no desporto e, consequentemente, um maior número de jogadoras federadas, entre outros...
São muitas as batalhas que ainda têm de ser vencidas, mas pelo caminho já são muitas as vitórias alcançadas, estamos na era do fim dos impossíveis no futebol feminino e, o futuro? Esse promete ser risonho…
O início da história do futebol feminino em Portugal
2023 deu o pontapé de saída a uma ascensão estratosférica do futebol feminino, em Portugal e no Mundo, crescimento esse que tem continuado em 2024.
Mas, comecemos do início… Quando o futebol nasceu não foi para todos, durante muito tempo a modalidade era vista como algo exclusivamente masculino. Desta forma, é difícil precisar em muitos países como surgiu o futebol feminino, com a Rússia e a França a serem uma das primeiras nações a ter registos em 1910 e 1911.
Em Portugal, o primeiro registo data a março de 1935, entre as equipas femininas de Paços de Brandão e do Feirense.
Em 1981 foi fundada a seleção portuguesa de futebol feminino e, foi nesse mesmo ano, em outubro, em Le Mans, frente à seleção de França, que rolou a bola para o primeiro jogo de sempre de Portugal, num encontro que terminaria num empate sem golos.
Aos poucos as fundações iam sendo criadas e, dois anos depois, surgia a primeira vitória e, o primeiro golo de sempre de Portugal, num amigável frente a Espanha.
Em solo português eram criadas as primeiras competições nacionais, numa altura que a seleção feminina estaria sem competir entre 1984 e 1993.
Mas, o grande salto viria a acontecer a partir de 2010, com a entrada dos clubes grandes do futebol nacional no mercado feminino, entre eles, o SC Braga, o Sporting e, mais tarde, o Benfica. O aparecimento destes clubes, assim como outros que já estavam presentes na vertente masculina, levaram a um crescimento exponencial.
"Os mesmos adeptos que já são do clube, porque são clubes de grande nome e dimensão nacional, já seguem outras modalidades e vão seguir o futebol feminino. Tem um impacto muito positivo que estes clubes olhem para o feminino de uma forma diferenciada do masculino. Os jogos são diferentes, o tipo de jogo é diferente e criamos um próprio adepto diferenciado, o que é espetacular. Envolve muito mais famílias nos estádios, acho que é um bocadinho do nosso futebol mais puro", começou por dizer Mónica Jorge em entrevista ao Sapo Desporto, na Cidade do Futebol.
"Imaginem se todos os clubes que têm futebol masculino, em Portugal, abrissem portas ao futebol feminino"
O panorama do futebol feminino mudava, afinal, estava cada vez mais longe uma altura em que apenas o amor pela bola de futebol movia as jogadoras, passava a haver uma maior profissionalização e, para além do amor, começavam a existir recompensações financeiras.
"Quando as jogadoras são profissionais há um compromisso maior, há uma atividade, normas e regras que têm de respeitar. Como é óbvio uma atleta amadora pode ter muitos sonhos mas a probabilidade de fazer aquilo que mais gosta é mais pequenina, por isso, acreditamos, cada vez mais, em dar as melhores condições, não só para a atleta, mas também para a menina que está num processo de clube, para poder evoluir e poder chegar a uma equipa A e saber que pode ser profissional. Tem muito mais margem de continuidade do que uma jogadora que sabe que não vai ter futuro e evita o dropout que é o que tentamos que não aconteça e que acontecia muito aos 15/16 anos. Agora, a jogadora consegue sonhar, estudar e ter uma carreira dual ao mesmo tempo que faz aquilo que gosta. Há muitas jogadoras profissionais, ou semiprofissionais, que já não deixa de estudar e continua na sua prática desportiva", revelou Mónica Jorge.
O "nosso futebol"
Acaba por ser inevitável que os adeptos ao longo deste caminho de conquistas, comparem os feitos das atletas femininas com os do masculino, o que por vezes, leva a um descrédito do percurso de evolução da modalidade na vertente feminina. Mas, a verdade é que "o futebol feminino é diferenciado do masculino", afinal, este é "o nosso jogo".
