É mais ou menos unânime, por esta altura, que Cristiano Ronaldo é um dos melhores jogadores de sempre da história do futebol. É também um não-assunto que se trata do melhor futebolista português da história. A dimensão mediática que cresceu em seu redor é, muito em parte, justificada pelo seu rendimento em campo, que trouxe números nunca vistos e que o tornou capaz de fazer coisas inauditas dentro do campo.
Temos visto, ao longo dos anos, que os jogadores mantêm rendimentos mais altos até cada vez mais tarde. Basta ver as estatísticas da generalidade das provas: em quase todos os casos o jogador mais velho a jogar, ou a marcar, está ou esteve recentemente no ativo. Os fatores de rendimento progrediram de sobremaneira nos últimos anos e foram capazes de catapultar a longevidade do rendimento. Melhorou o treino, melhorou a medicina desportiva e a nutrição e, claro, a genética e a disciplina dos próprios jogadores permitem que assim seja. Pelé e Eusébio fizeram os últimos jogos pela seleção com 31 anos. O alto rendimento era um fósforo.
Foi a reboque disto que todos nos habituámos a admirar os 15 anos em que Ronaldo nunca fez menos de 25 golos por época, entre Premier League, La Liga e Série A. A forma como se reinventou na Série A, depois do que parecia ter sido o apogeu da sua carreira. Ou até a forma como se reenquadrou na primeira época de Manchester United, e fez uns não menos incríveis 24 golos aos 37 anos na Premier League – o que, acredito, tenha sido inaudito.
Contudo, o tempo passa por tudo e por todos. Não é difícil acreditar que Ronaldo terá feito tudo para agarrá-lo, mas a ética de trabalho e a perseverança não travam a ordem natural da vida. Talvez um contexto desfavorável no Manchester United tenha resultado no primeiro choque frontal entre a sua auto-imagem e a realidade. A primeira vítima colateral dessa queda abrupta talvez tenha sido Fernando Santos. Todos sabíamos que o dia chegaria: os anos passavam, e embora Ronaldo parecesse estar estranhamente bem para os seus 33, 34, 35 ou até 36 anos, chegaria a altura em que o seu rendimento teria de ser enquadrado para o papel que assumia na equipa.
E a quebra podia nem ter sido assim tão abrupta se Ronaldo tivesse sido capaz de a acautelar. Contudo, a forma como se incompatibilizou no Manchester United, ou a forma como pareceu reagir mal a ter ido para o banco de suplentes no Mundial de 2022 denunciavam já um problema grave. Refugiou-se na Arábia Saudita, onde continuaria, incontestavelmente, a ser o melhor. Talvez tenha sido mesmo por falta de outras opções de carreira, ou talvez, no seu inconsciente, brilhasse a centelha de continuar a ser, incontestavelmente, o melhor. Não sabemos.
Martínez herdou um problema sério. É impensável pensar que, entre todas as soluções que os responsáveis federativos ponderaram para selecionador no começo de 2023, o assunto Ronaldo não tivesse feito parte da equação. Ronaldo planeava continuar a jogar, e não seria de bom tom encontrar um selecionador que se incompatibilizasse com o capitão. Um corte a direito com a maior figura da história do futebol nacional era um desfecho impensável. Era preciso alguém que reenquadrasse Ronaldo, o acarinhasse e, presumivelmente, lhe desse sucesso.
Tudo parecia correr bem na fase de qualificação, ou até nos jogos de treino. Portugal ganhava, ganhava sempre, Ronaldo marcava, não sempre, mas muitas vezes. Tudo parecia bem, até surgir o inevitável choque com a realidade.
Portugal jogou duas competições: o Euro 2024 e a competição do sucesso de Ronaldo. É muito difícil perceber a gestão do capitão neste Europeu, e é muito difícil acreditar que Martínez, que até parece ter preparado bem os jogos do ponto de vista estratégico, não tivesse sido capaz de entender que Ronaldo não estar em campo teria sido, em muitas circunstâncias, o mais acertado.
Se tudo começou bem nas duas primeiras vitórias, o facto de Ronaldo não ter feito golo (feito que o levaria a marcar em 20 anos seguidos de grandes competições de seleções) tornou real o primeiro pecado de Martínez: na conferência de imprensa de antevisão do jogo com a Geórgia, anunciou a titularidade de Ronaldo. A explicação é difícil de entender, e cito: “para continuar com o ritmo competitivo, não é bom parar agora para depois reativar em seis dias”. Então e... todos os restantes jogadores? Exceto Diogo Costa, todos saíram do onze e, aliás, a gestão foi toda sacrificada em função dos oitavos-de-final. Saiu aos 65 minutos e não fez golo.
Por essa altura, já o mal estava feito. Cristiano Ronaldo tinha jogado três jogos no espaço de dez dias, aos 39 anos. Era impensável apresentar-se nas melhores condições no jogo frente à Eslovénia, e assim foi. Ronaldo foi dos piores em campo. Não foi sozinho, claro, e poder-se-á dizer que, no geral, a seleção se apresentou a um nível baixo. Contudo, o triste espetáculo dos livres diretos assumidos pelo próprio de todo o lado do campo, levam a corroborar a história da obsessão pelo golo. Pior ainda: manteve-se em campo durante mais 120’, num jogo em que chegou permanentemente tarde a cruzamentos (e tantos se fizeram!), em que se deixou antecipar constantemente, em que não venceu um duelo. Pudera: era um jogador de 39 anos a jogar pela 4ª vez seguida no espaço de duas semanas, num jogo de 120’. A fisiologia também chega aos sobre-humanos. Mais uma vez, embora o ataque português gritasse por frescura e ideias novas, Martínez não foi capaz de o tirar.
O jogo mais conseguido do Europeu estava guardado para os quartos, onde apesar do bom plano de jogo e de ter sido melhor, Portugal caiu. Ronaldo voltou a fazer todo o jogo. Tenho de repetir, visto que fala por si só: 575’ em pouco mais de duas semanas aos 39 anos, em futebol de alta competição, num jogo frente aos melhores defesas do mundo. O que se esperava que Ronaldo fizesse?
Trocaram-se extremos, médios e laterais. Gonçalo Ramos – 3 golos frente à Suíça no último Mundial – praticamente não saiu do banco (25’ frente à Geórgia apenas). Diogo Jota, que foi sozinho para cima de cinco adversários e conquistou um penalty frente à Eslovénia, nem do banco saiu.
As comparações com Pepe serão inevitáveis, mas inócuas – recorde-se que Pepe, não só foi substituído frente à Eslovénia e à Turquia, como não jogou frente à Geórgia. Canalizou o seu esforço para os momentos em que podia ser decisivo e foi seguramente dos melhores jogadores da seleção na prova.
E agora? Bom, será estranho que Martínez não continue. Tem contrato e a seleção caiu de pé, embora tenha defraudado os objetivos estabelecidos inicialmente por Fernando Gomes. Tudo se afigura para que Ronaldo também continue e queira, pelo menos, fazer o próximo Mundial. A menos que surja um adulto na sala, que acenda as luzes e seja capaz de reenquadrar Ronaldo num papel útil, corremos o risco de ver Ronaldo sair pela porta das traseiras (já agora, ao contrário de Pepe) e, com isso, a comprometer o sucesso em mais uma prova para a seleção portuguesa. É uma pena que assim seja.
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