Pediram-me para fazer um texto biográfico sobre o Rui Tovar e nem sei por onde começar. Podia começar pelo início mais convencional: nascido em 1948, na Lourinhã, etc. Porém, o texto já arrancava mal. O Rui Tovar não era um jornalista convencional. Era inovador, original, marcante. E para evocar a memória dele não poderia recuar apenas os seus 66 anos de vida. Seria preciso recordar, como ele tão bem fazia, a data do primeiro jogo entre equipa A e B, o local, os marcadores dos golos e até as curiosidades desse desafio. Eu não me lembro do que almocei ontem, mas ele saberia dizer-me de cor a constituição da equipa de Portugal no seu primeiro jogo oficial. Ele era assim: dono de um saber desarmante. E invejável.
No entanto, voltemos ao início. O conhecimento e a paixão – pela vida e pelo futebol – começaram na sua Lourinhã. Contava que quando nasceu o cinema da terra tinha em exibição o “Leão da Estrela”. “Como é que eu podia não gostar de futebol e do Sporting”, dizia. Lourinhã era a terra da família, onde em jovem até deu os primeiros pontapés na bola no Lourinhanense. Dizia que gostava de ficar a marcar livres e que tinha potencial como interior esquerdo, mas depois veio a tropa. Passou por Viseu e por Mafra e não se arrependia do tempo passado no quartel.
Só depois veio o jornalismo. No secular Diário de Notícias escreveu as primeiras linhas, mas estas foram precocemente interrompidas pelos tempos agitados do pós-25 de Abril. Foi saneado do jornal por José Saramago em 1975, um ato que nunca perdoaria ao futuro Prémio Nobel da Literatura. Não era segredo que não gostava de Saramago, mas apreciava o escritor. Seguiu-se o jornal O Dia, onde esteve até ao fim da década de 70, altura em que casou, foi pai e a RTP o chamou para marcar uma era no jornalismo desportivo português. Durante a década de 80, o futebol nacional e internacional entrava com ele pelas nossas televisões. Foi já na reta final dessa fase que o descobri, era eu um miúdo de seis ou sete anos e os anos 90 estavam já ao virar da esquina. Não me recordo de nenhum jogo ou resumo em especial do Domingo Desportivo. Não tenho essa memória “tovariana”. Mas lembro-me de simpatizar com aquele senhor de bigode e de voz solene.
Pelo meio fundou ainda um projeto pioneiro, o Off-Side, que existiu entre 1982 e 1985. Gostava de lembrar a irreverência desse jornal que fundou ao lado de outros grandes nomes “da praça”. Destacava a vontade de ser original, de agitar o “establishment” e, sobretudo, de não fazer um jornalismo “chato”, apoiado no talento e experiência de quem colocava em jogo aquele Off-Side. Durou pouco tempo, mas foi bom enquanto durou.
Nessa década não falhou também um Mundial ou um Europeu de futebol. Viu a “mão de Deus” ao vivo, em 1986, entre outras coisas dignas de memória. Ele poderia conta-las todas, sempre com aquela bonomia e tranquilidade. Tinha tudo e mais alguma coisa para poder olhar de cima para baixo, com o sobrolho levantado, para mim ou para os meus colegas que com ele conviviam desde 2009 no SAPO Desporto. Contudo, gostava de estar entre os jovens. Sentia-se rejuvenescido e tinha prazer em partilhar e ensinar. Quase tanto como o nosso em o ouvir.
Depois da saída da RTP, o Rui Tovar esteve ainda na direção do Eurosport e colaborou com vários órgãos de comunicação social nos últimos anos, nomeadamente no Correio da Manhã e no SAPO. Por onde passava deixava um rasto de sabedoria e simpatia. Todos gabavam a sua enorme memória, mas esta era superada pela memória que as pessoas tinham dele. Quando caminhávamos ao lado dele na rua era impossível não sentir o olhar das pessoas, aquele olhar que vagueia primeiro e que depois se fixa uma segunda vez nele e que nos diz mentalmente: “Aquele é o Rui Tovar!”
À margem do Rui Tovar, o Rui era ainda um Senhor com S maiúsculo. Era um bom pai, um bom marido e um bom homem. Não sabia só de futebol. Era um apaixonado pelos livros, especialmente romances policiais, pelas cadernetas de cromos – na semana passada faltavam-lhe dois cromos para acabar a do Mundial 2014 e nunca deixava uma incompleta - e pelo cinema. Conciliava as paixões com um sentido de humor peculiar e subtil. Dele guardo uma tirada emblemática que dizia com frequência quando alguém o surpreendia com alguma história: “Não me digas isso, Zé Antunes”. Nunca cheguei a saber quem era o Zé Antunes. Já não o vou saber. Dizem que o Rui Tovar morreu e a mim só me ocorre escrever: “Não me digas isso, Zé Antunes!”.
Comentários