"Dentro dos princípios da igualdade, começámos a tratar com respeito, individualizando o futebol feminino, para que as pessoas olhassem para nós como o nosso jogo, o jogo do feminino. Não é justo entrarmos em comparações, do ponto de vista fisiológico, do ponto de vista emocional e das necessidades que nós temos são completamente diferentes de um homem. É valorizar na especificidade. Queremos que as pessoas e os fãs sejam um público diferenciado que queiram ver mais futebol, mas, no feminino", comentou a diretora da Federação Portuguesa de Futebol.
Mas, continuo a dizer que cada vez mais o futebol feminino é diferenciado do masculino.
Contudo, a palavra diferenciado não traz uma conotação negativa ao desporto, pelo contrário, visto que, o futebol "não deixa de ter qualidade e de ser espetacular".
Mas, para que estas comparações e, por vezes, descrédito deixe de acontecer é necessária uma mudança de mentalidades, para além da educação, há um elemento chave neste processo: a jogadora.
"Quem pode mudar isto é a atleta, a atleta é a referência. É quem chama as pessoas ao estádio, seja a mãe, a família, a avó, a sobrinha,... são eles que vão ao estádio. A atleta é quem tem impacto junto do adepto, das pessoas que nos seguem. É isto que pode mudar o panorama, fazendo com que as pessoas possam olhar para nós com muito valor mas de uma forma diferenciada do masculino, mas este padrão tem tanto ou mais valor que o deles. Agora, é diferenciador", prosseguiu.
Francisco Neto, o selecionador que pôs fim aos impossíveis no futebol feminino
O nome de Francisco Neto já está na história não só do futebol feminino, como do futebol nacional. Há 10 anos no comando técnico das navegadoras foi o obreiro que pôs "fim aos impossíveis" no futebol feminino, palavras do próprio antes de embarcarem para um dos momentos altos da história, o Mundial.
E é com o mote do fim dos impossíveis que iniciámos a conversa com Francisco Neto, na Cidade do Futebol, em Oeiras. Os sonhos da Seleção Nacional são muitos, mas o futuro passa agora por uma palavra: "consistência".
"Nós agora o que queremos sobretudo é consistência nas fases finais e passar de uma fase de grupo para uma fase final. Ainda não somos aquela equipa que temos consistências nas fases finais, o nosso processo de chegar a uma fase final está agora mais facilitado porque somos mais competentes, mas temos de encarar todos os jogos com a máxima responsabilidade e, uma vez atingindo uma fase final, o que ainda não conseguimos é passar a fase de grupos, não é impossível, mas é um daqueles possíveis. Naquilo que é a dinâmica total, eu acho que os apuramentos para os campeonatos do mundo que eram uma miragem, felizmente já não o são", começou por dizer.
Com uma passagem, em 2009, como treinador de guarda-redes da Seleção Nacional, na altura treinada por Mónica Jorge, cargo que ocupou até ao ano seguinte, Francisco Neto regressou, em 2014, para dar início a uma história que continua a ser escrita.
No seu primeiro grande desafio aos comandos da seleção nacional, o técnico habituou os portugueses àquilo que seria uma constante ao longo destes dez anos: fazer história, desta vez, ao levar Portugal ao seu primeiro Campeonato da Europa.
A 25 de outubro de 2016, jogava-se o prolongamento frente à Roménia, quando ao minuto 105, Andreia Norton rematou para o fundo das redes da baliza romena, restabelecendo o empate na partida. Golo esse que valeu o primeiro apuramento para a fase final do Europeu de 2017, nos Países Baixos.
Dez anos depois de ter assumido o cargo, os recordes e os feitos vêm a acumular-se, primeiro com a qualificação para mais uma fase final de um Europeu, em Inglaterra, em 2022, depois com a vitória histórica há quase um ano, frente aos Camarões que qualificou Portugal para o Mundial, na Nova Zelândia.
A 22 de fevereiro de 2023, todos os caminhos foram dar ao estádio Waikato, em Hamilton, na Nova Zelândia. Os Camarões eram o último adversário que separava Portugal do sonho do Mundial e à boa maneira portuguesa foi preciso sofrer até ao último segundo.
