Le Mans, 24 de outubro de 1981. A realidade era outra. Portugal era um país totalmente diferente, a tentar ainda descobrir-se enquanto democracia, menos de dez anos depois do fim de uma ditadura de quase 50 anos, durante a qual a Mulher se viu subjugada ao papel de mãe, esposa e 'dona de casa'. Mas passos importantes começavam a ser dados na sociedade e o mundo do desporto não era exceção. Nessa data, fez-se história: pela primeira vez, uma seleção nacional feminina de futebol entrou em campo.
Avançamos algumas décadas no tempo. Mais precisamente 42 anos. Muito mudou desde então e o futebol deixou de ser visto como um desporto para homens, num mundo que se transformou e que tenta lutar contra toda e qualquer tipo de discriminação. Chegamos a 22 de fevereiro de 2023 e a mais uma data histórica. Em Hamilton, Nova Zelândia, a seleção feminina de futebol de Portugal, com um triunfo dramático, por 2-1, frente aos Camarões, no play-off intercontinental, garantiu um lugar na fase final do Mundial 2023, marcado para julho e agosto, na Austrália e na Nova Zelândia. Histórico e memorável.
Rute Costa, Inês Pereira, Patrícia Morais, Ana Seiça, Carole Costa, Catarina Amado, Diana Gomes, Joana Marchão, Lúcia Alves, Sílvia Rebelo, Ana Rute, Andreia Norton, Andreia Jacinto, Dolores Silva, Fátima Pinto, Francisca 'Kika' Nazareth, Tatiana Pinto, Ana Borges, Ana Capeta, Carolina Mendes, Diana Silva, Jéssica Silva e Telma Encarnação. A elas juntar-se-ão ainda mais duas futebolistas. Francisco Neto divulgou, no início da semana, as jogadores que vão representar Portugal no Campeonato do Mundo. Caber-lhes-á honrar o esforço de todas aquelas que, antes delas, foram desbravando caminho
É essa história, de mais de 40 anos de luta, superação e evolução progressiva, que agora aqui contamos.
O surgimento do futebol feminino em Portugal
Quando nasceu, o futebol não era para todos. Ao longo de várias décadas, o desporto rei foi visto como uma modalidade destinada ao sexo masculino, sem espaço para as mulheres.
Os primeiros registos de mulheres no futebol, ainda assim, aparecem no início da década de 1910, em países como a Inglaterra, França, Rússia, Itália e Alemanha.
Em Portugal, contudo, não é fácil encontrar registos da participação feminina na modalidade. As primeiras notícias, por cá, sobre jogos com a participação de mulheres datam de março de 1935.
Ao longo dos anos seguintes, foram sendo dados alguns passos, sobretudo a nível internacional, no que ao desenvolvimento do futebol feminino diz respeito. Em 1971 disputou-se um primeiro Mundialito, prova que foi sendo disputada com alguma regularidade nos anos que se seguiram. Mas o primeiro Mundial organizado pela FIFA só teve lugar em 1991.
Pelo meio, por cá, em 1981 criava-se pela primeira vez uma seleção feminina de futebol.
Enfim, o primeiro jogo da Seleção
O primeiro jogo da Equipa das Quinas feminina aconteceu, então, a 24 de outubro de 1981. Foi frente à França, em Le Mans, e terminou com um empate 0-0.
Para esse encontro, a Federação Portuguesa de Futebol reuniu 16 jogadoras que atuavam nos campeonatos distritais que entretanto tinham sido constituídos: Alice (enfermeira), Paula Freitas estudante), Tato (empresária do comércio), Eva (tecedeira), São (estudante), Tisa (tecedeira), Fátima Azevedo (transitária), Alfredina (estudante), Paula Leça (desempregada), Isabel Santos (empregada de escritório), Sílvia (desempregada), Gena (estudante), Albertina (estudante), Emília Coelho (desempregada), Olívia (empregada têxtil) e Cidália ( costureira). Foram elas as pioneiras da Seleção.
Por essa altura, segundo dados da FPF, existiam em Portugal cerca de 300 jogadoras, divididas por 17 clubes.