Diana Gomes ainda abriu o marcador à passagem do minuto 22, mas, aos 89 minutos surgia um balde de água fria, Ajara Nchout empatou a partida. Contudo, navegadoras que são navegadoras, lutam do início ao fim e, aos 90+4’, era feita história. Grande penalidade a favor da equipa das quinas e Carole Costa não desperdiçou, Portugal voltava à liderança e, poucos segundo depois, acabava o jogo e dava-se início à festa de toda uma nação portuguesa.
Já no Mundial, a formação lusa conseguiu fazer sonhar frente a equipas como o Vietname, os Países Baixos, campeões europeus em título e, frente às tetracampeãs mundiais, os Estados Unidos da América. As comandadas de Francisco Neto não começaram a competição com o pé direito, depois de uma derrota por 1-0 frente aos Países Baixos, contudo, a vitória, por 2-0, frente ao Vietname deu alento a uma equipa que esteve perto de vencer as tetracampeãs mundiais e carimbar a passagem à próxima fase do torneio.
Afinal, quem não se lembra daquele remate ao poste de Ana Capeta, já no minuto 90, que, mais uma vez, mostrou que o impossível podia se tornar possível.
Recorde alguns momentos do Mundial:
Portugal saiu de cabeça erguida e com muitos sonhos para um futuro que promete ser risonho, com percalços pelo caminho, como foi o caso da despromoção da Liga das Nações, algo que, o selecionador afirma fazer parte do crescimento, algo que "não pode ser sustentado no resultado de uma equipa, se assim fosse, as coisas estariam mal".
"O que interessa, neste momento, é perceber a forma como fomos despromovidos, se fomos competitivos, se não fomos competitivos, como é que encaramos os jogos. Não há dúvidas que os resultados são essenciais mas o crescimento de uma modalidade nunca pode ser só baseada naquilo que é o resultado de uma equipa. Ou seja, o número de aumento de praticantes, a competitividade tanto interna, como depois também a nível internacional, o número de participações em fases finais das nossas camadas jovens, a forma como o Benfica brilhantemente está nos quartos da Liga dos Campeões, tudo isto não pode ser ofuscado porque a seleção A não teve pontos suficientes para se manter na Liga A, mas a forma como competimos na maioria dos jogos dá-nos indicadores de crescimento. É por aí que temos de perceber esta parte do que são os momentos menos positivos a nível dos resultados", afirmou.
Mas é com um sorriso nos lábios que Francisco Neto recorda aquele que é o momento mais marcante destes dez anos no comando técnico da seleção nacional: "Mudou há pouco tempo, mas, foi o hino. O hino no Portugal – Países Baixos, a primeira vez, que se ouviu o hino num Campeonato do Mundo de uma seleção portuguesa, é sem dúvida o momento mais marcante daquilo que é a minha carreira enquanto treinador", concluiu.
Depois do ano histórico e de recordes… o que esperar do futuro?
A parceria criada entre Francisco Neto e a Federação Portuguesa de Futebol, muito pelas mãos de Mónica Jorge, diretora do futebol feminino, dava os seus frutos, começando na formação e acabando no futebol profissional.
O número de atletas federadas em Portugal tem vindo a crescer exponencialmente, segundo os dados da FPF, já no ano de 2024, foram ultrapassadas as 17 mil jogadoras federadas, o que representa um crescimento de 22% em relação ao período homólogo.
Esta ascensão tem sido mais notória nos escalões de formação, alavancado principalmente com o maior espaço e as maiores oportunidades criadas pelos clubes e pela FPF, de forma a "abrir portas à paridade".
Mónica Jorge ressalva que "o fator base tem sido muito importante", visto que, "conseguir motivar os clubes a abrir portas a eles e a elas", tem levado a um maior crescimento de uma "sustentabilidade da base", até à faixa etária das sub15, "onde os aumentos têm sido fantásticos".
"É bom termos uma Liga BPI, com equipas cada vez mais profissionais ou a dar contratos profissionais para elas terem esta base de referência, mas tem de haver cada vez mais clubes a abrir portas ao processo de formação. Ainda temos muito para fazer, quanto mais para o interior formos, Beja, Castelo Branco, Portalegre,… ainda falta crescer muito nesta base, ainda há muitos clubes que não têm meninas na sua estrutura… mas cada vez há mais. Tem sido um crescimento fantástico, porque agora elas têm referências e cada vez mais vêm do futebol profissional e da seleção nacional que tem uma dimensão maior e teve os feitos que teve, que tem um impacto não só nelas, mas principalmente nos pais, porque são eles que permitem se elas vão ou não ao futebol e, esta imagem profissional tem sido algo muito positivo junto dos pais", continuou.
Se olharmos para 2010, eram apenas 5 406 as atletas federadas em Portugal, um aumento de quase doze mil jogadoras no espaço de catorze anos. O caminho ainda é longo, principalmente se olharmos para os números de países como Itália ou Espanha, mas é com um sorriso nos lábios e um olhar esperançoso que Mónica Jorge confidencia: "Quero muito chegar às 18 mil jogadoras".
"17 mil praticantes ainda é pouco... Temos de continuar a acreditar e a motivar as associações de futebol para que os clubes no seu distrito tenham pelo menos as suas portas abertas, ou no misto, ou numa equipa feminina de formação. Se cresceres cá em baixo o número de atletas, vais ter um dia, mais árbitras, atletas, dirigentes, treinadoras, que depois vão estar no processo do futebol feminino… É como no futebol masculino há uns tempos atrás, tem de ser feito o mesmo processo no feminino. Agora vai ter de levar o seu tempo, o investimento financeiro é sempre importante e nem sempre há essas condições nos clubes e nas associações", assumiu a diretora de futebol feminino da FPF.
Por sua vez, Francisco Neto fala desta evolução como algo "incrível", confidenciando que os motivos do porquê deste crescimento são muitos, mas passa bastante por aquilo a que chama "o triângulo".
"A Federação Portuguesa de Futebol, com tudo aquilo que são os projetos, encabeçados pela professora Mónica Jorge, com o que foi o plano de desenvolvimento; pelos clubes, por aquilo que aportam e pelo profissionalismo que trazem e as boas condições que trazem para as nossas jogadoras e, depois, as associações de futebol. Por isso, quando este triângulo fica montado e as pessoas estão todas a trabalhar para o mesmo sentido, com a coordenação da FPF, as coisas cresceram imenso. Este é o grande mérito desta direção nestes últimos anos, ter conseguido com que este triângulo funcionasse bem", assumiu.
A nível europeu a evolução portuguesa também tem conquistado muitos frutos, se voltarmos atrás no tempo uns dez anos, a seleção feminina ocupava o 41.º lugar no ranking da FIFA, quando, atualmente, as Navegadoras surgem no 21.º lugar. Em agosto, as comandadas de Francisco Neto subiram à melhor posição de sempre, a 19.ª posição.
O desempenho do Benfica na Liga dos Campeões, esta temporada, ao qualificar-se para os quartos de final, abriu portas a mais recordes no futebol feminino, ao colocar Portugal num inédito quinto lugar do ranking da UEFA de clubes, assumindo a liderança da hierarquia na época atual, em igualdade com França. O feito das encarnadas permitiu a Portugal entrar pela primeira vez no grupo dos sete primeiros classificados, o que abre a porta à entrada de mais equipas lusas na Liga dos Campeões.
"Temos de continuar a melhorar a Liga BPI, porque no próximo ano são duas equipas na Liga dos Campeões e daqui a três anos, três equipas. Portanto, quem lá está vai ser o representante do futebol feminino português, e tem de estar com o maior orgulho e a maior competência, para ser o espelho do que fazemos aqui. A Liga BPI tem de crescer nesse sentido, aproximar-nos mais de patamares elevados de contratos de jogadoras profissionais, uma liga mais competitiva, jogar nos melhores estádios,… estamos a trabalhar nesse sentido", concluiu Mónica Jorge.
O caminho ainda é longo, mas uma certeza é que, atualmente, "jogas como uma menina" ganhou um novo cunho: o de orgulho e o de uma história de conquistas que ainda agora começaram.
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