"Foi um momento que fica para toda a vida. Surgiu o boato de que iria haver uma seleção feminina. De início não acreditávamos, mas o que é certo é que ela surgiu mesmo". relembra Alfredina Silva, agora com 59 anos, uma das jogadoras em campo nesse encontro. "Quando recebi a carta da federação fiquei muito feliz e emocionada. Fizemos um estágio, treinámos e jogámos em campos relvados. Tínhamos médico, enfermeiro, roupeiro...todas as condições. Naquele momento, senti-me como uma profissional. Ouvir o hino nacional com a camisola das quinas vestida é um marco que fica para a vida", acrescenta.
As francesas, ainda assim, tinham outra preparação. Mas Portugal surpreendeu, resistiu, e segurou o nulo. "Encontrámos condições completamente distintas de todas aquelas que tínhamos em Portugal. Havia uma diferença enorme entre a seleção francesa e a nossa, até nos equipamentos ou nas chuteiras", recorda a antiga futebolista.
"Com a nossa alma lusa, saímos de lá com um empate a zero. Foi uma surpresa para toda a gente", lembra Alfredina Silva.
O encontro serviu de preparação para a fase de qualificação do primeiro Campeonato da Europa Feminino, que teve lugar em 1982. Portugal estreou-se nessa qualificação com uma derrota ante a Suíça, perdendo também com a Itália antes de somar novo nulo com a França. A primeira vitória de sempre chegaria um ano depois, em 1983, num amigável com a vizinha Espanha. São Tato marcou o golo que foi também o primeiro de sempre da Seleção nacional feminina. Estavam lançados os primeiros alicerces...
Interregno, renascimento, crescimento progressivo e a importância da 'chegada' de Sporting e Benfica
Mais ou menos por essa altura, nasceram também competições femininas de futebol a nível nacional. Em 1985, a Federação Portuguesa de Futebol criou a Taça Nacional de Futebol Feminino. Uma prova que foi responsável por determinar o campeão nacional até à época de 1992/93. A partir daí, esse torneio foi substituído pelo atual Campeonato Nacional Feminino de Futebol.
A seleção feminina, contudo, viveu um hiato depois da campanha de apuramento para o Europeu de 1984 e só voltou a 'renascer' em 1993.
Carlos Queiroz, então o selecionador principal da Seleção masculina e responsável pela estrutura das seleções nacionais, decidiu reavivar a Seleção feminina, convidando António Simões para orientar esse projeto. Este aceitou o desafio e tornou-se assim no primeiro selecionador desse novo ciclo da equipa nacional. Porém, após dez anos de paragem, foi preciso começar praticamente do zero.
Por essa altura havia cerca de 500 jogadoras a praticar a modalidade a nível competitivo e o futebol feminino, apesar de estarmos já na última década do século XX, era ainda visto como algo menor, alvo de piadas e de discriminação.
A Seleção feminina disputou dois jogos nesse ano, somando duas derrotas. No ano seguinte, contudo, apareceram os primeiros resultados: uma vitória sobre a Finlândia na primeira edição da Algarve Cup (prova que iria, aos poucos, ganhando notoriedade além-fronteiras) e triunfos sobre Escócia (com direito a uma goleada de 8-2) e Itália no apuramento para o o Europeu de 1995.
E o caminho foi sendo trilhado, com mais derrotas do que vitórias, é certo, mas com um crescimento progressivo. Foi criado um plano de desenvolvimento estratégico e foram desenvolvidas iniciativas como a Festa do Futebol Feminino, que nasceu em 2011, que começou por ser chamada de 'Dia do Futebol Feminino', contando anualmente com a presença de quase mil crianças dos escalões de sub-13 e sub-15. Uma iniciativa que promove o futebol feminino jovem e que conta com a presença de jogadoras e árbitras.
"A aplicação do plano estratégico tem dado os seus frutos. Houve um aumento do número de praticantes e no nível de sucesso das seleções. Isto tudo aconteceu devido ao trabalho feito nas associações, clubes e federação", sublinha Mónica Jorge, antiga selecionadora nacional, que tem agora a 'pasta' do futebol feminino na direção da federação.
A par dessa maior atenção dada ao futebol feminino pela FPF (em linha, também, com o que a UEFA e FIFA foram fazendo), fundamental para subir de nível da Seleção feminina foi a aposta de clubes de maior nomeada. Se, até meados da primeira década do presente século o futebol feminino estava sobretudo concentrado em clubes menos expressivos, instituições de maior destaque como o Sporting, o SC Braga e o Benfica entraram em cena, conferindo mais visibilidade e atraindo mais praticantes.
A prová-lo, as mais 15 mil pessoas que estiveram recentemente no dérbi de Lisboa, entre Benfica e Sporting, no Estádio da Luz, fixando um novo máximo de assistência a nível nacional num jogo de futebol feminino.
A estreia em Europeus
Tudo isto, foi permitindo um afirmar gradual das nossas seleções femininas dos escalões jovens, que conseguiram começar a marcar presença em fases finais de grandes competições. A primeira a lograr tal feito foi a seleção de sub-19, apurada para o EURO da categoria em 2012. Depois, no ano seguinte, foi a vez das sub-17 seguirem o exemplo.
Estavam, assim, graças à teimosia, persistência e resiliência de muitos, criadas as condições que permitiram então à seleção principal feminina de Portugal atingir o seu primeiro grande marco.
Foi a 25 de outubro de 2016 (precisamente 35 anos e um dia depois do primeiro jogo oficial da Seleção feminina) que se viveu nova data histórica para o futebol feminino nacional. Nesse dia, aos 105 minutos do prolongamento, Andreia Norton, assistida por Ana Borges, fez o golo que valeu o primeiro apuramento de sempre de Portugal para a fase final de uma grande competição sénior de seleções. A seleção nacional empatava a um golo na Roménia (depois de um nulo em Lisboa) e garantia um lugar no Campeonato da Europa feminino de futebol de 2017, nos Países Baixos.
Aí, Portugal acabaria por se ver derrotado pelas potências Espanha e Inglaterra, na fase de grupos, mas pelo meio somaria a sua primeira vitória (e os primeiros golos) em fases finais, com um triunfo por 2-1 sobre a Escócia, com golos de Carolina Mendes e Ana Leite. Estava feita (mais) história!
A seleção feminina falhou, depois, o apuramento para o Campeonato do Mundo de 2019, ao terminar no 3.º lugar do seu grupo, atrás de Itália e Bélgica.
Ficava adiado o sonho da presença num Mundial, mas seguir-se-ia nova presença na fase final de um Europeu. Eliminado pela Rússia no play-off de apuramento, Portugal acabou por ser repescado em virtude da exclusão russa devido à invasão à Ucrânia. Em Inglaterra, nessa fase final do Euro Feminino de 2022, Portugal começou com uma derrota pesada ante a Suécia, mas deu depois muito que fazer aos poderosíssimos Países Baixos antes de se despedir com um empate diante da Suíça.
Sonho cumprido: Portugal apurado para o Mundial
Com duas presenças em fases finais de Campeonatos da Europa, faltava o apuramento para um Campeonato do Mundo. Um sonho agora, enfim, concretizado. Com muito suor, algum sofrimento e muita emoção.
A 22 de fevereiro, Portugal derrotou os Camarões, por 2-1, no play-off de apuramento intercontinental e qualificou-se pela primeira vez para um Mundial de futebol feminino. Diana Gomes adiantou a equipa das quinas aos 22 minutos, numa 1.ª parte dominada pela equipa das 'quinas'. Já na reta final, os Camarões ainda tiveram um golo anulado, mas marcaram mesmo por Nchout, a um minuto dos 90. Só que Portugal conseguiu voltar a saltar para a liderança do jogo graças a um penálti convertido por Carole Costa no período de descontos.
Mais um momento histórico para o futebol feminino, que deixou em lágrimas algumas jogadoras e o próprio selecionador Francisco Neto, uma vez mais o timoneiro das navegadoras. Neto orienta a seleção principal feminina desde 2017 e foi com ele ao leme que esta logrou os seus três apuramentos para as fase finais de grandes competições.
"A presença no Mundial é um tributo a todas aquelas gerações que tinham muita qualidade, mas não tinham as mesmas condições que esta geração tem. Esta geração está a semear para as gerações futuras", sublinha Francisco Neto.
"Esta Seleção tem crescido na adversidade. Tem sido capaz de dar resposta a nível internacional. Temos muita ambição. Nós, estrutura técnica da Federação, trabalhamos para que este momento se repita mais vezes. Queremos muito que, daqui a 4 anos, estejamos a anunciar a segunda convocatória. É para isso que trabalhamos. É esse o desafio e o compromisso da direção era a presença da Seleção Feminina num Mundial. Há poucos anos, se calhar nem todos acreditavam nisso. É uma Seleção mais madura, mais preparada e com muita ambição.", acrescenta.
Os louvores surgiram de todos os lados, com as jogadoras a serem depois ovacionadas em Alvalade, no intervalo de um jogo da seleção principal masculina. Algumas das palavras mais elogiosas vieram do próprio Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que fez questão de receber a Seleção feminina em Belém e sublinhar o papel que esta tem tido no afirmar da mulher no mundo do desporto.
"É uma honra para Portugal este passo, que é um passo inédito, histórico, não o é apenas no futebol feminino, é no papel da mulher na sociedade portuguesa. Esse é o ponto fundamental", afirmou, nesse momento, Marcelo Rebelo de Sousa.
"Esta é uma grande vitória dos portugueses mas, sobretudo, das portuguesas. Elas já são a maioria do povo português. Hoje, revêm-se em vocês", frisou.
E agora, o que esperar do futuro?
Portugal vai entrar em cena no Grupo E do Campeonato do Mundo, na Nova Zelândia, a 23 de julho (pelas 8h30 da manhã, hora portuguesa), frente à poderosa seleção dos Países Baixos (finalista vencida em 2019). Segue-se um embate diante do também estreante Vietname, a 27 de julho (pela mesma hora), antes de um duelo diante dos Estados Unidos, campeões do mundo em título, a 1 de agosto (8h00 da manhã, hora portuguesa).
A tarefa das 'Navegadoras' não será, pois, nada fácil. Mas o mais importante, que é estar lá, já foi conseguido, fruto do visível crescimento do futebol feminino no nosso país. Um crescimento notório e que a FPF pretende que tenha continuidade no futuro.
"A qualificação para o Mundial foi mais um momento histórico na modalidade e todos os envolvidos devem estar orgulhosos porque todos contribuímos para este fator de crescimento" afirma Mónica Jorge. "Agora, é dar continuidade, pois estamos no 21º lugar do ranking mundial e queremos subir um pouco mais para chegarmos, um dia, às dez melhores seleções", aponta.
"Trata-se do momento mais alto da nossa história, mas estamos a trabalhar para o futuro. Não vamos parar por aqui. A FPF vai continuar o seu projeto e a sua estratégia de desenvolvimento, vai continuar para outras gerações, para outras estruturas técnicas, jogadoras e diretoras poderem alcançar outros voos", garante.
As campanhas de promoção para captar praticantes e conferir visibilidade ao futebol feminino não param e a mais recente - apresentada antes da divulgação da convocatória para o Mundial - não deixou ninguém indiferente.
De acordo com um relatório da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), em 2011 existiam 5390 futebolistas federadas, entre o futebol e o futsal. Atualmente são quase 14 mil atletas, com aumento maior nas categorias sub-13 e sub-15. Significa que nos últimos 12 anos, Portugal ganhou cerca de oito mil jogadoras.
A ascensão é também visível a nível da qualidade da Seleção principal feminina - tendo esta atingido recentemente a sua melhor classificação de sempre no ranking da FIFA, ao subir ao 21.º lugar na hierarquia mundial - e na subida ao 9.º lugar do ranking de clubes da UEFA, numa ascensão relâmpago - era 23.ª em 2021.
A cada vez maior projeção da Seleção feminina é também notória no campo mediático e a nível do marketing. No Mundial que se avizinha, pela primeira vez a Seleção feminina vai ter à sua disposição um equipamento - e toda uma coleção de roupa desportiva - desenhado em exclusivo para si.
Há, ainda assim, mais passos a dar e questões a pensar. Desde logo a questão da maternidade. As necessidades no pós-parto têm de ser revistas, regulamentadas e não têm de ser iguais para o que está feito no desporto masculino", sublinhou recentemente Mónica Jorge, alertando para o facto de as futebolistas - e as desportistas de alta competição no geral - terem de adiar o desejo de serem mães.
E, claro, a questão do assédio sexual e moral, tantas vezes na ordem do dia. "Tanto a FPF como eu, mulher, mãe e figura de uma modalidade, iremos sempre defender e proteger a atleta em todas as ocasiões, muito mais se o contexto for de abuso. No futebol não pode haver espaço nem tolerância para o assédio", afirmou Mónica Jorge, então em declarações à agência Lusa, sobre a polémica levantada no final do último ano em torno da equipa feminina do Rio Ave, antes de ressalvar: "Já não há medo. Todos os agentes desportivos e as suas entidades estão cada vez mais sensibilizados para este tipo de problema".
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